Pop sim, e daí?

A filósofa Djamila Ribeiro sistematiza a potência de suas narrativas em Quem tem medo do feminismo negro?

A combinação de inteligência, beleza, carisma, fluência, espontaneidade e delicadeza e o tom de voz cativante criam uma atmosfera sedutora em torno da escritora, filósofa, militante e feminista Djamila Ribeiro, 37 anos, que acaba de lançar, pela Companhia das Letras, Quem tem medo do feminismo negro? Trata-se de uma coletânea de artigos publicados na internet a partir de 2014, com os quais ela ficou cada vez mais conhecida, lida e admirada – além de odiada, obviamente. “Já tive até hater de estimação”, diz Djamila, que compartilha suas atividades pessoais e profissionais com uma audiência perto dos 100 mil seguidores no Instagram.
Com um texto que seduz pela coloquialidade, ainda que o que ela tenha a dizer seja pesado ou doloroso, e um discurso que encanta pela informalidade e frescor (num bate-papo, por exemplo, diz coisas como “a academia é uó” , “eu era muito treteira” e “aos 20 anos, eu comecei a dar toco nos boy porque tinha lido Toni Morrison”), Djamila constrói sua trajetória intelectual seguindo, como diz, a tradição de mulheres negras que pensaram, lutaram e escreveram antes dela, abrindo inclusive os caminhos para que ela ocupasse o espaço que ocupa agora. Ela lembra que foi no final da adolescência, ao trabalhar na Casa de Cultura da Mulher Negra, em Santos, que entrou em contato com autoras que a fizeram ter orgulho de suas raízes para não mais querer se manter invisível. Desde então, o diálogo com autoras como Bell Hooks, Sueli Carneiro, Alice Walker, Toni Morrison e Conceição Evaristo, primeira autora negra a se candidatar recentemente à Academia Brasileira de Letras, é uma constante.
No novo livro, como diz o material de divulgação da editora, os textos de Djamila “reagem ao cotidiano”, tratando de temas como o aumento da intolerância às religiões de matriz africana ou ataques a celebridades como Maju Coutinho e Serena Williams, episódios a partir dos quais a escritora destrincha conceitos como empoderamento feminino ou interseccionalidade. Ela também escreve sobre os limites da mobilização nas redes sociais, as políticas de cotas raciais e as origens do feminismo negro nos Estados Unidos e no Brasil, além de discutir a obra de autoras de referência para o feminismo, como Simone de Beauvoir.
Mestre em Filosofia pela Unifesp, Djamila foi secretária-adjunta de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo, na administração do prefeito Fernando Haddad. Publicou, no ano passado, pela editora Letramento, O que é lugar de fala?, primeiro volume da coleção Feminismos plurais, que ela coordena. O livro continua reverberando em lugares distantes, com convites para participações que Djamila começa a ter que recusar “por não dar conta de tudo”.
Com uma carreira em ascensão, visibilidade e prestígio internacionais, Djamila admite que ainda está processando tudo o que tem acontecido em sua vida recentemente. No dia em que participou do encontro promovido pela editora com formadores de opinião para divulgar o novo livro, havia chegado há pouco de Berlim e já se preparava para ir novamente para a Europa na semana seguinte, quando falaria em Frankfurt, também na Alemanha. No dia 26 de julho, vive outra situação que sempre desejou. Djamila, nome africano escolhido pelo pai, trabalhador braçal e militante do movimento negro em Santos, participa da Flip e divide a cena com a escritora argentina Selva Almada, na mesa intitulada Amada vida. “Uma ficcionista argentina que escreveu sobre histórias reais de feminicídio e uma feminista negra à frente de uma coleção de livros conversam sobre como fazer da literatura um modo de resistir à violência”, diz o texto que anuncia o encontro das duas
em Paraty.
“Eu sou uma mulher preta num país racista e machista. Mas é algo que eu já tive que lidar desde a infância, quando os meninos me chamavam de neguinha do cabelo duro. O que me mantém bem é não dar força pra isso, é focar nas pessoas que estão realmente interessadas em trocar, dialogar. Mesmo que tenham divergências comigo, a gente se respeita e dialoga”, diz Djamila.
“Muitas pessoas não sabem que são negras ou preferem não assumir porque é doloroso ser negro num país racista. A gente precisa entender criticamente a nossa realidade. Porque o fato de ser negro não significa entender criticamente o que é ser negro. As pessoas às vezes acham que basta ser mulher ou ser negro para entender. Muito pelo contrário. Por isso, eu digo que a filosofia nos ajuda a ler e refletir criticamente sobre as coisas. Eu acho que isso é muito importante”, declara.
O novo livro traz também, na introdução, um ensaio autobiográfico inédito, intitulado A máscara do silêncio, no qual Djamila resgata memórias e vivências pessoais. “É imprescindível que se leiam autoras negras, respeitando suas produções de conhecimento e se permitindo pensar o mundo por outras lentes e geografias da razão. É um convite para um mundo no qual as diferenças não signifiquem desigualdades. Um mundo onde existam outras possibilidades de existência que não sejam marcadas pela violência do silenciamento e da negação. Queremos coexistir, de modo a criar novas bases sociais. No fim, nossa busca é pelo alargamento do conceito de humanidade. Ao perder o medo do feminismo negro, as pessoas privilegiadas perceberão que nossa luta é essencial e urgente, pois enquanto nós, mulheres negras, seguirmos sendo alvo de constantes ataques, a humanidade toda corre perigo”, escreve Djamila, que também é autora de poemas com os quais foi premiada e não descarta a hipótese de um dia escrever ficção. Leia a seguir trechos do que ela disse durante bate-papo promovido pela Companhia da Letras no mês passado em São Paulo e do qual Vila Cultural participou.

