À luz da perseverança

Convidado do Navegar é Preciso, Lars Grael acumula vitórias com sua paixão pela vida e pelo esporte

 

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 191 (Março/2020)

O velejador, gestor e palestrante Lars Grael participa, em abril, do Navegar é Preciso, a viagem pelo Rio Negro, na Amazônia, promovida pela Livraria da Vila e pela agência Auroraeco./ Foto Renata Pellicano Grael/Divulgação

Boas histórias para contar, a capacidade de emocionar e valores e experiências que, compartilhados publicamente, convidam à reflexão. Para o velejador, escritor e gestor esportivo Lars Grael esses são os aspectos que caracterizam palestras e palestrantes bem sucedidos no propósito de motivar outras pessoas. Lars é uma autoridade no assunto.
Duas décadas atrás, depois do grave acidente que sofreu em 1998, no auge de sua carreira esportiva, quando teve a perna direita amputada, sua história de superação pessoal incluiu a experiência de falar dela para audiências que se encantam não só com a vida e as conquistas de Grael, mas também com seu carisma, sua inteligência e sua generosidade intelectual.

De lá para cá, Lars Grael já fez mais de 700 palestras em 172 cidades, seis países, e mobilizou plateias que somam mais de 300 mil pessoas, conforme os números atualizados permanentemente no site que leva o nome do velejador.

Lars é um dos convidados da edição 2020 do Navegar é Preciso, projeto da Livraria da Vila e da agência Auroreco, e diz que a experiência de estar e/ou conhecer a Amazônia deveria ser uma pré-condição para todos os gestores do Brasil.

Ao reprogramar sua vida depois do acidente e antes de recomeçar no esporte e nas competições, foi na gestão esportiva que ele teve a oportunidade de abrir novos espaços enquanto se organizava para conquistar outros títulos títulos importantes como velejador. Para ele, se preparar para gestão e apontar soluções é tão importante quanto criticar.

De uma família de velejadores, Lars é irmão do supercampeão Torben Grael. Seus tios Axel e Erik Schmidt foram os primeiros brasileiros a conquistarem um título mundial de iatismo. A tradição veio do avô dinamarquês, Preben Schmidt, e chegou aos meninos por meio da mãe, Ingrid, enquanto no lado do pai, Coronel Dickson Grael, oriundo de Dois Córregos, no interior paulista, não havia qualquer tradição náutica. Dickson foi precursor do paraquedismo no Brasil.

Lars Grael já publicou dois livros. De 2001, Lars GraelA saga de um campeão (Editora Gente) é o retrato de um cidadão apaixonado pelo esporte e pela vida. A história do iatismo no Brasil e a saga da família Grael, a luta pela reabilitação, os exemplos de superação de deficientes físicos, a importância do esporte para a cidadania, entre outros, são temas recorrentes para entender, no livro, a garra e a determinação de Grael.

Mais recente, feito em coautoria com o jornalista Eduardo Ohata, Lars Grael – Um líder para os nossos tempos (Edições de Janeiro, 2015) apresenta ao leitor um valioso painel de memórias pessoais, incluindo o momento, por exemplo, em que Lars se tornou referência e exemplo de superação por seu drama pessoal. No livro, ele expõe as forças e fraquezas de um guerreiro, mostrando o homem e o líder na grandeza e limitações da sua condição humana. Leia a seguir entrevista com Grael.

Vila Cultural. Qual a sua expectativa com a participação no Navegar é Preciso?
Lars Grael. A expectativa é a melhor possível. Adoro a Amazônia e acho que todo brasileiro que se propõe a gerir ou participar da gestão do país, em especial os parlamentares, deveria conhecer minimamente a Amazônia para saber do que está falando. Conheço bastante o estado do Pará. O Amazonas nem tanto, mas já estive algumas boas vezes em Manaus. E também estive no Acre, em Rondônia, no Amapá, em Roraima, no Maranhão. Acho que esse passeio pelo Rio Negro é belíssimo: natureza e cultura com tantas potencialidades e necessidades de pensar sobre desenvolvimento sustentável.

