Convidada do Navegar é Preciso, Carola Saavedra investiga o feminino no romance Com armas sonolentas
No intervalo de quatro anos, a escritora Carola Saavedra teve uma filha, Vitória, concluiu seu doutorado e escreveu Com armas sonolentas (Companhia das Letras), romance que ela lançou recentemente e que gira em torno de três mulheres. Como diz em entrevista exclusiva à Vila Cultural, trata-se de seu livro “menos defendido”. “No sentido de que ele é uma ‘autobiografia de si’”, afirma a escritora. “Tem algo visceral, de estar ali 100%, sem medo de entrar naquela história. O livro também é o resultado de dez anos de análise”, afirma Carola, que não titubeia ao ser perguntada sobre o que aprendeu fazendo análise. “Se pudesse resumir, eu diria que foi a certeza de que seja lá o que for eu vou conseguir lidar com aquilo. Vai ser ruim em alguns momentos, bom em outros, mas não vou morrer por causa disso ou daquilo”, diz.
Autora dos romances Toda terça (2007), Flores azuis (2008), Paisagem com dromedário (2010) e O inventário das coisas ausentes (2014), todos publicados pela Companhia das Letras, Carola esteve na famosa e muito citada lista da revista literária Granta com os vinte melhores jovens escritores brasileiros. Aos 45 anos, já não se sente tão jovem assim. “A minha idade me deu a experiência de vida que me permite escrever o que eu escrevi. Não quero, em momento algum, negar ou maquiar isso”. Formada em jornalismo, que ela nunca exerceu, Carola passou quase uma década fora do Brasil, estudando na Alemanha, logo depois de se graduar no Rio de Janeiro. Estava se preparando para escrever, como costuma dizer. Agora, depois de ver seus livros publicados em outros idiomas, como o alemão e o francês, mobiliza interesses e investigações sobre mulheres. Em Com armas sonolentas, “um dos melhores romances publicados no Brasil recentemente” nas palavras do escritor Sérgio Sant’Anna, Carola traz as histórias de Anna, uma aspirante a atriz que se casa com um cineasta alemão e vai viver na Alemanha, Maike, uma jovem alemã que, sem razão aparente, resolve estudar português na universidade, e uma terceira personagem, esta sem nome, que aos catorze anos é obrigada pela mãe a deixar sua casa no interior de Minas Gerais para trabalhar como doméstica numa casa de família no Rio de Janeiro, onde relações bem complexas irão se desenvolver no convívio dela com os patrões. São personagens que estão em busca de suas próprias histórias, em que a ancestralidade também é destacada de forma intensa por Saavedra, que vive atualmente em São Paulo e é uma das convidadas do projeto Navegar é Preciso em 2019 (veja nesta edição). Leia a entrevista da escritora.
Vila Cultural. Você gosta de entrevistas?
Carola Saavedra. Gosto porque é uma forma de pensar o meu trabalho. É um diálogo que me faz ver novos aspectos, uma maneira de continuar pensando o livro. Parece um pouco com o retorno que vem dos leitores que, ainda que não seja no formato de perguntas, faz parte desse diálogo posterior à escrita do livro, o que me parece essencial.
VC. Como entendeu que queria ser escritora?
CS. Foi quando eu comecei a ler, aos sete, oito anos de idade. Me apaixonei pela leitura, pelas histórias. Muito criança ainda, pensei: “eu quero escrever minhas próprias histórias”. Era um olhar infantil, mas naquele momento eu já percebi que queria ser escritora. E nunca mudei de ideia.
VC. Por que estudou jornalismo?
CS. Eu achei que por gostar de escrever fazia sentido estudar jornalismo. Na faculdade, entendi que uma coisa não tinha nada a ver com a outra, que eram formas diferentes de lidar com o texto. Tanto que eu nunca trabalhei com jornalismo e acho que eu seria uma péssima jornalista, que depende de um talento específico que eu não tenho.
VC. Depois você se “refugiou” na academia?
CS. Quando fui fazer o mestrado na Alemanha não era um refúgio. Foi uma fuga. Queria ir embora, ter experiências, viajar, ver e viver o mundo. No Rio, tinha estudado em colégio alemão, já falava o idioma, tinha diplomas. Foi uma desculpa porque eu queria viver e continuava pensando em escrever. Consegui uma bolsa de estudos, vivia daquilo, dava aulas particulares de português e espanhol e tinha muito tempo para ler. Tinha acesso a livros. Para mim, foram anos de formação porque no Brasil seria muito difícil fazer isso, trabalhar pouco, viver decentemente com o que eu ganhava e ter muito tempo para ler e estudar.
