A festa que se confunde com a identidade cultural do país já inspirou livros de Jorge Amado e Vinicius de Moraes
*Matéria publicada na revista Vila Cultural 166 (fevereiro/2018).
É uma festa tão, tão familiar ao brasileiro que há quem diga que o Carnaval é uma “invenção” de DNA local. Faz algum sentido, já que não existe em qualquer outro lugar do mundo algo parecido com a versão nacional da celebração nos quatro dias de fevereiro: o país para, tudo que é vida real não tem a menor relevância, e grande parte da população ou vai às ruas para comemorar (não se sabe exatamente o quê) ou se dedica a ver um espetáculo grandioso na TV. É uma catarse, um escape que só quem já viveu sabe do que se trata.
Ainda que a festa brasileira tenha se transformado no “maior espetáculo da terra”, como diz o clichê nacionalista, as origens do Carnaval datam da Antiguidade, tanto na Grécia como em Roma. Vem dessa associação greco-romana a ideia de “festas dionisíacas”, de entrega aos prazeres da carne. Pagã na origem, o Carnaval foi posteriormente incorporado pela igreja católica ao anteceder a quaresma, um período de recolhimento, jejum, purificação e controle dos prazeres mundanos. Em diferentes lugares do mundo, o Carnaval se liga e se mistura a episódios histórico-culturais. Na Itália, por exemplo, foi influenciado durante o período da Renascença pela commedia dell’arte, rendendo até hoje celebrações animadas e ornadas com máscaras e fantasias em cidades como Florença e Veneza. No caso brasileiro, a festa deu-se desde o período colonial, na mistura de uma festa portuguesa adaptada por escravos. Primeiro, vieram os cordões e ranchos, depois as festas de salão, corsos e finalmente as escolas de sambas. Afoxés, frevos, maracatus também passaram a fazer parte da tradição cultural carnavalesca do Brasil, que se renova com as influências da indústria cultural e hoje põe axé music, samba e até funk, tudo junto misturado, no maior agito da nação.
Inerente à identidade cultural do país, o Carnaval e o samba sempre renderam histórias e livros inspiradores. O País do Carnaval (Companhia das Letras), de Jorge Amado, tem uma graça afetiva que já lhe dá toda a ginga: foi escrito quando o grande ficcionista tinha 18 anos. Apesar do título sugestivo, o livro de estreia de Amado está mais para a introspecção do que para folia. Publicado em 1931, faz um retrato crítico da imagem festiva e contraditória do Brasil a partir do olhar do personagem Paulo Rigger, um brasileiro atormentado pela inquietação existencial que, após sete anos em Paris, regressa a um país com o qual não se identifica. O livro aborda as angústias da juventude a partir das rondas de círculos boêmios e literários da Bahia. Detalhe histórico: O País do Carnaval estava entre os livros de Jorge Amado que foram queimados em praça pública, em Salvador, por determinação da polícia do Estado Novo, em 1937.
Orfeu da Conceição (Companhia de Bolso), de Vinicius de Moraes, é a “tragédia carioca” que faz uma releitura, no ritmo do samba, do mito de Orfeu, filho de Apolo, uma das histórias mais emblemáticas da mitologia grega. Imerso em sofrimento depois da morte da amada Eurídice, o músico Orfeu vê-se incapaz de entoar suas canções, pois os sons melodiosos e tristes de sua lira não o consolam da perda do grande amor. Desesperado, Orfeu decide descer ao mundo de Hades (o reino dos mortos) para trazer Eurídice de volta à terra. Ambientada em uma favela carioca, durante o Carnaval, a peça Orfeu da Conceição, de Vinicius, estreou no Theatro Municipal do Rio de Janeiro em 1956 com enorme sucesso e marcou a parceria do compositor com Tom Jobim. Os cenários eram de Oscar Niemeyer. É uma mistura irresistível de poesia e música popular, e ótima leitura.
Das origens do samba até o desfile inicial das escolas de samba no Rio. Essa é a trajetória do excelente Uma história do samba – As origens (Companhia das Letras), a empreitada mais recente do escritor e jornalista Lira Neto, que já lançou o primeiro (de três) volume do projeto. No livro, descobre-se que o samba carioca que durante anos foi a principal trilha sonora do Carnaval brasileiro nasceu no início do século 20, a partir da gradativa adaptação do samba rural do recôncavo baiano ao ambiente urbano da então capital federal. Nas décadas de 1920 e 1930, com o aprimoramento do mercado fonográfico e da radiodifusão, consolidou seu duradouro sucesso popular, simbolizado pelo surgimento das primeiras estrelas do gênero e pela fundação das escolas
de samba.
Não exatamente sobre Carnaval, mas com roteiro igualmente sedutor, Zuza Homem de Mello conta em Copacabana – A trajetória do samba-canção (Editora 34) a história do samba-canção a partir de 1929 e até 1958. A ideia do livro é documentar como parte do meio artístico do Rio de Janeiro migrou para boates e clubes noturnos que se concentraram especialmente em Copacabana com o fechamento dos cassinos em 1946. É um retrato afetuoso da cidade do samba em outra época, mas sempre cheia de ritmos e seduções.