De sabedoria e fé

Sob o pretexto do Dia de Iemanjá, cinco livros que encantam ao se dedicar às tradições afro-brasileiras

 

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 190 (Fevereiro/2020)

 

Ler sobre tradições religiosas, seja qual for o interesse ou a crença de cada um, significa acessar um dos repertórios mais instigantes da experiência humana. Não só por ser um tema relacionado à fé, algo ainda intraduzível integralmente em palavras, mas também pela constatação da diversidade e da riqueza que envolvem conexões ancestrais da humanidade com os assuntos de ordem espiritual.

Neste 2 de fevereiro, por exemplo, comemora-se em todo o País o Dia de Iemanjá, uma divindade que no Brasil, por sua popularidade, não é familiar apenas aos seguidores da umbanda e do candomblé, as tradições de matriz africana que têm sua essência filosófica e teológica baseadas nas religiões tradicionais da África. Na mitologia africana, Iemanjá é um dos orixás, divindades que ordenam o mundo por estarem presentes nas forças da natureza.

Na versão mais poética, Iemanjá, “a rainha do mar”, está em músicas, histórias, lendas e imagens icônicas reconhecíveis ao primeiro olhar. Ela é tão adorada que passou, no sincretismo religioso brasileiro, a ser uma figura-chave também nas celebrações do Ano Novo, quando recebe oferendas simbólicas de todos os tipos.

A umbanda e o candomblé surgiram no Brasil junto com a cruel escravização dos povos da África e não têm uma tradição escrita determinada por uma única escritura sagrada, como acontece em tradições monoteístas ocidentais como a Bíblia, a Torá e o Corão, respectivamente no cristianismo, no judaísmo e no islamismo. Elas são marcadas pela oralidade e pela prática cotidiana de rituais seculares e, inclusive por isso, inspiram livros admiráveis, como os que selecionamos sob o pretexto de saudar Iemanjá.

 

/Foto Divulgação

Contos e lendas afro-brasileiros – A criação do mundo
Do catálogo da Companhia das Letras, o livro de Reginaldo Prandi, sociólogo, professor e pesquisador premiado por sua contribuição à preservação da cultura afro-brasileira, virou um clássico sobre tradições que vieram da África. No livro, a personagem Adetutu, uma jovem mãe africana, é transportada ao Brasil em um navio negreiro e os contos e lendas mostrados em seus sonhos – que tratam da criação do mundo pelos orixás, deuses de seu povo – fazem parte do patrimônio mitológico iorubá, herdado e preservado no Brasil ao longo dos séculos, sempre contado de boca em boca.

 

 

 

Mitologia dos orixás
Eis outro trabalho de fôlego do professor Reginaldo Prandi, autoridade no tema, para a Companhia das Letras. Em 624 páginas, o livro é apresentado como “a mais completa coleção de mitos da religião dos orixás já reunida em todo o mundo”. São 301 relatos mitológicos, histórias que contam, por meio de imagens concretas e não de ideias abstratas, como são, o que fazem, o que querem e o que prometem os deuses do rico panteão africano que sobreviveu e prosperou em países da América – em particular no Brasil e em Cuba –, e tem sido exportado para a Europa. Há imagens de todos os orixás que se manifestam em cerimônias do candomblé no Brasil e ilustrações do artista plástico Pedro Rafael.

 

 

 

Lendas africanas dos orixás
Título da editora Pierre Verger, o livro é dos trabalhos mais conhecidos de Pierre Fatumbi Verger (1902-1996), o ilustre fotógrafo e etnólogo franco-brasileiro que incluiu o Fatumbi como seu nome religioso. Desde o seu lançamento, em 1985, passou a ser um dos títulos mais procurados por pesquisadores, religiosos e interessados em assuntos da diáspora africana. Relançado, mantém todas as lendas anotadas por Verger a partir das narrativas dos adivinhos babalaôs africanos e que, como diz Arlete Soares no texto de apresentação da primeira edição, são “histórias que constituem, todas elas, testemunhos diretos e espontâneos da cultura iorubá, cuja influência na nossa cultura faz-se sentir de maneira tão acentuada”. O livro traz belas ilustrações de Carybé.

 

 

 

Orixás, deuses iorubás na África e no Novo Mundo
Mais um título com a assinatura de Pierre Fatumbi Verger para a editora que leva o seu nome. O livro é fruto das constantes viagens de Verger à África entre 1948 e 1965 e apresenta textos e ilustrações que comentam e mostram certos aspectos do culto aos orixás, deuses dos iorubás, em seus lugares de origem na África (Nigéria, ex-Daomé e Togo) e no Novo Mundo (Brasil e Antilhas), para onde foram levados entre 1700 a 1850 como escravos. O prefácio é assinado por Mãe Stella de Oxóssi, ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. Há também fotos inéditas que foram inseridas na nova edição do livro.

 

 

 

Yemanjá
Da Edições SM, o livro de Carolina Cunha documenta lendas, histórias e tradições em torno da figura que, dizem, tem sete nomes, mas é uma só, à qual se chega por sete caminhos. O mito de Yemanjá fica ainda mais rico quando observado sob perspectivas e culturas diferentes. Ela aparece como rainha universal, senhora mãe do mundo. “Deusa dos antigos egbás, povo nigeriano de língua iorubá, tinha seu palácio no fundo do oceano. Em Abeokutá, para onde este povo migrou mais tarde, Yemanjá se tornou a divindade de um rio. Nestas regiões da África é representada por uma mulher grávida. No Brasil e em Cuba, Yemanjá é uma sereia a quem as comunidades praianas dão oferendas com pompa e grandes festejos”, descreve a sinopse do livro.