Fala que te ouço

Escutar o outro é ouvir aquele ponto de sofrimento, de impasse, diz o psicanalista Christian Dunker

*Entrevista publicada na revista Vila Cultural Edição 182 (Junho/2019)

 

Christian Dunker. Foto Divulgação

“A escuta é um percurso, uma espécie de viagem que você faz junto com o outro”, diz o psicanalista Christian Dunker, que lança este mês O palhaço e o psicanalista (Planeta), em coautoria com Claudio Thebas, escritor, educador e palhaço. Com o subtítulo Como escutar os outros pode transformar vidas, Dunker diz que é um “livro-exercício” que sintoniza com o momento atual do Brasil e do mundo, já que parece cada vez mais difícil ouvir o que o outro tem a dizer. Educados para a solidão silenciosa, A escuta em ambiente digital ou Escutando chatos, fascistas e outros fanáticos são alguns dos capítulos do livro.

Ouvinte atento inclusive por força do trabalho, Dunker faz muita gente escutar o que ele tem a dizer, não só no consultório ou na sala de aula (como professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), mas também nos outros espaços que ocupa com suas ideias e reflexões, que estão em livros, textos na imprensa e falas que cativam a audiência no ambiente digital. Desde 2016, quando publicou o primeiro vídeo – sobre autismo –, Dunker mantém um canal no YouTube, agora com mais de 100 mil inscritos. Como autor, ganhou o prêmio Jabuti de melhor livro em Psicologia e Psicanálise em 2012 com o livro com Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (AnnaBlume, 2011). Repetiu o feito com Mal-estar, sofrimento e sintoma: A psicopatologia do Brasil entre muros (Boitempo, 2015), também vencedor do prêmio Jabuti na mesma categoria. No mês passado, falando sobre o amor, Dunker participou da série de encontros mensais promovidos pela Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBPSP) na Livraria da Vila. Leia a entrevista que o psicanalista concedeu à Vila Cultural.

 

Vila Cultural. Gosta de entrevistas?
Christian Dunker. Gosto bastante. Acho que é uma extensão da prática de escuta, que se dá no consultório e também na docência. É uma mistura das duas coisas e acaba sendo divertido. A entrevista também convoca para a resposta em tempo real. Para quem escreve, como eu, é bom poder escutar ideias que surgem numa conversa assim, mais aberta, mais livre.

VC. De onde vem seu gosto pela escrita?
CD. Nunca tinha me interessado pela escrita profissionalmente. Não achava que era capaz, apesar de gostar muito da leitura. Diria que foi algo meio fortuito. Quando estava começando a vida como professor, alguém me pediu para fazer uma colaboração para uma revista de psicologia num momento em que eu tinha acabado de ver, pela quinta vez, o filme Blade Runner, o caçador de androides. Daí eu disse que iria escrever sobre o filme, pelo qual eu estava apaixonado. Foi a primeira coisa que escrevi, e depois veio um segundo texto, um terceiro e durante uns dez anos fui aprimorando essa prática, uma espécie de colunismo, que foi me dando essa cancha de falar de alguns assuntos. Depois vieram os livros, as teses e o início, digamos assim, de uma escrita mais acadêmica, marcada pelo lacanismo, que tinha um problema porque ninguém entendia. E por isso parecia ainda mais legal. Porque você citava coisas eruditas. E num determinado momento, aquilo tudo passou a ser não só uma grande bobagem narcísica e um sintoma da elite intelectual brasileira, mas também um sintoma pessoal. Comecei a me esforçar para escrever mais para curar isso.

VC. O que mudou com esse esforço?
CD. A escrita foi se dessacralizando. No começo, escrever e publicar era um momento em que eu desenvolvia a dança da chuva, a convocação dos deuses, o rito das palavras. Mas depois comecei a escrever em aeroporto, café da manhã, entre um paciente e outro. A escrita sob contingência, sob demanda, me formou para uma outra experiência de texto. O texto que você está por entregar, que está em atraso e precisa ser resolvido, que cria outra dinâmica.

