“O feminismo nos faz pensar em questões recalcadas em nossa sociedade”, diz Marcia Tiburi, que lança novo livro
*Matéria publicada na revista Vila Cultural 166 (fevereiro/2018).
Fotos Divulgação
A escritora e filósofa Marcia Tiburi lança na tarde do dia 3 de fevereiro, sábado, na loja da Fradique, o livro Feminismo em comum (Rosa dos Tempos/Record), um manifesto sobre o feminismo e a sua potência transformadora. O subtítulo do livro é Para todos, todes e todas, e logo no início Marcia explica que para identificar o gênero não binário, em lugar de “x” ou “@”, como é mais comum, opta-se, no livro, por usar a letra “e” (como em todes), “de modo a não criar barreiras para a acessibilidade do conteúdo por deficientes visuais”. É um detalhe importante para um título que conceitua feminismo como “o desejo e a via para uma democracia radical voltada à luta por direitos de todas, todes e todos que padecem sob injustiças sistematicamente armadas pelo patriarcado”.
Marcia chama de patriarcado um sistema profundamente enraizado na cultura e nas instituições, algo que o feminismo busca desconstruir. Ele tem por estrutura a crença em uma verdade absoluta, que sustenta a ideia de haver uma identidade natural, dois sexos considerados normais, a diferença entre os gêneros, a superioridade masculina, a inferioridade das mulheres e outros pensamentos que soam bem limitados, mas ainda são seguidos por muitos, como diz Marcia.
A escritora assume que o livro é um convite a levar o feminismo muito a sério, para além de modismos e discursos prontos, de maneira que ele seja capaz “de melhorar nosso modo de ver e de inventar a vida”. “O feminismo nos leva à luta por direitos de todas, todes e todos. Todas porque quem leva essa luta adiante são as mulheres. Todes porque o feminismo liberou as pessoas de se identificarem como mulheres ou homens e abriu espaço para outras expressões de gênero – e de sexualidade –, e isso veio interferir no todo da vida. Todos porque luta por certa ideia de humanidade e, por isso mesmo, considera que aquelas pessoas definidas como homens também devem ser incluídas em um processo realmente democrático”, escreve Marcia, que concedeu a seguinte entrevista à Vila Cultural:
Vila Cultural. Poderia comentar o título do livro?
Marcia Tiburi. Publiquei em 2008 um livro chamado Filosofia em comum. Nele eu defendia a ideia de que “filosofia” é um tipo de pensamento em que as diferenças entram em diálogo. Nesse novo livro, trago a ideia de que o feminismo, seja pensando como teoria ou como prática, também tem esse potencial de diálogo. O feminismo nos faz pensar em questões recalcadas em nossa sociedade e nos permite conversar sobre elas. A meu ver esse é o aspecto mais importante do feminismo para os nossos dias. Para levar a uma transformação social, ele precisa propor uma democracia real que só se alcança pelo diálogo radical, para além das ideologias.
VC. O que o livro agrega à sua valiosa produção, como autora, sobre o feminismo?
MT. Agradeço suas palavras no que concerne ao meu trabalho. Nesse caso, esse pequeno livro é uma espécie de manifesto. Pretendo por meio dele propor que pensemos com mais delicadeza sobre o feminismo. Ele é mais do que um discurso, tornou-se uma espécie de clamor que precisa ser ouvido. Ouvir esse clamor nos ajudará a compreender a sociedade na qual ele surge. A meu ver, olhar para o feminismo, independentemente de nossos gêneros, nos levará a abrir nossa perspectiva de mundo.
VC. Qual é a maneira mais eficiente para aprendermos a pensar e a viver o feminismo?
MT. Em primeiro lugar, é mais do que válido estudar a história das mulheres. Entender como nos tornamos o que somos. A meu ver o feminismo é uma formulação ético-política, não apenas um movimento, ainda que seja fundamental a sua forma de movimento. Se há um movimento é porque há grupos e coletivos que têm demandas que não foram contempladas. Se queremos uma sociedade justa precisamos ouvir essas demandas. Em primeiro lugar, as pessoas não precisam ter medo do feminismo. Elas podem ver nele uma utilidade prática: é o feminismo que melhor nos ajuda a entender a sociedade em que vivemos.