VC. Como foi publicar uma biografia?
LG. O livro é importante como depoimento de uma experiência de vida até para que eu mesmo possa analisar a minha própria trajetória, o legado que fica para a minha família, para os meus amigos, seguidores, para aqueles que lutam por um esporte melhor no Brasil. O Eduardo Ohata é um grande jornalista e foi muito generoso quando quis ser coautor desse livro comigo. Foi uma experiência muito boa. É o segundo livro que lancei, mas esse, mais recente, mais completo, foi marcante, e também é importante como material para as palestras que venho fazendo pelo Brasil já há vinte anos. O livro ajuda muito, como produto auxiliar, na minha principal atividade profissional, que são as palestras.

VC. Por falar nisso, o que tem aprendido de mais valioso como palestrante?
LG. Além de as palestras terem me levado a 26 capitais estaduais e ao Distrito Federal, com elas tenho tido a oportunidade de conhecer muita gente de valores empreendedores, pessoas que fazem a diferença na trajetória do país, porque embora possa parecer um monólogo a palestra me faz conhecer a empresa para a qual vou trabalhar. Ou pelo menos ter uma noção geral dos seus valores, da sua missão, das suas dificuldades, das suas metas. Participar disso tudo é um processo que ajuda a edificar a minha forma de pensar o Brasil, um país que tem tudo para dar certo se nós tivéssemos um processo de conciliação nacional, já que hoje o país está tão dividido.

VC. O que, na sua opinião, faz uma palestra e/ou um palestrante serem bem-sucedidos?
LG. Acho que você tem que ter uma boa história para contar, valores para passar, capacidade de emocionar – para a alegria ou para a tristeza – gerando a reflexão. Nosso país é muito carente no reconhecimento de valores. Não pela falta de brasileiros valorosos, mas porque nós vivemos um momento de contestação e é importante reconhecermos valores com uma associação de ídolos do esporte, da cultura, da ciência, da política, do desenvolvimento, do meio econômico. Transferir o valor à sociedade é importante para inspirar. Eu sei e reconheço, por exemplo, o quanto a inspiração em atletas ou pessoas valorosas foi importante na minha trajetória. E tento inspirar os outros dentro daquilo que me é possível.

VC. Por que sempre diz que viver é como velejar?
LG. Velejar requer conhecimento técnico daquilo que se está fazendo. Antes de se lançar ao mar você tem que planejar, definir o rumo, porque não existe rumo correto para quem não sabe para onde vai. A pessoa tem que saber lidar com fatores externos que são variáveis, não controláveis – neste caso, a natureza –, porque aquele que for arrogante ao velejar, ao navegar desafiando o mar ou se achando dominador do mar, provavelmente vai sucumbir. Você tem que respeitar a força da natureza. Então, nesse sentido, o esporte e a vida institucional, corporativa, por exemplo, de uma empresa pública ou privada, guarda muitas semelhanças. Os valores que nós aprendemos no esporte, no meu caso, de um esporte que tem cumplicidade com o vento, que é a vela, são muito importantes. A correlação que você faz de velejar para uma vida empresarial é direta.

