O futuro é aqui

“O mundo novo é melhor que o anterior em muitos sentidos, mas parece a ponto de explodir a cada segundo”, diz o escritor Daniel Galera

Foto Susanne Scheyer/Divulgação Companhia das Letras

*Matéria publicada na revista Vila Cultural 167 (março/2018).

Duas décadas atrás, diante das perspectivas fascinantes de um novo mundo prenunciado pela internet – e muito antes da confusão geral com redes sociais e a supremacia da atenção digital na vida contemporânea – o escritor Daniel Galera começou a publicar textos e contos na web e não demorou muito para ganhar uma audiência insuspeita, seduzida e fascinada pela fluência, inteligência e pela habilidade e talento raros do jovem autor ao juntar o código ancestral da escrita com as novas tecnologias.
O tempo passou, a história mudou radicalmente e, alguns ótimos livros depois, apesar de todas as transformações e da revolução radical que não raro resulta na sensação de uma realidade caótica, Galera, 38 anos, ocupou espaço como um dos autores relevantes de sua geração mantendo os mesmos atributos que lhe deram visibilidade. Fluente, inteligente e ainda mais hábil com palavras e ideias, revela-se, sem ficções, um observador lúcido e consciente do momento atual do Brasil e do mundo, como se lê nesta entrevista exclusiva à Vila Cultural.
Seu livro mais recente, Meia-noite e vinte (Companhia das Letras),focaliza, na ficção, o reencontro de três amigos que agitaram a internet no fim dos anos 1990 e se reaproximam depois da morte de outro amigo do grupo. São, como diz apresentação do livro, “três vidas acuadas entre promessas não cumpridas e anseios apocalípticos”.
Barba ensopada de sangue (Companhia das Letras), de 2012, é o livro mais premiado, traduzido e comentado de Galera, que guarda outros elogios para Cachalote, de 2010, em coautoria com o ilustrador Rafael Coutinho, numa parceria que foi retomada recentemente e que deve render novos projetos.
Entre outros livros, Galera publicou também os romances Cordilheira (2008), Mãos de cavalo (2006), O dia em que o cão morreu (2003), levado ao cinema por Beto Brant e Renato Ciasca, e Dentes guardados (2001), adaptado para o teatro por Mário Bortolotto. Os dois últimos saíram pelo selo independente Livros do Mal, que Galera criou, junto com Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla em 2001, quando já tinha leitores fiéis como colunista do “mailzine” CardosOnline (COL), uma referência literária na época. Leia a entrevista do escritor.

Vila Cultural. Você gosta de entrevistas?
Daniel Galera. Gosto cada vez menos. Talvez porque o mundo esteja saturado de opinião, opinar e existir se confundem nos meios digitais, e são raras as ocasiões em que considero as minhas próprias opiniões interessantes o suficiente pra engrossar o caldo. E entrevistas tendem a ser repetitivas. Depois de quase duas décadas fazendo isso, responder a certas perguntas recorrentes cansa, às vezes me forço a inventar respostas novas mesmo que os fatos ou opiniões não tenham mudado, só pra tentar arejar. No começo, cada oportunidade de entrevista era uma chance preciosa de me divulgar, e hoje já não sinto aquela urgência do começo, na maior parte do tempo meu impulso é de encolher. Mas sinto prazer em falar dos meus livros e de algum assunto que esteja me fascinando na ocasião da entrevista, então sempre resta uma promessa de prazer ao se colocar, de novo, na posição de entrevistado.