VC. É prazer, sofrimento ou obrigação?
CD. É diversão. Depois que você faz o dever de casa é hora da brincadeira, hora de inventar. Você começa a escrever sobre temas diferentes e isso vira uma aventura. No começo, algo importante para mim sobre a escrita é que ela teve uma relação com a minha insônia. Durante alguns anos eu tive problemas de sono. Chegava uma hora que não adiantava mais ler, nem sair da cama, aquela agonia de O veneno da madrugada, o livro do Gabriel García Márquez. Descobri que podia escrever e aquilo me tirava do círculo infernal de pensamentos. Era uma escrita mais tensa. Depois foi se transformando num exercício, porque há coisas sobre as quais você precisa escrever para poder pensar em outras depois.

VC. Como é o novo livro, O palhaço e psicanalista?
CD. Derivou de um encontro meu com um palhaço profissional, o Claudio Thebas. Além de escritor e educador, Thebas é um palhaço, com formação específica para essa atuação. Nos encontramos numa escola e começamos a perceber que tínhamos algo em comum. Ele ia falar e eu já sabia exatamente o que seria. Eu falava uma coisa e ele já vinha em cima. Começamos a conversar e a entender que havia um elemento muito importante e comum nas nossas práticas, aparentemente tão distantes, que é a escuta. Um palhaço é um escutador dos conflitos e das mazelas sociais assim como um psicanalista. Muito da nossa posição é semelhante: meio marginal; alguém de quem as pessoas, apesar de terem medo, ao mesmo tempo procuram; e tratamos da alma e dos sofrimentos das pessoas. Há histórias conexas na informação dos personagens, enquanto personagens sociais. Resolvemos escrever um livro, que é para este momento do Brasil, sobre a escuta. A arte de escutar pessoas e transformar vidas.

VC. Como é o texto?
CD. É um texto acessível, para todo mundo, em que contamos nossas histórias. As histórias de palco do Thebas. As minhas histórias da clínica. E é um texto que foi composto realmente a quatro mãos. Uma coisa que gosto muito de fazer e que faço também com os meus alunos. O texto vai e volta. Eu mexo no texto do outro, o outro mexe no meu texto. Gosto dessa hibridização da escrita e sei que tem muita gente que tem uma relação de apropriação com o que escreve. Claro que tem muitos textos que são assim, mas essa ideia da parceria dentro do texto é muito legal. Ela trata do nosso narcisismo de autor. Transfere o interesse para o texto.

VC. O título é sugestivo.
CD. E é isso mesmo o que parece. Temos um diagnóstico consensual que, de repente, não conseguimos mais escutar. Dentro da família, nas relações de grupos, de gêneros, de classe. Surgiu um silenciamento por um lado e um ressentimento por outro. É isso que nos convoca para entender o que aconteceu com a nossa capacidade para escutar a diferença, de tratar o conflito pelas palavras, de enfrentar e tornar a diversidade um fator de alavanca para a produção de novos mundos. Como é que faz para escutar? Nós achamos – e essa é uma das hipóteses do livro – que há muito pouca educação para a escuta. Na escola, por exemplo, aprende-se a ficar quieto. O legal é levantar a mão quando quer falar. Daí, você participa. Se você estiver ali, trabalhando na escuta, ninguém dá ponto, ninguém dá crédito. Falar é bom. Escrever é bom. Escutar nem tanto. Escutar está muito associado a obedecer. “Meu filho não me escuta”, é o que se diz. Na verdade, o filho não obedece. No livro, olhamos para os dramas amorosos, relacionais, familiares, em que a dificuldade de escuta é bizarramente pronunciada.

VC. Como fica o lugar de fala?
CD. O lugar de fala é muito importante, transformativo. E a escuta é uma espécie de contraponto. Como é que nos colocamos inclusive em relação ao lugar de fala real, ao ponto de vista feminino, ao ponto de vista negro, ao ponto de vista pobre, ao ponto de vista diferente. Como é que você responde e acolhe isso do outro lado. Se não, fica muito monológico, que é um pouco o diagnóstico que fazemos.

