Para ir além

O cientista e escritor Marcelo Gleiser focaliza a relação entre ciência e espiritualidade em O caldeirão azul

O escritor e cientista Marcelo Gleiser, que acaba de lançar o livro O caldeirão azul, pela Record. Foto Eli Burakian/ Divulgação

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 184 (Agosto/2019)

A relação entre espiritualidade e ciência é o tema de O caldeirão azul (Record), novo livro do cientista e escritor Marcelo Gleiser, autor, entre outros, de A simples beleza do inesperado (Record, 2016), vencedor do Jabuti. Professor de filosofia natural e de física e astronomia na Dartmouth College, em Hannover, nos Estados Unidos, Gleiser ganhou recentemente o Prêmio Templeton, considerado o “Nobel da espiritualidade”. Ele é o primeiro latino-americano a receber a distinção, que está entre as mais prestigiosas do mundo e já foi concedida a Madre Tereza de Calcutá e ao líder espiritual Dalai Lama, além de vários cientistas. “Eu quase caí para trás”, diz Gleiser, em entrevista exclusiva à Vila Cultural, sobre o momento em que foi informado da premiação.

Os ensaios de O caldeirão azul, ele diz, são fruto da reflexão de Gleiser sobre as questões que considera mais relevantes para o momento atual: a nossa relação com o planeta e suas criaturas, com os membros da sociedade, e com a tecnologia, que está transformando, com velocidade impressionante, quem somos e como nos relacionamos. O tema que conecta os textos do livro é a visão da ciência como produto da capacidade humana de se maravilhar com o mundo diante do mistério da criação.

“Muitas vezes, quando experimentos revelam novos aspectos da Natureza que não haviam sequer sido conjecturados, a enorme surpresa, a sensação de tatearmos no escuro, pode levar ao desespero. E agora? Se nossas teorias não podem explicar o que estamos observando, como ir adiante? Nenhum exemplo na história da ciência ilustra melhor esse drama do que o nascimento da física quântica, que descreve o comportamento dos átomos e das partículas subatômicas, e que está por trás de toda a revolução digital que rege a sociedade moderna”, ele escreve.

Ciência e espiritualidade, a importância de ser humano, um mundo em crise e o futuro da humanidade são as quatro partes em que o livro está dividido. São referências para Gleiser sistematizar ideias que, no caso dele, se misturam com uma busca pessoal que se confunde com a própria vida. Com práticas esportivas de esforço extremo, ele diz que faz uma espécie de meditação em movimento testando os limites do corpo como caminho para o autoconhecimento e a plena percepção do universo. No fim desse mês, por exemplo, Gleiser, que tem 60 anos, participa de uma prova de corrida de 110 km nos Alpes, na Europa. A corrida começa na Itália, passa pela Suíça e termina na França e o propósito do cientista é realizar o trajeto em menos de 25 horas. “Se eu conseguir terminar vou ficar feliz da vida. Essa é a maneira como eu retorno às minhas raízes humanas mais primordiais. De certa forma, isso abre um portal da espiritualidade e o processo todo se torna uma grande meditação. Uma meditação em movimento”, afirma o escritor.

“Somos criaturas peculiares, animais curiosos, capazes de imaginar o infinito, e ao mesmo tempo inspirados e perplexos pelo que não compreendemos. Na essência do conhecimento científico, encontramos o mesmo ímpeto que move o espírito religioso: desejamos lidar com nossas questões existenciais mais profundas, a nossa origem, a nossa vida, a nossa morte”, escreve Gleiser, que vive nos Estados Unidos e diz que a relação com o público brasileiro é prioritária no seu trabalho. Com um canal no YouTube que já tem mais de 60 mil inscritos, ele diz que estuda até um projeto com Felipe Neto, um dos mais influentes youtubers brasileiros. Sobre a situação atual do país, o cientista diz que percebe o Brasil um pouco parecido com os Estados Unidos. “Há semelhanças porque são muitas pessoas com uma posição mais liberal e outras com uma postura mais conservadora. E com o governo atual essa polarização parece ainda mais exacerbada. Para mim, que tenho uma posição mais liberal, o que estou vendo, com cortes no orçamento do Ministério de Ciência e Tecnologia, ameaças às áreas de humanas nas universidades, à Rádio MEC e a outras áreas em que se preserva o cerne da cultura do país sendo ameaçadas, isso me deixa muito preocupado com o futuro do Brasil.” Leia a entrevista com o escritor.