Rever o passado, confrontar o eu
“Nos meus textos, não tenho o hábito de falar de mim ou da minha vida pessoal. Portanto, foi um desafio revisitar memórias que muitas vezes nem eu lembrava. Na noite de lançamento, várias mulheres negras se emocionavam ao se identificar com a questão do preterimento desde muito cedo. São histórias que atravessam a história de mulheres negras. Nesse sentido, essa identificação é gratificante. Faz parte também da tradição intelectual de mulheres negras, que é a escrita de si. Porque isso também é um ato político. E ao mesmo tempo fazer essa ligação com as autoras que cito, porque elas fazem parte real da minha vida, do processo de transformação. Dando uns spoilerzinhos de leve, quando li Toni Morrison, aos 20 anos, foi um divisor de águas na minha vida. Eu comecei a entender o mundo de outra forma. Quando li Bell Hooks, Sueli Carneiro, Jurema Werneck, de fato, não foi uma leitura meramente teórica. Foi uma leitura que disse muito respeito a minha vida, àquilo que eu queria ser.”

Outra perspectiva da negritude
“Por mais que tenha crescido numa família de militantes, isso não impediu que eu sofresse com o racismo e me confrontasse com vários dilemas que meninas negras confrontam, sobretudo da minha geração, que era a geração Xuxa, da paquita loira, com invisibilidade total de pessoas como a gente na mídia. Então, o fato de ter nascido nessa família me deu consciência da minha negritude. Sempre soube que era negra, tive um discurso político sobre isso, mas eu sofri nos ambientes que frequentava. Essas autoras de que falo me ajudaram a repensar a vida e pensar a negritude através de uma outra ótica, que não a do racismo, que é uma perspectiva que desumaniza, que coloca num lugar de submissão. As mulheres negras me ensinaram a entender qual é a potência dessas narrativas, a pensar essas narrativas como forma de resignificar o mundo.”

Nem subalterna nem guerreirona
“Eu sempre quis escrever e dizia: ‘Quero escrever um livro pela Companhia das Letras’. Mas não imaginava que aconteceria. Para mim, ainda é um susto. Porque realmente faço o que acredito. Quando as pessoas me abordam, nunca me coloco nesse lugar, para o bem e para o mal. Da mesma forma que não tenho controle sobre as pessoas que me odeiam, não tenho controle sobre as pessoas que me amam. Muitas vezes me abordam e demoro para perceber porque a pessoa está chorando. Fico até sem saber como lidar porque, de fato, eu estou falando da minha verdade. Se isso toca as pessoas dessa maneira, para mim é muito importante. Mas eu sempre tomo cuidado. Gosto de me humanizar porque acho que o racismo já nos desumaniza muito: ou nos coloca no lugar da subalternidade ou no lugar da guerreirona forte. Não sou essa guerreirona forte. Tenho fragilidades. Como mulheres negras, podermos falar disso é uma maneira também de nos humanizar. Nem a deusa nem a subalterna.”