VC. Há uma ironia no encontro do palhaço e do psicanalista?
CD. É um livro um pouco autoirônico, como só podia ser. Ele brinca com a ideia da autoajuda. Em alguns momentos, propomos literalmente fórmulas mágicas e quem acredita nelas não vai se dar muito bem. Mas são fórmulas mágicas. Atenção ao tempo, à troca de turno. Atenção ao que é o afeto que circula no outro. Como é que você constrói empatia? Como é que você constrói relevância alternando a função mais colaborativa, mais compreensiva da escuta, com a função mais antagonística, às vezes mais competitiva da escuta. Vai-se criando a ideia de que a escuta é um percurso, uma espécie de viagem que você faz junto com o outro. Não é um sentimento, um ato separado no tempo. A escuta é também a possibilidade de sair de si, de colocar-se no lugar do outro, estranhar-se com o outro, ser afetado por esse estranhamento e depois compartilhar o produto com os dois ou mais participantes. Tem um joguinho aí. Nós falamos inclusive com pessoas de empresas, que precisam profissionalmente escutar seus subordinados – ou seus chefes. Quantas situações dramáticas não acontecem porque você não consegue escutar o outro? Escutar é renunciar ao poder, é desfazer-se do seu papel, é deslocar-se da sua identidade. Escutar é um trabalho subjetivo. Não é só técnica. Há técnicas que ajudam muito, mas é fundamentalmente uma posição ética, uma posição diante do “mando-obedeço” ou “nós estamos realmente iguais entre diferentes e diferentes entre iguais”. Você cria problemas e soluções de escuta.

VC. É uma experiência bastante possível então…
CD. É possível, sim. Vemos isso na experiência dos nossos analisantes. Nada mais definidor do que é uma neurose do que alguém que não consegue escutar o outro ou escutar-se. Brincamos que esse percurso pode ser realizado a partir de quatro “agás”, da letra H. O primeiro H é de hospitalidade. Se você quer aprender a escutar, precisa aprender a ser anfitrião, a receber as pessoas, a servir o outro, colocar o outro à vontade no seu espaço, precisa ser hospitaleiro. Se você quer escutar o outro, também precisa ter algum domínio da experiência do hospital. Escutar o outro é escutar aquele ponto de sofrimento, de impasse, de conflito, de problema, de indeterminação sobre para onde vamos. Geralmente convocamos a escuta quando há alguma angústia clamando por isso. E tem o terceiro H, que é de hospício. O que é que você faz com a sua loucura? Tranca ela ali dentro ou traz ela para sua escuta? Por que o que você fizer com a sua loucura é o que você vai fazer com a loucura alheia. Martelar na cabeça no outro dizendo ser um alienígena? Você tem que controlar… Ou então inventar algum tipo de loucura fora do hospício, uma loucura produtiva. E o último tempo da escuta é o hospedeiro, que é ter encontros, escutar os outros e depois transmitir, como um hospedeiro, o bicho que te pica. Você escuta e precisa transmitir. A escuta é um processo de generalização simbólica, de uma experiência local e singular de sofrimento para uma partilha que faz daquela experiência um fragmento simbólico de
todos nós.

VC. Sempre funciona?
CD. Escuta é risco. Você pode se atrapalhar. Quando você deixa o outro entrar na sua vida, ele começa a pisar na sua horta, a chutar os seus brinquedos. A intimidade gera desrespeitos, como já dizia Montaigne. Aí você tem esse processo de recomposição. A escuta é sempre autocurativa e heterocurativa. O mal é quando você faz isso sem cuidados, sem carinho, sem se escutar e sem escutar o outro. Qualquer coisa pode ser dita para qualquer pessoa. Tudo depende da capacidade de suportar a verdade, a capacidade de compartilhar o sofrimento.

VC. O que faz para lidar com um mundo que parece tão violento, tão barulhento?
CD. Análise, supervisão, leitura. A leitura não é entretenimento. A leitura cura com informação na alma. As experiências de deslocamentos, de viagens, são muito importantes também. Não só do deslocamento físico, mas a viagem de conseguir se colocar no ponto de vista do outro. Aumentar a diversidade do seu universo discursivo, do seu universo linguístico, do seu universo sociocultural. Isso é uma coisa que fazemos meio por disciplina formativa, mas depois que se estabelece vai em frente. A escrita, por exemplo, tem essa função de ajeitar as abóboras dentro da carroça. Ela vai cuidando, organizando, permitindo que você dê nome para estados informulados. Esse conjunto de práticas é importante para fazer o que fazemos.