VC. Por que, como você diz, o feminismo é uma urgência em 2018?
MT. O ano de 2018 se tornou decisivo para o Brasil. Depois do golpe que jogou no lixo o voto da população em 2016 temos a chance de refazer nas urnas o sentido da democracia. As mulheres infimamente representadas no espaço do congresso têm uma chance de mudar isso. Não mudaremos esse cenário de sub-representação sem que levemos a sério a discussão feminista que se dá, nos dias atuais, junto com a discussão sobre classe e raça. Chamamos de interseccional ao feminismo que se propõe a partir dessas interfaces. Por outro lado, não vejo como mudar a política brasileira sem que se defenda uma democracia radical, e ela implica pensar essas questões que são o tema do feminismo hoje.
VC. Qual é a questão central da identidade para mulheres e feministas neste momento?
MT. Esse é um tema complexo. Há basicamente dois feminismos, o que defende a ideia de igualdade e o que defende a diferença. Ambos lutam por um mundo melhor para todas as pessoas. No meio disso, há especificidades e chega-se a essa ideia de identidade. Pensar o feminismo como uma crítica da sociedade, como defesa da singularidade me parece urgente e, para chegarmos nisso, precisamos discutir com firmeza a questão da identidade e da desigualdade. A meu ver hoje, os chamados “movimentos identitários” reivindicam uma crítica da desigualdade e usam a identidade como forma de autoafirmação contra a desigualdade que, em certos casos, pode soar essencialista. É uma forma de lutar contra as formas de opressão que sempre foram identitárias. Ora, o machismo branco e burguês é ultraidentitário, mas camufla-se como algo natural. No meu livro, no entanto, eu tento discutir isso com cuidado, porque a identidade precisa ser analisada historicamente e não como um fato
da natureza.
VC. Como lidar, de maneira prática, no dia a dia, com as armadilhas da “ideologia do gênero” e o que essa expressão significa agora?
MT. Do modo como vem sendo usada, essa expressão é uma verdadeira deturpação do sentido, tanto do termo ideologia, quanto do termo gênero. Gênero é um tema que vem sendo debatido com seriedade no campo dos estudos de gênero, mas no contexto atual vem sendo tratado com um sentido completamente invertido. Isso faz parte de um jogo de poder por parte daqueles que se sentiram ameaçados pela crítica e pela desconstrução contidas no conceito de gênero. No livro, busco esclarecer que o patriarcado é a ideologia de gênero. E que o modo como a expressão vem sendo usada por fundamentalistas não faz sentido, senão como mistificação.
VC. Por que o “padrão heteronormativo” ainda consegue se sustentar como “verdade” sobre tantas pessoas e sociedades?
MT. A heteronormatividade é, como qualquer normatividade, desejada por sociedades conservadoras. Os conservadores têm medo da diferença e, por isso, tentam eliminá-la. A heteronormatividade é adequada ao sistema e ajuda a reproduzi-lo. Em um contexto autoritário como o nosso ela se torna ainda
mais potente.
VC. Como entender – ou explicar – a ética feminista?
MT. Qualquer ética que deixe de lado a questão das opressões será parcial. Uma ética parcial, no entanto, soa contraditória. Desse modo, os debates sobre ética ou que têm intenções éticas, em nosso tempo, precisam tratar das questões que nos tocam hoje. O problema da opressão, no aniquilamento do outro, da violência contra o outro e contra si mesmo, a questão da justiça, dos direitos, da desigualdade, da escravidão, do racismo, dos abusos de poder das corporações em geral, inclusive midiáticas, a questão ecológica, são fundamentais como é a questão gênero. O feminismo é a ético-política que contempla tudo isso que não é contemplado no paradigma machista. E por isso mesmo podemos dizer que o feminismo é outro paradigma de compreensão e de
transformação social.
VC. Qual a sua opinião sobre a repercussão da campanha Time’s Up na recente cerimônia do Globo de Ouro, nos Estados Unidos, e o que ela significa neste momento para o feminismo?
MT. Todas as manifestações contra opressões machistas e de qualquer outra natureza, todos os desmascaramentos que possam ser feitos para melhorar a vida das pessoas, são bem-vindos. No entanto, na condição periférica que o Brasil ocupa, temos ao mesmo tempo que tomar cuidado para não transformar o nosso feminismo em um movimento que segue padrões estrangeiros. É bem importante cuidarmos das nossas características e especificidades. É importantíssima a adesão de feministas de todas as frentes, inclusive das atrizes famosas que dão visibilidade ao movimento. O feminismo é, ele mesmo, um movimento para tornar visíveis as injustiças que mulheres vivem em todo o mundo, nos mais diversos contextos. Com isso, esperamos que essas injustiças sejam ultrapassadas e superadas.
LANÇAMENTO
Livro: Feminismo em comum (Rosa dos Tempos/Record), de Marcia Tiburi
Loja: Fradique
Quando: dia 3 de fevereiro, sábado, entre 15h e 18h