VC. Que avaliação faz da trajetória do novo livro?
CS. O livro tem sido muito bem recebido. Eu até me espantei. Primeiro porque tento não criar muito expectativa. Por isso tem sido uma alegria e uma surpresa observar que ele é bem recebido tanto pela crítica como pelo público. Vejo um retorno de leitores, que agora não são só os meus leitores habituais. É como se o livro tivesse trazido novos leitores. Recebo diariamente, via redes sociais, mensagens de pessoas que entram em contato para falar que leram o livro ou de booktubers que estão ali falando do livro e dizendo que não me conheciam antes desse lançamento e que agora pretendem ler os outros. Isso tem sido muito frequente. Por isso tenho a sensação de que há algo nele que funciona para todo mundo e que funciona também para leitores que já conheciam meus outros livros.
VC. A que atribui isso?
CS. É muito difícil fazer uma análise assim. Mas o que sinto é como se as questões femininas não tivessem sido suficientemente representadas na literatura. Até porque já sabemos que 70% dos romancistas são homens, que 80% dos personagens principais são homens. E parece que até muito pouco tempo atrás as autoras tinham certo cuidado ou receio de falar de questões puramente femininas para não serem colocadas naquele clichê de “literatura feminina”. Porque há sempre essa ideia de que quando o homem fala sobre o homem ele está sendo universal. E a mulher quando fala da mulher está tratando de questões femininas. Acho que há uma demanda muito grande de certos temas na literatura, de se sentir representada. Outro aspecto que ouço muito dos leitores é a questão da ancestralidade, da relação da filha, da mãe com a avó, com a bisavó. Que linha ancestral é essa que está silenciada? As histórias giram sempre em torno do pai, do avô, e as mulheres são sempre satélites. No caso do meu livro, as mulheres são o ponto central já que o romance praticamente não tem homens. A sensação é que a minha necessidade de escrever sobre isso surgiu como parte de uma necessidade de todas nós. Colocar palavras em certos temas que estavam em silêncio. Acho que essa resposta imediata ao livro tem muito a ver com isso, com essa necessidade de expressão e de se sentir representada.
VC. É o seu livro mais autobiográfico?
CS. Acho que ele é meu livro menos defendido no sentido de que ele é uma “autobiografia de si”. Porque essas coisas não aconteceram comigo dessa maneira, mas de forma inconsciente eu estou ali. Sou eu. Me vejo e me coloquei de uma forma muito exposta no livro. Nesse sentido, é o meu livro menos defendido. Tem algo visceral, de estar ali 100%, de entrar naquela história, de se aproximar daquilo, o que para mim foi muito difícil. O livro também é o resultado de dez anos de análise. Passei dez anos lidando com questões do meu inconsciente, das minhas escolhas, para dizer que eu posso habitar certos lugares sem medo porque eles são assustadores. Às vezes alguém me escreve dizendo que ficou tão perturbado que não conseguiu dormir. Eu entendo que o livro é assustador para mim também. Escrever foi difícil porque falar de alguns temas que estão no livro é difícil. Ao mesmo tempo, o livro é muito aberto para vida, por ter um otimismo também. As personagens estão, de alguma maneira, buscando se encontrar. E não em busca de progresso. Porque se encontrar não significa que seja sempre uma grande felicidade, mas é um tornar-se sujeito. O livro é sobre mulheres que estão se tornando sujeito, sendo capazes de conhecer e falar da própria história. Isso é saber quem você é. E se você não conhece sua própria história, você não sabe nem para onde está indo.
VC. É algo que vale também para uma perspectiva mais ampla.
CS. Isso serve para uma pessoa, mas também serve para um país. Um país que não tem memória e que nega sua própria história está pisando no nada. Por isso, para mim, o livro tem a questão das mulheres mas também tem um ponto muito importante quando digo que somos um país e uma América Latina que surgiram do estupro de mulheres. Eu faço esse caminho dessa avó indígena que, apesar de eu não dizer abertamente, foi estuprada. Ou seja, somos um continente que surge, em grande parte, da submissão de mulheres. Há marcas e traumas que nunca foram ditos. Somos um país cheio de traumas que não foram falados. E a literatura, quando é potente, serve para falar coisas que precisam ser faladas, que ainda não foram ditas.
VC. Escrever hoje tem mais a ver com prazer ou sofrimento?
CS. Escrever para mim hoje é muito mais difícil do que era antigamente. Tem a ver com o domínio da técnica porque, em tese, seria muito simples escrever rapidamente outros livros parecidos com aqueles que você já fez. Mais do mesmo. Mas dar um passo além é muito mais difícil. Primeiro porque você tem uma noção do que é ruim, do que não vai funcionar. E uma autoexigência imensa porque você está tentando sair do lugar onde você estava. Por isso já não escrevo com a mesma facilidade com que eu escrevia. A escrita é mais sofrida no sentido de que me custa mais. Mas eu tenho um prazer imenso de escrever, é um momento de grande alegria para mim, apesar dessa grande dificuldade.
