Ter uma relação saudável com o próprio corpo é aprender a respeitá-lo, diz a jornalista Daiana Garbin
Dois anos atrás, em 2016, a jornalista Daiana Garbin decidiu encerrar uma carreira bem-sucedida como repórter de TV na Globo para se dedicar a projetos pessoais que incluem uma importante discussão pública sobre questões relacionadas ao corpo, à autoimagem, à saúde e à alimentação. De lá pra cá, criou um canal no YouTube, o EuVejo, escreveu um livro, Fazendo as pazes com o corpo – Uma jornada para vencer a relação doentia com a comida e a obsessão pela forma perfeita (Sextante) e tem feito palestras Brasil afora sobre o mesmo tema. Recentemente, tamanho o seu interesse pelas questões e emoções humanas, começou a estudar psicanálise em São Paulo, onde participa este mês do projeto Desconstruir para Construir, sobre Corpo & Saúde, na Livraria da Vila da Fradique. Leia a entrevista que ela concedeu à Vila Cultural.
VC. Que avaliação faz da decisão de transformar uma experiência pessoal em objeto de trabalho?
Daiana Garbin. Estou muito feliz, grata e realizada. O canal EuVejo no YouTube já tem 111 mil inscritos e quase três milhões de visualizações. O meu livro está na quarta reimpressão e esteve duas vezes na lista dos mais vendidos. Sou convidada para dar palestras no Brasil inteiro. Isso mostra como as mulheres sofrem em silêncio, como os transtornos alimentares são muito mais comuns do que a gente imagina e como precisamos falar cada vez mais sobre isso.
VC. O que é ter uma relação saudável com o próprio corpo?
DG. Ter uma relação saudável com o próprio corpo é aprender a ter respeito por ele. É ter uma alimentação saudável e prazerosa e aprender a comer com calma, atenção. É honrar o nosso corpo e ouvir os sinais de fome e saciedade. Precisamos aprender a degustar os alimentos de que gostamos. Todos eles. Sem culpa e sem sofrimento. A comida não é nossa inimiga. Quando você realmente entender isso, vai passar a comer menos porque vai aprender a degustar, a aproveitar, a saborear a comida. Isso é comer com tranquilidade. Comer exageradamente ou compulsivamente para aliviar sofrimentos não é aproveitar a comida. Para nós, humanos, a comida é muito mais do que uma necessidade básica de sobrevivência. Quando a mãe amamenta seu bebê, não está transmitindo só o alimento: está transmitindo amor, proteção, prazer, afeto, carinho, cuidado. É por isso que buscamos conforto na comida. E ela é capaz de nos dar, sim, um alívio imediato. Mas precisamos entender que a comida não vai preencher os nossos vazios. Temos que buscar respostas para as questões que nos angustiam. Quando você está desconfortável, antes de atacar um bolo de chocolate, é preciso se perguntar: o que está causando esse desconforto? De fato, o chocolate propicia uma sensação de prazer, mas não elimina a fonte do problema. No momento em que aprendemos a enfrentar nossos fantasmas, a respeitar nossos sentimentos e a encarar o problema real, a comida deixa de ser uma muleta para aliviar o sofrimento.
VC. Idealmente falando, qual é, na sua opinião, o tratamento possível para uma sociedade que, como você diz, adoeceu, inclusive na relação com a alimentação?
