“Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive”, escreveu Guimarães Rosa, autor de Grande Sertão: Veredas, a obra-prima que garantiu o infinito e a eternidade ao escritor brasileiro morto há 50 anos
*Matéria publicada na revista Vila Cultural 163 (novembro/2017).
Ilustração Jonas Ribeiro
Na famosa carta escrita em novembro de 1963 ao tradutor italiano Edoardo Bizzarri, que trabalhava na tradução do livro Corpo de Baile, o escritor João Guimarães Rosa fez uma espécie de “declaração de amor” à linguagem e à literatura que acabou, pela beleza, “simplicidade” e sinceridade, se transformando numa de suas citações mais conhecidas, inclusive por reafirmar o que há de mais valioso na “alma” de sua obra. Rosa escreveu o seguinte: “A linguagem e a vida são uma coisa só. Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive; e como a vida é uma corrente contínua, a linguagem também deve evoluir constantemente. Isto significa que como escritor devo me prestar contas de cada palavra e considerar cada palavra o tempo necessário até ela ser novamente vida. O idioma é a única porta para o infinito, mas infelizmente está oculto sob montanhas de cinzas”.
Mais do que definir o ofício literário, o texto é uma percepção que contamina a existência em sua essência mais sublime ou indecifrável. Não por acaso, no mês passado, no Sesc Anchieta, região central de São Paulo, essa fala de Rosa aparecia “impressa” numa enorme parede para dar boas-vindas à exposição e à montagem assinadas pela diretora Bia Lessa para um trabalho extraordinário sobre Grande Sertão: Veredas, a obra-prima de Guimarães. O escritor morreu há exatos 50 anos, no dia 19 de novembro de 1967, três dias depois de ser empossado na Academia Brasileira de Letras, para qual havia sido eleito em 1963, e a efeméride tem gerado, uma vez mais, criações artísticas, lembranças e homenagens diversas ao autor.
Médico, diplomata e poliglota, Rosa tem uma trajetória fascinante que, como reafirmam críticos e pesquisadores, renovou o romance brasileiro, rompendo estruturas tradicionais, para conquistar, de um jeito singular, leitores e admiradores em diversos outros países. O escritor nasceu em 27 de junho de 1908, em Cordisburgo, cidade no interior de Minas Gerais, onde estudou o primário. Aos dez anos, em 1918, mudou-se para a casa dos avós, em Belo Horizonte, e viveu na capital mineira até se formar em Medicina, em 1930. Logo depois, começou a publicar seus primeiros textos na revista O Cruzeiro.
Em 1932, atuou como médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista e foi para o Rio de Janeiro em 1934, quando prestou concurso para o Itamarati. Ficou em segundo lugar e já falava, nessa época, vários idiomas, conforme lembraria, já ilustre autor, numa carta-entrevista à sua prima, Lenice Guimarães de Paula Pitanguy. “Falo: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; leio: sueco, holandês, latim e grego (mas com o dicionário agarrado); entendo alguns dialetos alemães; estudei a gramática: do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituânio, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês, do dinamarquês; bisbilhotei um pouco a respeito de outras. Mas tudo mal. E acho que estudar o espírito e o mecanismo de outras línguas ajuda muito à compreensão mais profunda do idioma nacional. Principalmente, porém, estudando-se por divertimento, gosto e distração.”
Em 1937, Rosa começou a produção de Sagarana, livro de contos publicado em 1946, em que retrata a vida nas fazendas mineiras. No final dos anos de 1930 foi nomeado cônsul-adjunto na cidade de Hamburgo, Alemanha, cargo que ocupou até 1944. Em 1942, chegou a ser preso quando o Brasil rompeu a aliança com a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de morar em Bogotá, na Colômbia, e fazer sucesso com a publicação de Saragana, Rosa se transferiu para Paris, onde morou entre 1946 e 1951. Uma década depois de estrear como escritor, publicou Corpo de Baile e Grande Sertão: Veredas, ambos em 1956. A partir de 1958, preferiu viver no Rio a ser promovido embaixador. “No Sertão fala-se a língua de Goethe, Dostoievski e Flaubert, porque o Sertão é o terreno da eternidade, da solidão, onde o interior e o exterior não podem mais estar separados”, ensinou, existencialista-cristão como o chamavam, na mesma carta endereçada a Bizzarri.