Linguagem e poder
“Se você escreve de uma maneira extremamente rebuscada, se escreve ‘filosofês’, só as pessoas que dominam aquela linguagem vão acessar. E ninguém tem a obrigação de ter estudado filosofia. Então, na academia, a linguagem é utilizada como um instrumento de poder. Se você pegar um livro da Angela Davis, mesmo sem ter estudado filosofia, vai entender o que ela está falando. Tem toda a preocupação de transpor os muros da universidade, da academia, para que as pessoas entendam. É uma produção que dialoga, transforma, não uma produção que cria nichos de poder. Eu só sigo essa tradição, dessas mulheres. E é tão cruel ter vários especialistas em desigualdade estudando algo importantíssimo que meia dúzia de pessoas na academia vão ler. Ou aquelas entrevistadas que são objetos de pesquisa e nunca os sujeitos que estão falando, pesquisando. Por isso, para nós, quebrar essa lógica é tão importante. Inclusive sou muito criticada por isso na academia. Por ser acessível. Na academia, parece que quanto menos as pessoas entendem mais você é ‘uau!’. E eu acho isso ridículo. Faço questão de ser acessível, de ser pop.”

Sair das tretas, manter o foco
“Há ataques de todos lados. Do público que não gosta, claro, mas também da própria militância, por conta de eu ser feminista, por exemplo. Ou porque não se age de acordo com tal grupo. Ainda há uma lógica colonizadora de querer homogeneizar todo mundo. No começo, me assustava muito. Eu era muito treteira. Brigava com todo mundo. Em 2015, a Sueli Carneiro, que vive me dando broncas, me disse: ‘Saia dessas brigas porque as pessoas só querem te enfraquecer. Foque a sua energia no que importa, porque você tem potencial e às vezes fica dando visibilidade para gente inútil. Todas as vidas são importantes, mas nem todas são relevantes’, ela disse. Aquilo me deu um alerta. Comecei a não ligar muito e parei de responder às pessoas. Naquele mesmo mês, eu fui ao terreiro, porque sou praticante do candomblé, e meu pai de santo falou: ‘Você deve se concentrar nas suas coisas’. Em 2016, quando entrevistei a Grada Kilomba, que é uma das minhas referências bibliográficas, e disse que acontecia comigo também, com as pessoas me chamando de racista reversa, ela me disse: ‘Djamila, várias pessoas dialogam com você de um jeito bacana e quando uma vem reclamar você acaba dando força para aquela que veio falar alguma coisa. Essas vozes que estão reclamando são as vozes do passado e merecem estar onde têm que estar, no passado. Dialogue com o presente e com o futuro.’ Esses ensinamentos foram me protegendo para eu não dar tanta importância para essas coisas.”

Todos os cuidados possíveis
“Me cuidar espiritualmente é uma coisa da qual eu não abro mão. Espiritualmente e emocionalmente. Eu medito e sou superzen. Ouço mantras antes de dormir, cuido do espiritual no terreiro, tento manter a minha mente em paz. Não abro mão do meu lazer, de fazer as coisas que amo. De não falar desses temas também. Porque é muito importante as pessoas entenderem que a gente não tem que saber tudo. ‘O que você acha disso?’, me perguntam. Às vezes eu não quero achar nada. Porque eu não tenho que falar sobre tudo. Há essa cobrança, tipo ‘você não vai opinar sobre o caso da Fabiana Cozza?’ (N.da R: a cantora declinou do convite para viver Dona Ivone Lara no teatro depois de ser criticada pela militância por ser ‘muito branca’ para o papel). Não, não vou. Porque eu não quero. Como negro, a gente também tem que aprender a dizer não. Não vou falar sobre isso. Não quero fazer isso. Temos que aprender a nos distanciar porque temos direito a ser feliz.”

Toda a alegria de estar viva
“A experiência de ser negro é dolorosa por conta dessa sociedade racista, mas temos que aprender a desfrutar da vida. Não carregar aquela pecha de estar sempre carrancudo e bravo. Os arquétipos dos orixás me ajudam muito nisso. Iansã é guerreira, mas é mãe. Oxossi é o guerreiro, o caçador, mas também tem sua parte de afeto. A gente não é uma coisa só. O candomblé é trabalho, mas também é festa. Eu acho que usufruir da vida com o que a vida tem de bom me ajuda a me manter bem, focada, rodeada de pessoas que me amam, que gostam de mim de verdade. Que se eu precisar de colo, vão me dar colo. Aprender a pedir ajuda para mim foi um exercício muito importante para eu me manter sã e saber que não tenho que carregar tudo sozinha nas costas.”