DG. Há duas questões. Primeiro que as pessoas com transtorno alimentar não fazem ideia da origem do sofrimento. Pensam que é vaidade, que apenas desejam a magreza, e não é isso! A questão é extremamente profunda. Em muitos casos o ódio ao corpo e o transtorno alimentar têm origem em traumas de infância, principalmente abusos sexuais, problemas de relacionamento com a família, baixa autoconfiança e baixa autoestima. O segundo ponto é a quantidade de pessoas com transtornos alimentares, inclusive figuras públicas, modelos, blogueiras que falam de dietas e corpo perfeito na internet. Isso é muito perigoso. Por isso, o tratamento possível para uma sociedade que adoeceu é uma pergunta que não tem uma resposta simples. O caminho é mudar esta mentalidade. A obsessão pelo corpo foi normalizada na nossa sociedade como “saúde”, “fitness” e garantia de felicidade e sucesso. E isso não é verdade. O nosso corpo não está errado. Quando você voltar a honrar e ocupar seu corpo, vai começar a sentir que ele é o seu lugar no mundo, que é o seu espaço, que é único, e assim você vai aprender a respeitá-lo e amá-lo. Se continuar permitindo que os outros tentem moldar sua aparência de acordo com um padrão “ideal”, vai ser difícil se amar e se aceitar de verdade. O corpo é seu, jamais esqueça disso! Ninguém nasce odiando o próprio corpo. Alguém nos ensina a não gostar dele. Mas veja, se aprendemos a odiar, também podemos aprender a amar! Precisamos acabar com o hábito de pensar e falar coisas ruins a nosso respeito. Isso não muda apenas a maneira como você trata o seu corpo – muda também a maneira como vive a sua vida.
VC. Como lida, na prática, com a responsabilidade de influenciar tantas pessoas e também com a eventual idealização/idolatria que é inerente ao lugar que você ocupa agora?
DG. Lido com muita seriedade. Certamente por ter uma formação em jornalismo e ter trabalhado muitos anos como repórter de televisão, eu sempre tive uma preocupação muito grande com a apuração, com a informação correta e de qualidade. Isso eu trago para o meu trabalho no EuVejo, por exemplo, ao escolher profissionais muito capacitados para entrevistas e tomar muito cuidado com todo o conteúdo que publico. A informação tem o poder de mobilizar muitas pessoas, de fazer com que a pessoa perceba que está doente e precisa de ajuda, mas isso tem que ser feito com muita responsabilidade e cautela. Sobre idealização, eu não vejo dessa forma e tenho muito claro para mim que eu sou apenas uma pessoa que passou por um sofrimento e que agora escolheu trabalhar com isso e pesquisa sobre isso.
VC. Por que tantas pessoas se reconhecem nas histórias que você compartilhou ao publicar um livro?
DG. Fico muito feliz porque as pessoas se reconhecem na minha história e nas outras histórias que estão no livro. As pessoas relatam que perceber que elas não estão sozinhas nesse sofrimento faz com que se sintam mais acolhidas, com mais coragem para procurar ajuda. Percebo, assim, que quando abrimos o coração e nos mostramos vulneráveis, estamos mostrando também toda nossa humanidade e entendendo como somos iguais nos nossos sofrimentos. Cada um com um motivo diferente, mas com dores muito parecidas. E eu acho que, de alguma forma, o meu trabalho conecta as pessoas. Principalmente as mulheres, já que não estamos sozinhas nessa luta. Podemos acolher o sofrimento uma da outra.
VC. O que você tem aprendido com as palestras que faz atualmente?
DG. A coisa mais bonita que eu aprendi nas minhas palestras é que não importa o grau de instrução e sua formação, por exemplo. Professoras universitárias, de faculdades de nutrição, que têm mestrado, doutorado ou pós-doutorado, também se emocionam com o que digo. Então fica claro para mim que não importa o quanto você estudou, não importa a classe social, não importa quantos quilos você pesa. A relação doentia com a comida e com o corpo está presente na vida de muitas pessoas, milhões de mulheres e homens, que igualmente se emocionam quando eu apresento tudo que eu costumo colocar. Significa admitir que o ser humano vive muito sofrimento, se não com a comida, com o corpo, com alguma dor, lutando com a depressão, com o sentimento de fracasso ou inferioridade. Todos nós estamos em busca da mesma coisa, que é ser feliz e ficar livre do sofrimento, que é o maior desafio do ser humano. Portanto, estamos juntos nesse mesmo barco.