Ó abre alas

Ousada na arte e na vida, Chiquinha Gonzaga compôs, em 1899, a primeira canção carnavalesca brasileira

 

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 190 (Fevereiro/2020)

Ilustração Jonas Ribeiro Alves

 

A compositora e pianista Chiquinha Gonzaga, que morreu há 85 anos, no dia 28 de fevereiro de 1935, às vésperas do Carnaval, viveu uma vida tão extraordinária quanto sua obra, documentada em milhares de partituras que ela compôs para mudar a história da música brasileira.

Com comportamento ousado e improvável para a época, Chiquinha enfrentou uma sociedade patriarcal poderosa e intransigente e viveu durante 87 anos como uma pioneira não só por suas escolhas e decisões pessoais, mas também pelo percurso na música e nas artes. É dela, por exemplo, a composição que é considerada a primeira canção carnavalesca brasileira, Ó abre alas, feita numa tarde de 1899 durante um ensaio do cordão Roda de Ouro no Andaraí, bairro na Zona Norte do Rio de Janeiro.

Em questões das mais complexas, Chiquinha, primeira compositora teatral do país, também saiu em defesa dos direitos autorais de músicos e dos autores do teatro, algo que nunca havia acontecido.

Terceira dos nove filhos de um militar casado com a filha alforriada de uma escrava mestiça, Francisca Edwiges Neves Gonzaga, a Chiquinha, nasceu no Rio de Janeiro em 17 de outubro de 1847.

Ela aprendeu música estudando piano e compôs pela primeira vez aos 11 anos. Chiquinha se casou aos 16 anos com um fazendeiro poderoso, ganhou um piano de presente de casamento, teve dois filhos ainda na adolescência e viu o marido virar comandante da Marinha Mercante em um navio fretado pelo governo brasileiro para ir a Guerra do
Paraguai (1864-1870).

Para tentar afastar Chiquinha da música e conter o ímpeto de sua personalidade rebelde, o marido a levou para viajar no navio em missão de guerra e complicou ainda mais a história. Chiquinha se indignou ao ver negros alforriados sendo tremendamente maltratados, entre outras violências. O marido-comandante conseguiu um violão a bordo para tentar acalmá-la. Não deu certo. Ele fez Chiquinha escolher entre ele e a música, que venceu a batalha.

Mãe de três filhos, ela se separou aos 23, se casou de novo, foi viver em Minas Gerais com o segundo companheiro. Teve outro filho, rompeu o segundo casamento e, aos 29, de volta ao Rio, se viu obrigada a trabalhar para sobreviver.

Como professora e pianista, começou a compor música popular e lançou, em 1877, a música chamada Atraente, um título-acinte para a época. Foi sucesso instantâneo. Assídua nas rodas boêmias, vestia-se do jeito que queria e óbvio que ficou mal vista e mal falada. Aos 37 anos, conseguiu finalmente ser reconhecida como maestrina.

Chiquinha Gonzaga foi avó aos 42 anos e aos 51 anos, já separada novamente, conheceu o português João Batista Fernandes Lage, de 16 anos, com quem viveria um romance para o resto da vida. Ela o apresentava como filho para evitar comentários maldosos.

“Embora o divórcio autorizado pelo direito canônico, a partir de decisões do Concílio Tridentino, não dissolvesse o vínculo matrimonial, limitando-se à separação de corpos, a condição de mulher divorciada era infamante. O preço que Chiquinha Gonzaga pagou para transformar essa condenação em invenção de um novo papel social, superação pelo trabalho, construção de uma carreira profissional e conquista de respeito público foi muito alto”, observa a escritora Edinha Diniz, no livro Chiquinha Gonzaga – Uma história de vida, lançado originalmente em 1984 e que ganhou, em 2009, uma edição revista e atualizada, possível com a parceria do Instituto Moreira Salles, que cuida da obra da compositora, com a editora Zahar.

“Entre a liberdade e a maternidade, ela não hesita. Sua aspiração à liberdade plena esbarra continuamente na autoridade paterna, na opressão conjugal, na força da Igreja, nas convenções sociais… e até na servidão biológica”, escreve Edinha, para quem, conforme se lê no livro, Chiquinha emblematiza, no Brasil, um conflito que tem a segunda metade do século 19 como cenário. “Ela se depara, naquele momento histórico, com o sonho da grande aventura burguesa, de um lado, e de outro com a inexorabilidade do papel ‘honroso’ do qual nenhuma mulher podia fugir: ser mãe”, argumenta a escritora.