VC. Que avaliação faz da trajetória de Meia-noite e vinte até aqui?
DG. Sei que o livro pareceu insuficiente a muitos leitores que conheceram meu trabalho a partir do Barba ensopada de sangue, de longe meu livro mais lido, mas tenho a convicção de ter escrito o livro que eu queria, ou o livro que eu precisava e era capaz de escrever naquele momento. Gosto de perceber que, entre os leitores que gostam do romance, a grande maioria entendeu que o pano de fundo apocalíptico da história, a pulsão de morte e a sensação de impotência que permeiam a narrativa, não implicam uma adesão ao niilismo. Está mais para uma fotografia bastante pessoal daquilo que me parece ser um momento de transição, de acerto de contas da minha geração em específico, e da humanidade como um todo, com a noção de progresso e o antropocentrismo que guiaram a civilização moderna. O livro teve espaço em quase todos os veículos que cobrem literatura, mas me frustrei com a ligeireza da maioria das resenhas, muitas contentes em apenas ecoar o material de divulgação. Crítica mesmo, digna do nome, não li quase nenhuma. Não sei onde foi parar a crítica. Quer dizer, sei: as opiniões mais instigantes apareceram em blogs pessoais e vlogs de literatura. Um aspecto do livro que lamento ter sido pouco comentado são as relações afetivas, o jogo de desencontros trágicos que tentei montar, e as maneiras como o mundo digital transforma nossos afetos e relações sexuais, distanciando os corpos. É uma das partes do livro que mais gosto.

VC. Como observa a “ideia” de que o interesse pelo autor, no nível do espetáculo, às vezes se sobrepõe ao interesse pela obra?
DG. É impossível não jogar esse jogo da espetacularização do autor. A teoria literária apresentou desde os anos 1960 dois casos igualmente convincentes, o da total desimportância ou inexistência do autor, de um lado, e o da absoluta importância do autor e dos contornos de seu discurso para tudo que é dito na ficção. Quando comecei a publicar, no fim dos anos de 1990, as teorias identitárias e o lugar de fala ainda não eram presentes no debate público, mas a internet já tinha ampliado a figura do autor como elemento de frente da atividade literária. Surgiu toda uma nova escrita de si, muito espontânea na web e fanzines, que continua se desdobrando hoje. Quando publiquei meus primeiros livros, eu procurava negar a importância do autor no que escrevia, sublinhando que meus livros não eram autobiográficos, mas era em grande parte cegueira minha para as complexidades do assunto. Publicar, no nosso tempo, é entrar no ringue da espetacularização, mesmo quando a obra não apresenta elementos autobiográficos nem explora abertamente a questão do autor. Até a estratégia de se ocultar ao máximo enquanto autor tem consequências no nível do espetáculo que envolve uma obra tornada pública com o estatuto de ficção literária. Eu não tenho um projeto delineado ou nada a provar nesse sentido, mas me entrego ao fluxo sem negar que faço parte dele, e que ser um autor coloca em movimento uma série de consequências e responsabilidades complicadas e em constante mutação.

VC. Por falar nisso, qual é, hoje, perto dos 40 anos, a sua principal motivação para escrever? Por quê?
DG. Faz um ano e meio que não escrevo ficção e há momentos em que me pergunto se a insistência em fazer isso não é meramente inercial. Faz vinte anos que escrever é minha principal interface com as outras pessoas, o eixo da minha identidade. O que me levou a escrever foi a paixão pela leitura, o que me move é levar um pouco do prazer e perturbação que encontro nos livros aos meus leitores, e acho que nos meus melhores momentos consigo isso. Eu escrevo bem, nunca duvidei disso, mas seguir criando requer mais que isso, e sinto uma mistura de insegurança com vontade de continuar.

VC. Que avaliação faz da sua trajetória e da opção pela literatura e como você se relaciona com a sua obra?
DG. Não saberia como avaliar minha trajetória, minha cabeça não funciona assim, não consigo nem quero visualizar uma narrativa pessoal nesse nível. Mas me relaciono bem com minha obra passada, tenho orgulho do que publiquei, nunca joguei pra torcida e evitei me expressar de forma didática ou presunçosa. Queria ter me dedicado mais a escrever não ficção. Mais que isso, melhor perguntar a opinião de leitores e críticos.

