Rede de influências

Com livros e literatura na internet, os booktubers mobilizam comunidades superengajadas no prazer de ler

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 184 (Agosto/2019)

Se engajamento é a nova palavra-chave na vida e nas relações digitais, a internet e as mídias sociais têm muito a aprender com os booktubers, produtores de conteúdo que influenciam milhares de pessoas ao falar de livros e literatura no YouTube, criando comunidades superengajadas no prazer da leitura. A plataforma para publicação de vídeos, que surgiu em 2006, mudou a comunicação e a produção cultural audiovisual ao ponto de precisar de novos adjetivos, todos com prevalência do inglês. Daí o booktuber, nomeação específica a partir do substantivo mais genérico youtuber, que define quem produz regularmente vídeos, independentemente do assunto em questão – ou até mesmo sobre tema nenhum. Sim, na internet é possível falar sobre o nada.

Não é o caso, que fique claro, de nomes admiráveis como Tatiana Feltrin, tradutora e intérprete à frente do TLT, de The Little Things, canal com mais de 300 mil inscritos, todos interessados em ouvir o que ela tem a dizer sobre livros, sua paixão e seu trabalho. Ou da jovem Mell Ferraz, que participou este ano do Navegar é Preciso, projeto da Livraria da Vila e da Auroraeco. Enquanto se dedica à formação em Estudos Literários, Mell comanda o Literature-se, outro canal com mais de 100 mil inscritos. O número, importante saber, é uma referência básica de prestígio e visibilidade nesse circuito, que descentraliza do eixo das grandes cidades as localizações físicas de seus protagonistas. Tatiana e Mell, por exemplo, vivem respectivamente em São José dos Campos e Jundiaí, no interior de São Paulo.

 

Victor Almeida, do Geek Freak. /Foto Divulgação

De Londrina, no Paraná, o designer gráfico Victor Almeida comanda o Geek Freak, que trata de livros e produção cultural pop com uma assinatura inconfundível. Ele diz que começou sem grandes pretensões, mais como uma vontade pessoal de conversar sobre seus temas prediletos, e viu, graças a uma audiência fiel, a sua investida ganhar outras proporções. No dia em que conversou com Vila Cultural estava a mil, em plena Maratona Literária de Inverno, em que o propósito, junto com seus seguidores, é ler um grande número de títulos previamente selecionados, na intensidade de uma maratona. Como aquele bom amigo sincero e divertido, Victor pode se referir ao estilo de um autor ou a uma história dizendo que se trata de uma “escrita delicinha, meio sessão da tarde”. De um jeito peculiar, estimula a leitura.

Criado em novembro de 2012, o canal Perdido nos Livros, comandado por Eduardo Cilto e hoje com de mais de 300 mil inscritos, assume como propósito popularizar o hábito da leitura entre os jovens. O canal fala também de filmes e séries e, como todos os outros, mobiliza comunidades e seguidores em redes sociais como Instagram, Twitter e Facebook. A ideia é agregar sempre.

 

O editor Felipe Brandão./Foto Luiz Ipolito/Divulgação

Cilto exemplifica outro fenômeno de época. Ele já escreveu dois livros, ou seja, foi de leitor a autor com evidente desenvoltura. Em 2016, publicou Traços, com uma história de juventude e misticismo. No ano passado, lançou Submerso: Um romance, com a mesma “pegada” jovem. Ambos os livros saíram pelo selo Outro Planeta. “A ideia é trabalhar com influenciadores que tenham boas histórias”, diz o editor Felipe Brandão, da editora Planeta. Seja no que se refere a divulgação de títulos relacionados a públicos e segmentos específicos, seja como autores em potencial, Brandão diz que os booktubers mudaram algumas dinâmicas do mercado editorial. Para o editor, o trabalho de produção de conteúdo ou divulgação se dá de forma orgânica, com ações correlacionadas em várias frentes.
E há ótimas surpresas, caso de Paola Aleksandra, que comanda o site e o canal Livros e Fuxicos. Ela lança este mês, pela Outro Planeta, seu segundo romance, Livre para recomeçar. “A trama se passa no Rio de Janeiro do século 19. Apesar de ser um romance de época, ou seja, de precisar ter embasamento histórico, passei meses pesquisando sobre a história do Brasil para dar vida a personagens no melhor estilo ‘gente como a gente’. A obra gira em torno da Anastácia e do Benício, os narradores da trama, e conta como os dois – depois de decepções familiares – estão prontos para recomeçar. O contexto foca em vários temas típicos daquele momento histórico, mas que infelizmente ainda são muito atuais: preconceito, racismo, disparidade social, relacionamentos abusivos e o papel da mulher na sociedade”, diz Paola (leia aqui a entrevista com a escritora), dando pistas sobre o empoderamento feminino, não importa se na literatura ou na vida real.
No Rio de Janeiro do século 21, Raffa Fustagno está prestes a completar uma década falando de literatura com o projeto A menina que comprava livros. Parece uma eternidade para esses tempos digitais. “Nesses nove anos o mercado mudou muito. Quando comecei eram poucos autores nacionais, depois teve o boom de livro de vampiros, de anjos, de youtubers, de hot. Toda hora tem uma moda, que para mim, que sou eclética, não muda nada. Eu leio tudo, de autoajuda a biografias”, diz Raffa, que também já publicou dois livros (leia aqui a entrevista).

Danilo Leonardi, do Cabine Literária./Fotos Divulgação

Mas a atuação na internet, claro, não é só maravilhas. Um dos precursores da literatura como tema no YouTube, com o canal Cabine Literária, que continua disponível com seus 165 mil inscritos, Danilo Leonardi, de carisma e talento evidentes no vídeo, resolveu dar um tempo das redes sociais. Às vezes, ele diz, até tem vontade de voltar a gravar, mas optou pela pausa dessa sua “versão empreendedor” para priorizar a vida pessoal, já que, não raro, para booktubers ou youtubers vida e trabalho parecem se misturar continuamente, 24 horas online. Ex-estudante de Letras, Leonardi, que publicou os livros Por que Indiana, João? (Giz, 2016) e Coisas inatingíveis (Outro Planeta, 2017), diz que, idealmente falando, queria ter uma equipe que filtrasse os comentários e feedbacks nas suas redes, já que não sabe e não gosta de lidar com o lado mais truculento e tóxico (ou violento, dependendo do ponto de vista) da comunicação digital. Com habilidades para pensar no processo como um todo – o planejamento, o roteiro, a linguagem visual, tudo, enfim – de seus vídeos, Leonardi diz que ao rever tudo que fez até se vê “bonitinho” nesse “cara a cara” com ele mesmo. Mas, pelo menos por enquanto, segue muito bem, obrigado, longe da exposição contínua, com a parada estratégica que deu. E, mais importante, continua lendo intensamente. Quem sabe, para alegria da comunidade do Cabine Literária, ele não volta e compartilha seu livros favoritos do momento?