Vila Cultural. Poderia comentar o título do livro?
Marcelo Gleiser. O caldeirão, em geral, é onde o cozinheiro ou a cozinheira combinam e misturam os ingredientes para fazer a comida que vai alimentar o nosso corpo e a nossa alma. E o caldeirão azul, no caso, seria o planeta Terra dentro da ideia de que é o lugar para misturarmos as nossas ideias, nossos ingredientes existenciais e culturais e transformarmos a vida que temos, desde o passado até o presente, e eventualmente no futuro também. O caldeirão então é essencialmente um meio de transformação. E há também uma analogia com os alquimistas. Além de transformar metais em ouro, eles também estavam tentando se transformar pessoalmente, tentando obter um nível mais iluminado de ser. A minha esperança é que esse caldeirão azul, que é o nosso planeta e é esse livro em que eu coleciono essas ideias todas, seja também um agente de transformação, em que se combinam os ingredientes, que são as ideias que têm a ver com o futuro da humanidade, com o futuro do planeta. E com as quais espero conseguir inspirar o leitor a ser o agente dessas transformações que queremos ver acontecer no mundo.

VC. Quando é que se ciência e espiritualidade começam a se distanciar?
MG. A separação começou realmente em torno do século 18 com o Iluminismo. A ideia de que você tem uma racionalidade para tratar do mundo, que a razão humana é capaz de desvendar todos os mistérios e que temos, então, que adotar essa posição quantitativa em relação a tudo, não só à ciência, mas também em relação às ciências sociais. É quando se tem todo o impacto de racionalismo não só na ciência, mas na história, na filosofia, em vários outros campos por causa do sucesso de [Isaac] Newton e de todo o pessoal que veio antes, nos séculos 16 e 17. Então, o Iluminismo foi meio que um divisor de águas. Logo depois do Iluminismo vieram os românticos com um: “Calma aí. E o amor? E as confusões existenciais? Como é que fica tudo isso? Vocês não vão resolver isso tudo com equações”. E isso era uma grande verdade. O que aconteceu foi que o sucesso da ciência provocou uma crise espiritual na humanidade, porque antes as pessoas olhavam para o mundo de uma forma completamente relacionada com a fé. E de repente apareceu a ciência dizendo que não, que você tinha que olhar para o mundo de uma forma mais racional usando a matemática e o cálculo: “Isso não tem nada a ver com o espírito humano e a gente não tem nada a dizer sobre o espírito humano”. Foi como criar uma estaca separando os dois.

VC. E é possível reverter essa relação?
MG. É o que eu estou fazendo com o meu trabalho. Estou tentando reconstruir essa relação entre ciência e espiritualidade de uma forma séria e que eu acho que está sendo efetiva ao mostrar que, sim, a ciência tem uma metodologia racional, uma metodologia quantitativa para descrever questões patrimoniais do mundo, mas a motivação dos cientistas, o porquê desse casamento com o que eu chamo de mistério da existência – porque a ciência é um flerte com o desconhecido –, esse engajamento dessa relação com o mistério, para mim, é um engajamento profundamente espiritual. E que remete de novo, não só de uma forma racional, mas visceral, que você sente na barriga, à sua relação com o mundo, com a natureza, com o universo. E é isso que eu estou tentando fazer. Não só através da minha pesquisa, mas na minha forma de viver: sou vegetariano, ultramaratonista, que é uma maneira de eu me colocar nas montanhas e tal. É uma relação direta, visceral, entre o corpo, a mente e o mundo. E essa relação para mim é profundamente espiritual.