VC. Que avaliação faz da sua experiência como gestor esportivo?
LG. Como muitos outros atletas, sempre fui crítico daquilo com que não concordava. Podia ser em um ambiente de clube, de federação estadual, de uma confederação da minha modalidade, do Comitê Olímpico do Brasil, da atuação do governo no esporte. Mas não basta ser crítico. A pessoa tem que se capacitar para contribuir com ideias construtivas. E quando você tem a capacidade de fazer a diferença como gestor, preenchendo um espaço que é destinado à representação do esporte, é importante não só criticar mas fazer. Então, pensando assim, eu ocupei vários cargos em clubes, federações, fui secretário nacional do Esporte, secretário estadual de Juventude, Esporte e Lazer do Estado de São Paulo, citando só alguns dos cargos, que desempenho ainda, incluindo alguns como atividade filantrópica, doando o meu tempo. Acho que não fui o maior nem o melhor gestor esportivo do Brasil, mas tento inspirar muitos atletas para que se preparem ao adquirir um conhecimento na prática esportiva, porque são formadores de opinião, ídolos da sua modalidade, para que possam estar capacitados para fazer a gestão do esporte nacional. Porque tudo isso está mudando, mesmo que aquém da velocidade que gostaríamos. Basta ver hoje os secretários nacionais ligados ao Ministério da Cidadania. Você tem três atletas olímpicos: Emanuel Rego, herói olímpico do vôlei de praia, na Secretaria de Esporte de Alto Rendimento; Fabíola Molina, atleta olímpica de natação, medalhista pan-americana, na Secretaria de Esporte, Educação, Lazer e Inclusão Social; e Luisa Parente, atleta olímpica de ginástica artística e medalhista em Jogos Pan-americanos, na Secretaria de Autoridade Brasileira de Controle de Dopagem, citando exemplo de atletas que chegaram lá. Da mesma forma que alguns que me antecederam e foram inspiradores para mim como o Bernard Rajzman, do vôlei, ou o Zico, do futebol. Por isso tento inspirar, para que outros atletas tenham comprometimento com o nosso segmento, o esporte, que é vital para o país.

VC. O que falta ao poder público brasileiro para gerir/administrar com mais propriedade e eficiência?
LG. O Brasil tem que mudar. São muitos anos do Estado se servindo da sociedade. Tem que ser o contrário: o Estado tem que servir à sociedade. Da forma como está, ou seja, inchado, nada competitivo, o Brasil não funciona. Notar que o número de contribuintes da Previdência é menor do que o número de aposentados em dez estados da federação é um exemplo de como o país tem sido mal gerido nas últimas décadas. Isso tem que mudar. O estado tem que ser competitivo e não necessariamente inchado, “estatizado”. Ele tem que ser um prestador de serviço à sociedade e tem que ser eficiente. Na minha opinião, é esse conceito de mudança que precisa acontecer. Mas com racionalismo, sem paixão e sem ódio e sem ficar discutindo ideologias radicais e opostas.

VC. Quais são, na sua percepção, as consequências, no esporte, de uma crise econômica-política-social como a que Brasil vive nos últimos anos?
LG. No esporte, acho que o problema ainda é “menor”. Em situação parecida com as que foram vividas pelo país, o esporte viveu desmandos, teve a sua “ramificação” da Lava Jato, com altos dirigentes afastados e destituídos de suas funções, alguns até presos, ainda que temporariamente. A diferença é que, pelo menos no esporte, nós não temos um debate ideológico tão acirrado entre a extrema esquerda e a extrema direita. Há uma percepção de que trata-se de uma questão suprapartidária entre as pessoas que militam na defesa do esporte nacional. Independentemente das suas convicções ideológicas, elas tendem a atuar na mesma fileira, na mesma trincheira, em favor do esporte. Mas no Brasil nós também vivemos uma crise ética, cívica, moral, em um país que foi saqueado num grande conluio entre a iniciativa privada e o poder público, com a participação de integrantes dos poderes executivo e legislativo e a leniência e a participação do poder judiciário. Mas agora é um momento de mudança. Para toda ação tem uma reação. E é uma reação grande, mas eu acho que, passando por isso, o país precisa aprimorar os mecanismos democráticos para que predomine o equilíbrio e não as opiniões tão extremas e polarizadas que nos pressionam, quase nos obrigam a estar alinhados de um lado ou de outro. Quero ter a liberdade de externar o meu ponto de vista sem ser censurado como sou hoje, muitas vezes pelos extremos opostos. Acho que é o equilíbrio que tem que prevalecer.

