O homem-coragem

“A literatura é um jogo, e eu adoro esse jogo”, disse o escritor e ativista Amós Oz, morto em dezembro 

Ilustração Jonas Ribeiro Alves

*Matéria publicada na revista Vila Cultural 178 (fevereiro/2019).

 

“Meu pai amado, Amós Oz, um homem de família maravilhoso, um autor, um homem de paz e de moderação, faleceu hoje, após uma breve batalha contra o câncer. Ele estava rodeado por pessoas que o amavam e que sabiam disso até o fim. Que seu legado de bondade prossiga para transformar o mundo”, escreveu, nas redes sociais, Fania Oz-Salzberger, filha do escritor, ao comunicar, no dia 28 de dezembro do ano passado, a morte, aos 79 anos, de um dos autores mais importantes da atualidade. Não só por sua literatura e pela obra que se confunde com a história recente de Israel, mas também pelas reflexões e atuação em favor da paz.

Com o sobrenome que herdou da mãe e que significa coragem em hebraico , Oz foi ativista e um dos fundadores do movimento de esquerda Paz Agora. Ao trazer a público os paradoxos político-militares israelenses, agregou informações importantes na discussão, que se dá com alcance global, sobre o conflito Israel-Palestina.

A obra de Oz está publicada em mais de 40 países e inclui títulos como Meu Michel, que o fez conhecido no circuito literário do Ocidente no final da década de 1960, De amor e trevas, um misto de autobiografia e romance que virou filme pelas mãos da atriz e diretora Natalie Portman, e Como curar um fanático, publicado em 2004. No romance Judas, de 2014, Amós Oz questiona a fundação do estado de Israel e as guerras que abalam o Oriente Médio a partir de uma história de amor protagonizada pelo personagem Shmuel Asch.

Em 2017, o escritor e pensador israelense esteve no Brasil para a palestra de abertura do prestigiado Fronteiras do Pensamento. Na época, Oz concedeu uma entrevista ao jornal gaúcho Zero Hora em que reafirmava a essencialidade do “dom da literatura” para a experiência humana. “Eu não gosto de fazer generalizações a respeito do papel social de escritores ou da literatura. Eu prefiro falar sobre o dom da literatura. Penso que romances, contos, poesia, podem abrir para leitor diversas janelas para o mundo exterior e para dentro de si mesmo. Para mim, como leitor, os livros que eu gosto foram um presente. Não são apenas veículos para carregar ideias ou conclusões ou algum tipo de manifesto político. Não, primeira e principalmente foram uma fonte de deleite. Acredito que contar e ouvir histórias são necessidades humanas básicas. Quando temos dois anos de idade, gostamos de ouvir histórias antes de dormir. Um pouco mais e estamos querendo que as pessoas ouçam as histórias que contamos. É uma necessidade humana, como o sonho ou o sexo. Não sinto que a literatura seja algum tipo de veículo carregando mensagens de um ponto a outro ou de uma pessoa para outra. Não é sobre manifestos ou balanços. A literatura é um jogo, e eu adoro esse jogo“, declarou.

Também durante sua passagem pelo Brasil, Amós Oz, sempre citado como um potencial merecedor do Nobel da Paz, voltou a fazer um alerta recorrente para o mundo, que, na percepção dele, viu expirar o “prazo de validade” de algumas conquistas importantes da humanidade no século 20. Ele disse o seguinte, em depoimento documentado em vídeo pelo Fronteiras do Pensamento (veja em www.fronteiras.com): “Ao longo da história, as pessoas não precisam de muitos motivos para odiar outras pessoas. Ao longo da história, as pessoas odiavam as outras porque não eram iguais a elas. Deveriam ser mas não eram. Homens odiavam mulheres porque as mulheres não são como homens. Negros e brancos, oriente e ocidente, ricos e pobres, odiavam-se entre si: é um componente da natureza humana. No século 20, por causa do grande trauma causado por Hitler e Stalin, as pessoas ficaram relutantes por um tempo. Tornaram-se cuidadosas com seu ódio, com o fanatismo radical, com o racismo. Esse foi o presente de Hitler e Stalin. Eles nunca quiseram dar esse presente, mas acabaram deixando esse bom presente. Agora esse presente está chegando ao seu prazo de validade. Está emergindo uma geração mais nova que mal se lembra dos horrores de Stalin e Hitler, portanto o ódio, o racismo, a misoginia e o preconceito voltam em todos os lugares”. Que o alerta de Oz seja ouvido.