Daniel Galera vive em Porto Alegre e acaba de retomar a parceria com o ilustrador Rafael Coutinho, com quem lançou, em 2010, o elogiado Cachalote

VC. Com o “diagnóstico íntimo” que tem feito da sua geração, o que, na sua opinião, a aproxima (ou a distancia) da geração que a precedeu e da geração que a sucedeu?
DG. O que distancia minha geração das anteriores é o narcisismo e a carência elevados a ethos predominante. O que a distancia das gerações seguintes é o relativo senso de estabilidade e crença no progresso que estava presente na minha juventude, mas que definitivamente se perdeu neste novo milênio. O signo do milênio é a precariedade, e as gerações mais novas já nascem um pouco melhor adaptadas a ela. O conforto material só aumenta, mas emprego fixo e aposentadoria já são ideias anacrônicas. A liberdade individual só aumenta, e com ela a ansiedade. O mundo novo é melhor que o anterior em muitos sentidos, mas parece a ponto de explodir a cada segundo.

VC. Por que decidiu viver em Porto Alegre e o que há de melhor e pior nessa escolha?
DG. Eu não diria que adotei Porto Alegre como lugar fixo. Passei a maior parte da vida aqui, mas houve idas e vindas, e é possível que eu vá embora de novo em breve. Voltei a morar na cidade em 2009, em grande medida por questões econômicas. Já são quase dez anos, e posso dizer que me sinto bem aqui, porém muito menos entrosado do que me sentia em épocas passadas. A maior parte dos meus amigos foi embora. Se eu tinha alguma fração de identidade gaúcha, acho que ela se esvaiu. O amor pelo exagero, o bairrismo, a mítica futebolística, os valores ditos tradicionais, tudo isso me causa, hoje, uma estranheza um pouco incômoda. Mas gosto de Porto Alegre, a cidade é bonita e agradável nos dias secos, gosto dos parques não cercados, das churrascarias. Há muita gente aqui se esforçando pra que a cidade siga tendo uma cena cultural viva e espaços públicos utilizáveis, e graças a essas pessoas a atmosfera fica respirável.

VC. Como cidadão e como artista, como percebe o Brasil neste momento e qual a sua expectativa com as eleições para este ano?
DG. Mencionei a precariedade que rege o nosso tempo. Eu vejo o Brasil inserido nesse cenário de precariedade onipresente. A precariedade política das campanhas eleitorais corruptas e moralmente fraudulentas, do gosto amargo deixado pelo impeachment, da impotência e falta de legitimidade do governo Temer, do crescimento das agendas retrógradas e puritanas e da percepção aguda da desigualdade de riqueza se soma à precariedade do mercado de trabalho, da destruição do meio ambiente, das mudanças climáticas provocadas pelo homem, da superpopulação. Minhas expectativas para as eleições são baixas, tenho pouca esperança de que um candidato forte apresente propostas que encarem de frente a situação, enfatizando, por exemplo, uma reforma tributária e previdenciária mais distributiva, investimento em energias limpas et cetera. Todos alegarão ter essas preocupações em seus programas, mas resta ver se conseguirão convencer uma população exausta e melhor informada de que realmente farão algo de concreto. Isso sem nem entrar em questões mais sociais e de direitos humanos, como legalização do aborto e da maconha. Todos os candidatos são covardes na hora de debater esses temas. O candidato ideal não pode ser um aventureiro econômico, mas também precisa sinalizar que, no mínimo, não atrapalhará o trabalho de movimentos organizados que pressionam para que o país se torne mais justo. Em muitos sentidos, os votos para o legislativo são ainda mais importantes do que o voto na presidência. Enfim, estou dizendo obviedades, chega. A verdade é que não sei o que vai acontecer e espero apenas que não sejam trevas. Ultimamente tenho me preocupado com questões ambientais, e meus votos provavelmente serão sensíveis a esse tema.