Uma geração “pé na porta”?
“Vejo hoje as meninas cada vez mais jovens falando coisas importantes. E me digo: ‘Nossa, como eu era tonta’. E é um pouco esse o objetivo das pensadoras negras. Acho incrível garotas que não vão passar por processos que a gente passou, ainda que seja numa bolha, se pensarmos nos vários ‘brasis’ e em outras realidades. Dentro desse espectro, é fantástico ter meninas que nunca alisaram o cabelo, que sabem que são negras e têm orgulho disso. E vão fazer a diferença nos espaços que elas estão. Acho riquíssimo minha filha, de 13 anos, com cabelo black, de trança. De cabeça erguida. Que não tem medo de ser o que ela é. Porque para nós foi preciso desconstruir para reconstruir. E elas, essas meninas, já estão num lugar em que entendem ser negras de maneira positiva. Acredito que isso acontece por conta do legado das mulheres negras. Como a Lélia Gonzalez fala, a gente não compartilha só durante, a gente compartilha legados de lutas.”

Para onde está indo
“Quando digo que vai ter disputa de narrativas, senhoras e senhores, é isso. Onde? Em quais lugares? Eu não sei. Cheguei de Berlim anteontem e na semana que vem vou estar em Frankfurt. Tenho ido muito para fora do Brasil e tem sido interessante para mim poder ir, por causa do meu trabalho, a lugares que eu nunca sonhei. Isso é algo que eu não imaginaria. Fico muito feliz de ir e falar das autoras brasileiras, do meu trabalho, e conseguir chegar a pessoas que eu nem imaginava. De estar em Londres e encontrar pessoas que leram o meu livro. Para mim, isso ainda é muito louco de entender. É algo que adoro, ainda mais que o povo acadêmico fica todo com recalque. E é engraçado como o brasileiro é vira-lata, porque quando eu volto, observo as reações. Antes, eu era webcelebridade. Depois, quando você volta de Harvard, as pessoas que te chamam de webcelebridade mandam um ‘oi sumida!’”

A política no cargo público 1
“Foi uma experiência muito importante e um desafio porque ainda é um espaço masculino, branco, em que se passa por muitos enfrentamentos. Existe uma velha política que tem dificuldade para entender a importância de outros atores dentro desse espaço. A Secretaria de Direitos Humanos tinha programas incríveis, com olhar para essas questões – para a juventude negra, para o público LGBT – rompendo com a visão antiga de gestão. Com a ideia de administrar para todos. Mas quem são esse ‘todos’? São marcados por gênero, raça, classe. Entender isso foi muito rico e importante, mas acho que é preciso entender mais e expandir mais. Olhando para o campo das esquerdas, penso que elas precisam refletir mais sobre isso. Falar em feminismo negro, por exemplo, eles acham que é ‘pós-moderno’. Falar de feminismo negro é falar de um projeto. Ter o negro marcado ali é importante para lembrar que são mulheres negras pensando esse projeto. Mas é um projeto que visa repensar um novo marco civilizatório.”

A política no cargo público 2
“Discutir raça, gênero e classe, que são os três pilares da interseccionalidade, não é algo abstrato. Significa pensar um projeto amplo de sociedade. Não que estejamos pensando só nas mulheres negras. Se o racismo e o machismo são estruturantes, não tem como pensar um projeto sem levar em consideração essas opressões. Se houver um programa como o Transcidadania, por exemplo, no país que mais mata pessoas trans, travestis no mundo – que é o Brasil –, ao melhorar a vida de pessoas trans e aumentar o índice de desenvolvimento humano desse grupo, melhora-se o índice desenvolvimento de toda a sociedade. Essa equação é que não entra na cabeça das pessoas, que teimam em ver nisso uma política específica sem entender que é uma política para a sociedade”.

Um testemunho no Instagram*
“Quero fazer um testemunho. Muitas das coisas pelas quais sonhei estão acontecendo e devo isso ao meu babalorixá, Rodney William, quem me mostrou meu ori vencedor, que me acolheu em sua família de axé e contribui para o meu processo de descolonização ao me manter forte e não aceitar que me imponham lugares. Com ele, aprendi que os orixás não são santos e são múltiplos e diversos. Logo, não aceito imposições nem da militância limitante que quer nos fazer seguir scripts, de julgar que precisamos ser do modo que querem sob risco de ataques. Isso é tática colonizadora eurocentrada. Quem luta por um mundo melhor não submete o outro, porque julgar que o outro precisa caber na sua caixinha é violência. Cuidado com os falsos militantes. Sou filha de Odé, mas carrego Oyá, Ogum, Iemanjá, Exu. Somos diversos e não estamos aqui pra agradar quem quer que seja, a não ser nossa ancestralidade.” (*texto publicado no Instagram por Djamila Ribeiro no dia do lançamento do livro)