VC. Que avaliação faz da sua trajetória profissional?
CD. Tem uma atitude que se aprende um pouco com a clínica que é não deixar se levar muito por aquela ideia “ah, que ótimo, está dando tudo certo, você é um grande analista” e dali a pouco a pessoa está dizendo: “Que inferno, você é uma droga, você não funciona”. Então, essa perspectiva mais avaliativa, mais imediata, é um pouco inútil. Mais ou menos como fazer balanço da vida. Quer fazer, faça de vez em quando, mas faça bem. Uma vida em estrutura de avaliação. Que é o que o otimismo nos dá. A segunda consideração é que estamos muito acostumados a viver de ideais e esperanças. Em momentos de ruína, ficamos esperando. Em nome do quê? Qual o sentido de tudo isso? Alguém tem que me prometer algo, o que é justamente uma posição muito frágil. A graça da história é quando você se dispõe a avançar sem esperança alguma. “Vai dar tudo errado. A crise ambiental provavelmente vai nos jantar a todos. O capitalismo já está nos proletarizando e nos precarizando”. O futuro não precisa ser um jardim de rosas para ser interessante. Vamos lutar contra isso, colocar o desejo numa outra direção, mas de fato o otimismo esperançoso não faz muito a minha cabeça, muito menos esse pessimismo fácil, que é o cara que sempre ganha. Basta ser pessimista para ganhar ao dizer que dessa vez vai terminar mal. Porque vai terminar. O pessimista, no fundo, é o pensamento curto, que não suporta muito a dúvida, que não se coloca profundamente a incerteza e a indefinição, justamente porque ele já sabe que vai terminar mal.

VC. Onde você se encaixa?
CD. Eu tenho um otimismo metodológico. Essa situação atual do Brasil, por exemplo, não podia ser de outro jeito. A história não avança linearmente, acumulando triunfos. Nem a história nem a ciência nem a estética. Nada avança assim. Quem perdeu não vai gostar. Vai querer inverter a história. E estou achando muito interessante porque nunca se falou tanto de filosofia, de sociologia, de educação como agora. Então, quando você tem uma explicitação do que uma parte importante da população brasileira pensa, você pode tratar isso melhor. É um pouco assim hegeliano quando o conflito se coloca. É sinal de que daqui a pouco a gente vai para uma outra formulação, para um outro momento e eu acho isso interessante. Mas é pau, é guerra, é Fla-Flu, é Palmeiras-e-Corinthians. E isso faz a situação ser interessante. Se os intelectuais querem ficar pastando no seu curral universitário, sem nenhum risco, sem nenhuma afetação política, isso é muito pouco. É agora que temos que mostrar a que viemos, do que somos feito. Sempre foi assim.

VC. Falemos de amor.
CD. O amor é um tema infinito e absolutamente necessário no momento. Ele é uma espécie de lubrificante entre a dinâmica do gozo, o poder e as pretensões do desejo. Se não conseguir introduzir o amor entre essas coisas, nenhuma transformação que valha a pena é possível. Fazer amor, como se diz, é algo que realmente importa. Se você não fizer, não existe. Isso é de uma interessância ontológica, coisas que só existem se nós as criamos. E elas não ficam porque uma substância como o amor é temporal. Se você não refizer continuamente, o amor se dissolve, vai embora. E ele é feito com palavras. Se você quer amar e ser amado, tem que dizer. Não é essa a história? “Não, mas ela sabe que eu amo porque digo isso com gestos”. Tudo bem, os gestos são, sim, formas de dizer. Mas no geral nós dedicamos muito pouco, ou menos do que deveríamos, a fazer o amor acontecer. Um pouco porque isso depende de repertório. Tem que ler e não adianta você achar que vai ser um novo amor, ter sentimentos belos e isso resolve. Por isso o amor é uma arte. No sentido de você ter que pegar na mão e fazer acontecer com palavras. De onde vão vir essas palavras? Do cinema, do teatro, da literatura, das formas que já se “inventaram” para tratar do amor.