VC. Como o esporte entra nessa história?
MG. Primeiro que eu sempre fui meio atleta. Quando eu era garoto, jogava vôlei com o Bernardinho. Fui campeão brasileiro de vôlei e ele era meu levantador. Mas eu retomei essa relação mais direta entre o corpo e a natureza em busca de uma espiritualidade maior porque essencialmente a ideia é a seguinte: quando você se expõe de uma forma realmente intensa aos limites do que o seu corpo pode fazer –, e não estou falando de dar uma corridinha de 5 km na praia, mas de dar uma corridinha de 90 km nas montanhas da Itália, da França, dos Estados Unidos ou do Brasil, o que demora umas 20 horas – você está usando o seu corpo além do que acha possível. Você se expõe ao cerne de quem você é. É você e o universo. Não tem mais nada. Esse tipo de exposição, que é quase uma punição física, leva a um estado emocional elevado, meio parecido com a prática de vários monges. Há algumas tradições religiosas que expõem a privações físicas terríveis justamente para abrir os canais a uma espiritualidade maior. Então você tem, por exemplo, os monges maratonistas em Kioto, no Japão, que fazem coisas que você não acredita que sejam possíveis para o corpo humano fazer. E eles são os únicos considerados os “budas vivos” porque transcendem a relação entre corpo e espírito através das privações para chegar num nível de compreensão de quem eles são, do que o universo é. De uma forma mais modesta, essas minhas exposições, essas minhas corridas muito longas, seguem essa ideia.

VC. A que atribui sua habilidade para tratar de questões tão complexas de um jeito tão simples?
MG. Uma das razões é que quando eu era estudante sempre tive dificuldade de entender professores que não explicavam direito. Então, eu me esforçava muito para entender certas disciplinas, principalmente português e matemática. E veja só: hoje sou escritor e cientista. Acho que esse esforço funcionou. Mas as coisas não vinham de uma maneira fácil, e eu tenho um grande respeito pela pedagogia, pela maneira como reconhecemos quem é o nosso público e nos comunicamos com ele, de que forma esse público pode entender o que estamos querendo dizer. Poder conversar de uma forma que todo mundo se sinta valorizado pelo seu discurso. Mas as origens vêm daquele aluno que estudou duro para entender o que estava acontecendo e jurou pra si mesmo que se algum dia fosse professor e expositor faria a coisa o mais simples possível.

VC. Qual a diferença entre publicar em português e em inglês?
MG. Hoje, para mim, escrever em português ou em inglês não faz muita diferença. Obviamente que quem eu sou publicamente no Brasil e quem eu sou publicamente nos Estados Unidos são duas coisas bem distintas. No Brasil, existem muito poucas vozes como a minha, de um cientista engajado com o público, com as questões da escrita e da sociedade e do futuro e da ciência como um todo. Então, obviamente, aqui eu tenho uma voz maior e um público mais aberto. Nos Estados Unidos, também estou lá, publicando. Mas como eu existem muitos outros, o que significa uma competição maior. Pelo menos até o momento, em termos de sucesso editorial, eu diria que estou bem nos dois países. Meus livros foram publicados em mais de 14 idiomas até agora. Mas não há dúvidas de que o Brasil é o meu país e o brasileiro é o meu público principal, tanto assim que eu tenho um canal no YouTube em português com mais de 60 mil inscritos. Como intelectual brasileiro eu quero ter uma penetração maior aqui do que em qualquer outro lugar do mundo, é por isso inclusive que eu tenho 14 livros em português e só cinco em inglês.

