Nascido em junho de 1908, Guimarães Rosa segue genial e imortal na nova edição de Grande sertão: Veredas
*Retrato publicado na revista Vila Cultural Edição 182 (Junho/2019)
“Hem? Hem? O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação-da-alma… Muita religião, seu moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio… Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue. Rezo cristão, católico, embrenho a certo; e aceito as preces de compadre meu Quelemém, doutrina dele, de Cardéque. Mas, quando posso, vou no Mindubim, onde um Matias é crente, metodista: a gente se acusa de pecador, lê alto a Bíblia, e ora, cantando hinos belos deles. Tudo me quieta, me suspende. Qualquer sombrinha me refresca. Mas é só muito provisório. Eu queria rezar – o tempo todo. Muita gente não me aprova, acham que lei de Deus é privilégios, invariável. E eu! Bofe! Detesto! O que sou? – o que faço, que quero, muito curial. E em cara de todos faço, executado. Eu– não tresmalho!”
O trecho “aleatório” de Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa é a demonstração mais “corriqueira” de que o autor, nascido em 27 de junho de 1908, há 111 anos, levava ao pé da letra uma de suas ideias mais importantes: a de que só a linguagem viva suporta o sentido da existência de cada um, tenha-se ou não consciência disso. “Quem não fizer do idioma o espelho de sua personalidade não vive”, escreveu Guimarães Rosa, cuja obra-prima ganhou recentemente uma edição mais que desejável da Companhia das Letras. Lançado em fevereiro, Grande sertão: Veredas conta agora com novo estabelecimento de texto, cronologia ilustrada, indicações de leituras e textos famosos publicados sobre o romance, incluindo um breve recorte da correspondência entre Clarice Lispector e Fernando Sabino e escritos de Roberto Schwarz, Walnice Nogueira Galvão, Benedito Nunes, Davi Arrigucci Jr. e Silviano Santiago.
A capa da nova edição é a reprodução da adaptação em bordado do avesso do Manto da apresentação, do artista Arthur Bispo do Rosário, com nomes dos personagens de Grande sertão: Veredas. O projeto gráfico conta ainda com desenhos originais de Poty Lazzarotto, que ilustrou as primeiras edições do livro. Publicado originalmente em 1956, Grande sertão: Veredas revolucionou a literatura brasileira e segue despertando o interesse de muitas gerações de leitores. Ao atribuir ao sertão mineiro sua dimensão universal, a obra é um mergulho profundo na alma humana, capaz de retratar o amor, o sofrimento, a força, a violência e a alegria.
Guimarães Rosa tem uma trajetória de vida fascinante e uma obra que renovou o romance ao romper estruturas tradicionais, para conquistar, de um jeito singular, admiradores em diversos países. O escritor nasceu em Cordisburgo, cidade no interior de Minas Gerais, onde estudou o primário. Aos dez anos, em 1918, mudou-se para a casa dos avós, em Belo Horizonte, e viveu na capital mineira até se formar em Medicina, em 1930. Logo depois, começou a publicar seus primeiros textos na revista O Cruzeiro.
Em 1932, atuou como médico voluntário durante a Revolução Constitucionalista e foi para o Rio de Janeiro em 1934, quando prestou concurso para o Itamarati. Ficou em segundo lugar e já falava, nessa época, vários idiomas. Em 1937, Rosa começou a produção de Sagarana, livro de contos publicados em 1946, em que retrata a vida das fazendas mineiras. No final dos anos de 1930 foi nomeado cônsul-adjunto na cidade de Hamburgo, Alemanha, cargo que ocupou até 1944. Em 1942, chegou a ser preso quando o Brasil rompeu a aliança com a Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial. Depois de morar em Bogotá, na Colômbia, e fazer sucesso com a publicação de Saragana, Rosa se transferiu para Paris, onde morou entre 1946 e 1951. Uma década depois de estrear como escritor, publicou Corpo de baile e Grande sertão: Veredas, ambos em 1956. A partir de 1958, preferiu viver no Rio de Janeiro a ser promovido embaixador. Rosa morreu no dia 19 de novembro de 1967, três dias depois de ser empossado na Academia Brasileira de Letras, para qual havia sido eleito em 1963.