VC. Poderia falar do título do livro?
CS. O título é um verso de um dos poemas da escritora, poetisa e dramaturga mexicana Juana Inés de la Cruz (1651-1695), uma figura muito importante para mim e que poderia ser vista como uma figura feminista latino-americana. Ela representa essa primeira mulher. Quando pensamos pela questão do feminino, isso passa também por entender que genealogia é essa, se pensarmos na genealogia intelectual e artística. Quem são as escritoras, as artistas que vieram antes. Eu falo de mulheres mas incluo nisso os homens também, porque ao terem acesso a essa genealogia feminina eles se tornam melhores artistas, melhores escritores. Mas falo de mulheres por questões políticas. Porque é importante os homens lerem as mulheres. Então eu trago essa figura por esse ponto, e é um poema muito bonito, no qual ela fala de outras formas de combate que não passam pela razão nem por aquelas armas com as quais estamos acostumados. É a ideia de que existem formas de combater e de estar no mundo que passam pelo sonho, pelo inconsciente, pelo afeto, por outros lugares que não sejam os dessa razão cartesiana. O livro trabalha assim com o fantástico, o onírico. Essas armas do inconsciente podem ser até mais importantes talvez.
VC. O que é ser feminista em 2018?
CS. Para mim é um posicionamento político, mais do que uma questão teórica. Porque, do ponto de vista teórico, você pode discutir uma série de feminismos com agendas diferentes. Uma mulher negra tem questões que são diferentes das de uma mulher branca de classe média. Mas todos estes feminismos estão interligados com a ideia que é uma maneira de se colocar no mundo a favor dos direitos das mulheres, o que inclui escolhas em relação ao próprio corpo, em relação a direitos iguais em termos de salários, em relação a não-violência. Direitos que as mulheres deveriam ter e ainda não têm. É um posicionamento político.
VC. Qual é o seu lugar como escritora?
CS. Eu não escrevo para a posteridade. Não me interessa saber o que vai acontecer depois. Eu escrevo para a vida agora, para o momento, porque é uma paixão. Porque você não se dedica da forma que eu me dedico à literatura, de maneira quase obcecada mesmo, se você não tem uma paixão. É um amor. É uma forma de estar no mundo. Não sou uma escritora quando eu escrevo. Sou uma escritora 24 horas por dia. Tudo que eu vivo está conectado com a minha escrita, ao que eu leio. É uma escolha de como eu quero viver, do tipo de vida que eu quero ter. A literatura está muito mais entranhada do que um ofício.
VC. O que representou ser citada como uma das mais promissoras autoras de sua geração?
CS. Para mim foi ótimo, só abriu portas. É claro que isso não significa que você esteja entre os melhores escritores. Significa que uma revista inclui o seu nome numa lista e que aquilo vai servir pra você divulgar o seu trabalho. Do mesmo jeito que alguns prêmios eu ganhei e outros não. Quando você entra numa lista dessas é muito bom, é positivo. Mais pessoas vão conhecer o seu trabalho, ler seus livros. É um mundo que se abre. Que bom que veio. Mas quando eu não recebo, tudo certo também. A carreira de um escritor é sempre cheia de altos e baixos. Então, eu acho importante você focar na escrita. Se o seu livro for bom, as coisas virão. O principal é olhar para o seu trabalho. O resto acontece.
VC. Como você lida com o “lado espetáculo”, da exposição, no mercado editorial?
CS. Eu me coloco no meio termo. A não ser que você seja um escritor canônico, um best-seller, você tem que participar disso. Se você publicar o seu livro e se esconder debaixo da cama, não vai acontecer nada. De alguma maneira, você precisa se colocar e participar do grande show, o que eu não acho ruim. Eu, por exemplo, gosto muito de falar em mesas, debates, de conversar com outros escritores, eu gosto do diálogo sobre coisas que me interessam. Mas não permito que isso tome um lugar tão imenso na minha vida a ponto de eu deixar de fazer o que eu preciso fazer pela escrita.
VC. Como é a vivência de publicar em outros idiomas?
CS. É uma experiência muito rica ter esse contato com outra cultura. Um exemplo: em Paisagem com dromedário há uma ilha. No Brasil, ninguém nunca se interessou ou me perguntou que ilha é essa. Na Alemanha, eu não passava uma entrevista sem ter que explicar sobre a ilha, que era importantíssima. Os olhares mudam dependendo da cultura.