Prestes a completar 464 anos no dia 25 de janeiro, a maior cidade do país segue como um dos conglomerados urbanos mais instigantes do mundo, fonte de inspiração para livros sobre a realidade urbana ou ficção atemporal
*Matéria publicada na revista Vila Cultural 165 (janeiro/2018).
Ao fundarem oficialmente no dia 25 de janeiro de 1554 o Colégio dos Jesuítas, os padres Manuel da Nóbrega e José de Anchieta provavelmente não imaginavam que aquele seria o marco zero para o nascimento da maior cidade do País, uma metrópole mundial e, melhor ainda, um dos conglomerados urbanos mais fascinantes de que se tem notícia. Gostem dela ou não, caótica ou acelerada, dispendiosa, barulhenta ou poluída, a São Paulo que festeja 464 anos também é o lugar dos sonhos de muita gente que decidiu realizar na cidade seus grandes projetos de vida. Entre a sedução e a estranheza, a cidade só não deixa passar imune quem tem a sorte de conhecê-la ou viver nela. E seu nome, para quem não se lembra, é uma homenagem ao apóstolo Paulo que, de acordo com a tradição católica, teria se convertido ao cristianismo no dia 25 de janeiro.
Por tudo isso, São Paulo é, antes de tudo, um lugar de muitas inspirações. “O bom de São Paulo são as pessoas. Ou melhor, os amigos. Em São Paulo, como em toda grande cidade, tem-se o privilégio de poder viver muitas vidas diferentes. Frequentam-se os grupos mais variados, díspares, e tudo dá certo. É o que proporciona o tempero da vida. São Paulo é muito mais um lugar de prazeres interiores que exteriores”, escreve, num artigo sobre a cidade, a consultora de moda Costanza Pascolato, autora dos livros O essencial (Sextante) e Confidencial (Jaboticaba) e uma das profissionais mais respeitadas e admiradas do país. Nascida na Itália, ela se transformou numa autêntica paulistana, apaixonada sobretudo pela diversidade do lugar que sua família escolheu para viver.
“São Paulo não exige nada. E tem um potencial infinito de usina cultural, principalmente se você pensar na cultura da periferia, que é a coisa mais potente que aconteceu na cultura brasileira. É um dos lugares mais interessantes do mundo. Tem cidades, como Nova York, que são opressoras. Que tem a demanda de ter dinheiro, de ser bem-sucedido, de estar na festa que se vê na janela do 83º andar do prédio. São Paulo não me pede nada. E são poucas as cidades no mundo em que você pode desaparecer. São Paulo deixa você desaparecer”, disse, em entrevista à Vila Cultural, o escritor carioca João Paulo Cuenca, que trocou o Rio de Janeiro pelos cenários paulistanos.
Da fashionista ao intelectual, independentemente dos grupos, São Paulo sempre aparece em ótimos livros – um passeio por obras de autores, estilos e épocas diversas pode ser excelente pretexto para celebrar o aniversário da cidade. Entre sucessos editoriais recentes, como resistir às descrições e situações tipicamente paulistanas que se multiplicam em Rita Lee – Uma autobiografia (Globo Livros) A cantora e escritora, que viveu a infância e parte da adolescência na Vila Mariana, é “paulistana da gema” e tem uma conexão indissociável com a metrópole, que aparece com toda sua dinâmica como cenário para histórias animadíssimas da roqueira. Com seu estilão rápido e cortante e jeitão de biografia não autorizada, ainda que tenha pensado meticulosamente nas histórias e opiniões que decidiu compartilhar com o leitor, Rita não economiza na relação amorosa com a terra onde nasceu.
No plano da ficção, em texto igualmente fascinante, a São Paulo de Pornopopeia (Objetiva), livro imperdível de Reinaldo Moraes que brinca com o idioma vivo e as loucurinhas criativas, aparece, tal qual o protagonista e narrador Zeca, um cineasta meio decadente, ligada no 220V. A rua Augusta e os arredores dos bairros Higienópolis e Consolação, por onde circulam alguns dos personagens, são só referências geográficas que fazem da cidade uma personagem pra lá de divertida na saga do escritor.
Um roteiro fabuloso da cidade é percorrido em Rotas literárias em São Paulo (Senac), de Goimar Dantas, autora deste verdadeiro dossiê sobre os caminhos indicados no título do livro. Depois de muita pesquisa, Goimar conseguiu reunir informações sobre a história dos locais, casos curiosos que neles aconteceram, fotografias e entrevistas com escritores, livreiros, editores, críticos literários e gestores culturais que participam do cenário literário da capital paulista. No total, são 21 rotas rememoradas sob um olhar lírico e poético.
História atemporal com referências a uma São Paulo um pouco mais nostálgica, o romance As meninas (Companhia das Letras), de Lygia Fagundes Telles, se passa na época da ditadura militar no Brasil e trata da liberdade de escolhas que cada um deveria ter, em especial as mulheres. Com maestria, a escritora focaliza três universitárias que compartilham, com algumas freiras, um pensionato em São Paulo, local onde elas iniciarão a vida adulta de forma diferente. Ana Clara gosta de um traficante e vive drogada. Lia milita num grupo da esquerda armada e sofre pelo namorado preso. Lorena, filha de família tradicional e burguesa, ajuda as outras duas com dinheiro sem ligar para a política ou as drogas, e se apaixona por um médico casado.
Outro livro que garante um passeio pela metrópole no tom da ficção é Não verás país nenhum (Global), do escritor Ignácio de Loyola Brandão. Em tom apocalíptico, citando o fim dos tempos, a trama se dá numa São Paulo de “futuro não determinado, mas cada vez mais presente”. Há ainda governantes medíocres, cada vez mais distantes do povo, interessados apenas em vantagens pessoais, uma polícia corrupta e assustadora, formando um mundo sombrio no qual surpreendentemente vive-se uma história de amor. Mais atual e mais paulistano, impossível.