VC. Como reagiu ao ser premiado com o Templeton?
MG. Nos Estados Unidos, o Prêmio Templeton é muito mais reconhecido do que aqui. Mas acho que agora vai mudar um pouco essa história. Como eu sou o primeiro latino-americano a ganhar, acho que vamos prestar um pouco mais de atenção. Porque uma das coisas que as pessoas falam aqui é que o prêmio já foi dado a Madre Tereza de Calcutá, ao Dalai Lama, ao Billy Graham ou ao arcebispo sul-africano Desmond Tutu, ou seja, a líderes religiosos. Mas não só líderes religiosos foram premiados. Há vários cientistas que foram contemplados com o prêmio. E eu sou um deles. São todos pesquisadores de alto nível, o que me deixa super-honrado. E é uma situação extremamente gratificante. Quando recebi a notícia, eu meio que não acreditei porque a presidente da Fundação John Templeton me ligou, em dezembro do ano passado, e achei que ela falaria sobre um outro assunto. E ela logo esclareceu que não tinha ligado para falar sobre o que eu imaginava. “Liguei para falar que você é o ganhador do prêmio de 2019”, ela disse. E eu quase caí para trás. Eu sabia que tinha sido nomeado, mas de ser nomeado a ganhar um prêmio desse nível, que tem indicações no mundo inteiro, é outra história. É aquele momento em que você começa a suar frio e a se questionar se a coisa está realmente acontecendo ou não. Mas aconteceu e isso me coloca num patamar mais elevado, em que essa minha mensagem de importância do conhecimento, de importância da preservação do planeta e a questão de salvaguardar nossa humanidade numa era de tecnologias que avançam cada vez mais, que são as minhas mensagens principais, vão atingir um número cada vez maior de pessoas. Tanto que eu disse para ela que, naquele momento, a missão começava de novo. E O caldeirão azul, de certa forma, é o lançamento dessa missão.

VC. Como alguém que faz tamanho sucesso valoriza tanto o fracasso?
MG. Esse sucesso veio porque eu fracassei muito. Esse é o ponto. Aliás, isso aí junta tudo. A ideia do fracasso junta tudo: a minha carreira como cientista, a minha carreira como atleta amador sério, a minha carreira como escritor. Porque toda vez que você tenta atingir não a perfeição, mas um estado criativo maior, mais elevado, seja como cientista, como escritor, como atleta, você vai fracassar muito. O fracasso faz parte desse aprendizado. Sem o fracasso é impossível você superar os seus limites e ir além. Então, para você poder entender quais são os seus limites você tem que superá-los. Já há um processo em que você está lidando com o fracasso. Como cientista, por exemplo, a maioria das suas ideias está errada. O cientista Richard Feynman dizia que o físico teórico é uma máquina que transforma café em papel enchendo a lata de lixo. Você toma café, faz cálculo, erra e joga papel no lixo. Aí, de vez em quando, há algumas vezes na sua carreira de 30, 40 anos em que você tem duas ou três ideias que pegam e que justificam todos esses outros momentos em que você fala: “Cara, não entendi, errei ou então alguém foi mais rápido que eu”. Essa agonia toda. Há uma biografia do Michelangelo chamada Agonia e êxtase porque é justamente isso: o fracasso é aquela agonia que é necessária para você chegar ao êxtase da criação. Isso acontece em todos os campos. Não interessa se você trabalha num banco, no correio, se você é cozinheiro. Você vai fracassar, e através disso você aprende quem você é. Para fazer uma coisa melhor da próxima vez.

VC. Como lida com o ego?
MG. A coisa mais importante sobre isso é que eu detesto arrogância. Isso faz parte da minha natureza desde garoto. Eu tenho várias metáforas. Tem uma no meu livro A simples beleza do inesperado que diz que uma pessoa arrogante é um pavão com as penas faltando no rabo e sem um espelho para se enxergar. Tem uma outra, melhor ainda, que o meu avô dizia: que a pessoa arrogante usa um chapéu maior que a cabeça e o chapéu cobre os olhos dela. Então, para mim, a arrogância é uma forma de você destruir a sua relação com os outros, porque é uma maneira profundamente egoísta e autocentrada de lidar com as pessoas que estão em torno de você e com a sua vida como um todo. Uma coisa que eu sempre aprendi foi ser humilde porque pra mim a matemática ou o sucesso não vieram da noite para o dia. Para chegar à carreira científica que eu tenho, eu ralei muito. Errei muito. Fui muito humilhado por várias pessoas. Você está dando um seminário em Harvard e aquele professor de quem todo mundo tem medo se levanta e o cara te destrói ali, e você tem que sobreviver de alguma forma. E quantos jogos de vôlei eu perdi na minha vida, e quantas corridas eu tive câimbra e precisei parar. Então eu acho que o sucesso só é realmente viável, isso é uma maneira minha de pensar, e só passa a ser um exemplo quando ele vem de uma posição de humildade profunda.