VC. E o amor na psicanálise?
CD. Na Psicanálise, Freud se dedicou a dois grandes temas ligados ao amor. Primeiro, como o amor começa. Quais são as condições para que eu consiga amar o outro. Quanto mais neurótico, mais condições. Há condições que envolvem repetições. Repetições de experiências infantis, porque aprendemos a amar com nossos pais, aprendemos a amar com histórias de amores, histórias de paixões que vão se ressignificando uma à outra. Há todo um universo de perguntas sobre como o amor começa. E há uma segunda problemática sobre por que o amor tende a se degradar. Por que, se você deixa ele seguir o seu próprio curso, ele acaba. Tem um tempo, tem um percurso e ele tendencialmente passa por um “rebaixamento”, uma “degradação”, que vai levar, diz Freud, a mulher a se consolar com os filhos e o marido a reencontrar os amigos do bar e se consolar com a pinga. Essa tragédia menor das experiências amorosas também é derivada de que no fundo ela vai devorando suas formas de amor até que você acaba renunciando a isso e sua vida fica mais pobre.

VC. É o que nos leva ao analista…
CD. Aí, há questões mais estruturais nas formas de amor. O amar e ser amado, o amor e o ódio, o amor e a indiferença. Ou seja, há gramáticas amorosas que se combinam com posições de gênero, com experiências de masculinidade e feminilidade, com as escolhas e objetos, com identificações. Do amor, você recria todas as problemáticas humanas que, no final das contas, trocando em miúdos, é o nosso ganha-pão. A forma mais potente e mais eficaz de mudar as pessoas é no amor. A Psicanálise é uma cura pelo amor. E o que Freud chama de transferência é um tipo metodológico de amor. Ou aprendemos a operar com essa substância ou as outras formas – a educação, a disciplina, o controle, a ameaça – são sempre meio provisórias, meio exteriores.

VC. Amar na pós-modernidade…
CD. Há uma diferença importante que é interveniente no nosso assunto. Entre o que achamos que é a vida dos outros, o que escutamos como interpretação do mundo, seja no sentido da felicidade extrema – aquela em que está todo mundo e você não, porque não foi chamado – ou do sofrimento, em que estão duas experiências que estão ligadas a como você escuta, interpreta o outro. E estamos muito consumidos por uma versão excessivamente homogênea e muito inautêntica do que está acontecendo: de que está todo mundo em ruínas, em frangalhos e o mundo está num degradação coletiva… Não é que seja falso, mas chegando mais perto das pessoas, uma a uma, como fazemos, a coisa não é bem assim. Há muita crença nesse discurso coletivo, que muitas vezes não traduz a experiência real e concreta das pessoas, a experiência “miúda” em que você tem pequenas felicidades, pequenos sonhos, grandes acontecimentos, vidas muito interessantes acontecendo entre misérias e delírios. Acho que a gente perdeu muito, mas talvez seja o impacto de uma primeira geração que se serve da linguagem digital, das facilidades de deslocamentos. O mundo se encolheu e nós estamos achando que entramos de gaiato. Mas não é bem assim. É a primeira vez que estamos vivendo isso, o que cria ilusões, deformações na interpretação da nossa experiência. É preciso olhar para o miúdo para entender que não é bem assim. E às vezes, claro, você também vai encontrar situações que são até “mais assim” do que essa narrativa mais ou menos de base, a do mundo líquido, do mundo efêmero, de uma certa leitura do mal-estar, mas eu diria que falta tragédia, no sentido ético do termo. Não é que vai terminar mal. Tragédia no sentido de que quanto mais você corre para fugir do seu destino mais você o realiza. Tragédia é algo mais relacionada a uma ética subjetiva do que a um estado de mundo. De você estar no alto da montanha percebendo algo de terrível que está acontecendo. É um pouco mais complicado. E é justamente isso que torna a tragédia algo muito mais interessante. Para imaginar que se o mundo fosse uma comédia ligeira e se minha vida se contentasse assim, eu acho isso muito pouco. É um resíduo desse grande discurso da miséria universal, que não é bem assim. A miséria às vezes tem uma outra forma. Ela é pobreza de espírito.