Veneno antimonotonia

“Meu negócio é cantar”, dizia Cássia Eller, a voz emblemática e a personagem explosiva no palco, mas uma figura tímida, divertida e simples longe dos holofotes sob os quais cumpriu seu ofício e seu  destino

*Matéria publicada na revista Vila Cultural 164 (dezembro/2017).

Ilustração Jonas Ribeiro

A cantora Cássia Eller faria 55 anos no dia 10 de dezembro e nem sua morte precoce, aos 39, no fim de 2001, quando estava no auge da carreira e do sucesso com o qual ainda aprendia a lidar, foi suficiente para tirar de cena a vitalidade e a potência de uma existência que teve no palco seu habitat natural. Quando morreu, Cássia já até administrava melhor algumas dificuldades peculiares para uma artista do seu calibre. Ela detestava entrevistas, por exemplo. Não raro, ao cumprir o protocolo de divulgação da época para lançar um novo CD, podia, dependendo do interlocutor, soltar com todas as letras: “cara, meu negócio é cantar”. Era como se dissesse: “não me venha com perguntas, por favor”. E como se além da sua música visceral e dos recursos vocais inacreditáveis não tivesse mais nada a dizer.
Na era pré-diversidade de gêneros, pós-desbunde da revolução sexual e cultural e ainda sob o impacto e o terror dos primeiros tempos da Aids, Cássia demonstrou, na música e na vida, o quão a liberdade e a legitimidade de uma personalidade são essenciais e como vale muito a pena ser quem você é de verdade. Do jeito que der, sem forçar a barra.
Tímida até não poder mais, amiga daquelas que se comunicava monossilabicamente ou até no silêncio, passou anos feliz da vida tocando para pequenas plateias até dar de cara com shows para 20, 30 mil pessoas e se confessar completamente assustada com aquilo. Para que isso acontecesse, seu disco Acústico, para MTV, foi determinante.
Como uma Amy Winehouse, que nunca ficou confortável com o lado perverso da fama e do reconhecimento público de seu talento, Cássia foi uma artista que se baseou sobretudo no prazer, na necessidade e no “transe” da música que vem da alma. Cumpriu seu destino e deixou um repertório que será cultuado por muitas gerações. Canções como O segundo sol, de Nando Reis, ou Malandragem, de Frejat e Cazuza, das quais ela se apropriou como obras dela, reverberam como exemplos da empatia artística que supera o tempo, as circunstâncias em que foram criadas e, mais ainda, da figura emblemática em que Cássia se transformou para fundir a cabeça dos caretas, dos moralistas e dos que recitam regrinhas para viver.
Nem aí para estereótipos, podia circular linda como um garoto largadão e reaparecer grávida e iluminada com seu desejo confesso de ser mãe. Sua biografia é cheia de graças, típicas de quem não se leva muito a sério. Nasceu Cássia Rejane Eller em 1962 e ganhou esse nome porque a avó era devota de Santa Rita de Cássia. Carioca, ficou supermineira por ter vivido em Belo Horizonte e fez todo mundo acreditar que também era de Brasília, onde morava quando começou a cantar. Tocava Beatles desde os 14, quando ganhou um violão, e caía na gargalhada mais espontânea e carismática do mundo quando revelava que já tinha sido garçonete, cozinheira, servente de pedreiro e que trabalhou dois dias como secretária numa repartição pública antes de ser sumariamente dispensada.
A carreira musical começou em 1989, com uma fita demo entregue a gravadora Polygram, e que tinha a música Por enquanto, de Renato Russo, outro hit na voz da cantora. A partir de 1990, fez vários discos, cada um melhor que o outro: Cássia Eller (1990), O marginal (1992), Cássia Eller (1994), Cássia Eller Ao vivo (1996), Veneno antimonotonia (1997), Com você meu mundo ficaria completo (1999) e Acústico MTV (2001).
“O público só conheceu o lado explosivo dela. Fora dos palcos, ela era uma pessoa doce, tímida e simples”, disse o diretor Paulo Henrique Fontenelle, quando do lançamento do ótimo documentário que fez sobre a cantora, um dos itens obrigatórios para quem, independentemente de outras questões, se pegue seduzido por uma voz capaz de mil malabarismo e que queria, como Cássia dizia, “mostrar serviço” em qualquer composição. A Nando Reis, com que viveu o amor genuíno da amizade e da parceira artística, Cássia atribuiu, entre outros, o aprendizado de usar cada um de seus recursos vocais na hora certa. Também por isso, ouvir Cássia Eller e a verdade da sua música é entender, de alguma forma, que ainda temos muito o que aprender e viver.