VC. Como alguém que tem consciência do sentido que a arte pode dar ao caos/tumulto, o que pensa sobre episódios como a censura à mostra Queermuseu – Cartografias da diferença, em Porto Alegre, e toda a discussão e as consequências que o episódio tem gerado desde então?
DG. Penso que a instituição que fechou a exposição foi covarde, que os indivíduos que causaram os tumultos nos diversos episódios são ignorantes e oportunistas (desejavam atenção pública e conseguiram) e que o debate que se seguiu foi necessário para colocar alguns pingos nos is. Representação artística não é apologia, pensamento não é ação (ou pensar em pecado não é pecar, esse ajuste à doutrina já nos pouparia de muita aporrinhação religiosa), e a arte é justamente o espaço da sociedade onde temas sensíveis e incômodos podem e dever ser articulados e pensados, com liberdade e responsabilidade. Os pais devem decidir que exposições seus filhos podem ver e ninguém tem a ver com isso. Aquela decisão inicial do MASP de proibir a entrada em uma mostra a menores de 18 anos foi ridícula, e felizmente revista.

VC. Nos apropriando de uma “pergunta esplêndida” que você citou numa entrevista (a Camila von Holdefer), “o que significa pensar a esperança fora da noção de progresso”? É possível, afinal, fazer isso?
DG. Acredito que é possível. Anna Tsing, uma antropóloga americana, tem uma visão muito interessante sobre como o futuro da humanidade envolverá formas novas de convívio nos destroços do capitalismo atual. Não se trata de pregar ou antever o fim do capitalismo, mas de antever suas transformações após as crises atuais e vindouras. Uma outra pensadora incrível, Donna Haraway, também desenvolve ideias nesse sentido. Em suma, creio que pensar fora da noção moderna de progresso envolve abandonar o antropocentrismo (não significa abandonar os valores humanistas), melhorar o convívio com as outras espécies, reduzir a natalidade, modificar hábitos de consumo, recuperar ecossistemas e protegê-los, saber extrair o melhor dos destroços que restarão do nosso desperdício. Sendo realista, não acho que nada disso seja provável, mas tampouco acho que sejam objetivos utópicos, o que autoriza alguma medida de esperança e pode levar à ação. A ficção literária pode cumprir um papel nisso, com seu caráter especulativo, com a elaboração estética desse tipo de ideia, enfim, com o estímulo da imaginação e da sensibilidade.

VC. Na prática e no dia a dia, o que faz para se localizar integralmente num mundo em que “o apocalipse parece próximo e nunca se consuma”?
DG. Na prática, não faço muita coisa e com frequência me envergonho disso. Mas tento manter uma disposição mental que me blinde contra o excesso de ansiedade e o cinismo, e também contra ideologias como o neopositivismo do Vale do Silício, que parece empenhado em abandonar o planeta Terra em frangalhos para habitar computadores e outros planetas, uma escatologia mais religiosa do que científica, uma vez que os milagres científicos presumidos dificilmente se realizarão. O futuro é aqui e se assemelha muito ao que vivemos hoje.

VC. O que pensa sobre redes e mídias sociais e como lida com esse tipo de comunicação no cotidiano?
DG. Saí do Facebook em 2012 e não tenho estômago para o tipo de debate que predomina nas redes sociais. Mas tenho perfil em algumas redes, gosto de publicar textos e fotos, manter contato com amigos e leitores, mergulhar pelo menos o pé nesse redemoinho. Sou saudoso da internet anterior às redes sociais, na qual a criatividade se estendia à própria forma dos sites e o ambiente não estava dominado pelas megacorporações e anunciantes. Mas esse saudosismo não me torna cego às linguagens novas que surgem em chats, vídeos, mensagens instantâneas. A internet é absurdamente estimulante, é quase um “ruído branco” de estímulos. Apenas não estou interessado em permitir que a internet abocanhe todo o meu tempo de atenção desperta nessa vida, e algumas escolhas precisam ser feitas. Ler um romance leva tempo e exige concentração. Pensar, também. E sentir certas coisas, também.

VC. Em que projetos trabalha atualmente?
DG. Tenho apenas algumas anotações para contos que não cheguei a desenvolver. Também retomei a parceria com o Rafael Coutinho e devemos trabalhar em um novo livro a quatro mãos. De resto, estou bem perdido, tentando ler coisas que me apontem uma direção.