VC. Quais são os maiores obstáculos que as pessoas com deficiência precisam vencer para chegar ao esporte no Brasil?
LG. Do ponto de vista da legislação, dos direitos das pessoas com deficiências, é um dos países mais avançados. Nós temos o Estatuto da Pessoa com Deficiência, que é progressivo e moderno. Mas como em quase tudo no país há uma enorme diferença entre a retórica e a prática, entre a lei e o cumprimento da lei. As políticas de cotas não são cumpridas, o Ministério Público do Trabalho tem dificuldade para punir as empresas que simplesmente ignoram a lei e, se há uma legislação excessiva ou se a lei não funciona, que seja feita uma revisão dessas leis. O que não dá é para facultar à sociedade o cumprimento ou não das leis. As barreiras arquitetônicas também atrapalham muito. Em termos de acesso da pessoa com deficiência ao esporte, temos garantias com a Lei Nº 9.615, que é lei geral do esporte. Ela garante recursos para formação de atletas paralímpicos e a participação da Caixa Econômica Federal como patrocinadora do paradesporto. E há a Lei Agnelo Piva, que remete recursos ao Comitê Paralímpíco Brasileiro. O fato é que o Brasil é, nas Américas, o país número um no esporte paralímpico, superando até os Estados Unidos. Ou seja, o desempenho do Brasil em paralimpíadas é o de uma potência global. Nesse aspecto, o Brasil está na vanguarda do processo.

VC. Qual a sua expectativa com as Olimpíadas de Tóquio?
LG. O Japão já teve a experiência de fazer os Jogos Olímpicos de 1964. É um país organizado, com tradição esportiva e uma infraestrutura que, em parte, também é aproveitada daquela usada na década de 1960. Um verdadeiro legado na otimização de recursos. É um país de avanços tecnológicos fantásticos e por isso tem tudo para ser uma grande Olimpíada. Há apenas uma atenção especial ao momento por causa do surto do coronavírus, uma epidemia que pode inclusive colocar em risco a Olimpíada caso essa situação pareça fora de controle.

VC. E o que é possível esperar da participação brasileira em Tóquio 2020?
LG. Apesar do processo de desinvestimento após a Rio 2016, em função da crise econômica do país, da mudança de governo e da contestação dos nossos gestores esportivos, muitos denunciados ou condenados, e apesar da ausência de um legado olímpico – que não aconteceu na medida do que se esperava para o Rio de Janeiro –, a nossa equipe olímpica nacional é basicamente a mesma que se apresentou com grandes resultados em 2016. Assim, analisando os resultados parciais do Brasil nesse quadriênio, dá para fazer uma projeção que em Tóquio o país tenderá a manter o seu quadro de medalhas no mesmo patamar, ou seja, algo entre 15 e 20 medalhas, ainda que seja difícil falar em cores – ouro, prata ou bronze. Mas o Brasil chegará forte para manter o padrão que apresentou na Rio 2016. O risco, como disse, é esse desinvestimento, que nós percebemos nos últimos quatro anos, trazer consequências a partir das Olimpíadas de Paris em 2024.

VC. Tem algum projeto de um próximo livro?
LG. Não ainda. Já tive a experiência do primeiro livro, Lars Grael – A saga de um campeão e depois, mais recentemente, Lars Grael – Um líder para os nossos tempos. Acho que falta viver um pouco mais, ter mais histórias para contar para que eu possa adicionar algum novo título, talvez com uma outra temática.

VC. Que legado gostaria de deixar com a sua experiência de vida e o seu trabalho?
LG. O de um brasileiro apaixonado, apaixonado pelo seu país. Apesar de a minha família ter uma origem europeia/nórdica, porque parte dela é dinamarquesa, o meu país é o Brasil, que sempre tive orgulho de servir como um soldado da pátria, como um atleta olímpico. Penso também em paixão e determinação por ter aceitado desafios e não ter entregue o jogo quando a vida esteve mais difícil, no limiar entre vida e morte, por causa do acidente que sofri em 1998. Um perseverante, um lutador. É a imagem que eu gostaria de passar. E não necessariamente a do campeão, porque eu não fui o maior campeão nem mesmo do meu esporte.