Conexão Rússia

Na contagem regressiva para a Copa do Mundo, um time de autores russos que é campeão da literatura mundial

Ilustrações Jonas Ribeiro Alves

Vila Cultural propõe uma conexão tão improvável quanto irresistível: aproveitar o foco esportivo que vai concentrar todas as atenções sobre a Copa da Rússia, a partir do dia 14 de junho, com o jogo de estreia entre o time do país anfitrião e a Arábia Saudita, para montar uma seleção imbatível de craques da literatura russa.
Mais relevante do que as linhas de defesa ou ataque, o esquema tático aqui é seguir uma linha cronológica que começa no século 18, com o trabalho precursor de Aleksandr Púchkin, passa por clássicos intemporais de autores que viveram no século 19 como Nikolai Gógol, Fiódor Dostoiévski e Anton Tchekhov, e chega aos dias atuais, com autores contemporâneos como Liudmila Petruchévskaia.
Ainda que esses nomes nem sempre soem familiares ao leitor brasileiro, há, em tempos de economia e comunicação globais, o facilitador de atuações como o da Editora 34, parceira da Livraria da Vila na iniciativa de destacar os autores russos. A editora mantém um segmento dedicado fortemente à literatura russa e faz um trabalho primoroso ao mobilizar tradutores e especialistas em torno da produção ficcional que é valiosa para história da literatura, além de disponibilizar, em seu site. Um verdadeiro banco de dados sobre escritores da Rússia, e de onde foram editadas as principais informações biográficas da seleção
a seguir.
Na 34, nomes como o da professora Arlete Cavaliere, da área de Língua e Literatura Russa na Universidade de São Paulo, além de um grupo de tradutores e editores que se dedicam prioritariamente a manter o rigor e a meticulosidade ao trabalhar, no idioma original, com autores tão importantes, são referências incontornáveis. Confira os nomes dessa autêntica seleção russa.

 

 

Aleksandr Púchkin (1799-1837)
Com uma obra que passeia por diversos gêneros literários, o trabalho do escritor é considerado decisivo para a consolidação da língua literária russa. Por isso, a influência de Púchkin é observada não só em autores da sua geração mas no trabalho de escritores como Gógol, Dostoiévski, Tolstói, Turguêniev, Tchekhov, Maiakóvski. “Púchkin deu à Rússia sua língua literária e, com isso, sua sensibilidade”, escreveu o Nobel de literatura Joseph Brodsky.O romance em versos Ievguêni Oniéguin é considerado sua obra-prima. O livro A dama de espadas, que junta prosa e poesia, foi traduzido para o português por Boris Schnaiderman e Nelson Ascher e ganhou, em 2000, o Jabuti de melhor tradução. É formado por três novelas e quatro contos, além de 16 poemas de Púchkin, compondo uma ótima introdução à prosa e à poesia do escritor russo.

 

 

Fiódor Dostoiévski (1821-1881)
O escritor estreou na literatura com Gente pobre, em 1846. Após ser preso e condenado à morte pelo regime czarista em 1849, teve sua pena comutada para quatro anos de trabalhos forçados na Sibéria, experiência retratada em Recordações da casa dos mortos (1862). Após esse período, escreveu uma sequência de grandes romances, entre eles Crime e castigo, publicado em 1866. É a obra mais célebre e cultuada do escritor. No livro, Raskólnikov, um jovem estudante, pobre e desesperado, perambula pelas ruas de São Petersburgo até cometer um crime que tentará justificar por uma teoria: grandes homens, como César ou Napoleão, foram assassinos absolvidos pela história. Este ato desencadeia uma narrativa labiríntica que arrasta o leitor por becos, tabernas e pequenos cômodos povoados de personagens que lutam para preservar sua dignidade contra as várias formas da tirania.

 

 

Ivan Turguêniev (1818 – 1883)
Consagrado como um dos maiores escritores russos, ao lado de Dostoiévski e Tolstói, e autor de vasta obra que inclui teatro, poesia, contos e romances, Turguêniev nasceu numa família aristocrática e estudou em Moscou e São Petersburgo antes de se mudar em 1838 para Berlim, onde frequentou cursos de filosofia, letras e história. Em 1843, conheceu o crítico literário Bielínski e, influenciado por suas ideias, começou então a publicar contos que depois foram reunidos em Memórias de um caçador (1852), coletânea que fez sucesso na Rússia e na Europa. Depois, mudou-se para a França, onde tornou-se amigo de escritores como Flaubert. Nos anos 1850 escreveu diversas obras em prosa, entre elas Ninho de fidalgos (1859). Em 1856, lançou seu primeiro romance, Rúdin. Em 1860 escreveu a novela Primeiro amor e, dois anos depois, publicou Pais e filhos (1862), romance que é considerado um clássico da literatura mundial.

 

Lev Tolstói (1828-1910)
O espírito inquieto do escritor confirma-se no momento de sua morte, um episódio lendário na literatura: aos 82 anos, Tolstói fugiu de casa para se retirar em um mosteiro, mas morre na estação ferroviária de Astápovo, vítima de pneumonia. Depois de abandonar a universidade de línguas, ele alista-se no exército russo e começa a sua carreira de escritor, publicando os livros de ficção Infância, Adolescência e Juventude. Títulos que trariam enorme reconhecimento ao autor, Guerra e paz e Anna Kariênina são publicados respectivamente entre 1865 e 1869 e 1875 e 1878. No auge do sucesso, Tolstói passa a ter recorrentes crises existenciais, processo que culmina na publicação de Confissão, em 1882, onde o autor renega sua obra e assume uma postura social-religiosa que se tornaria conhecida como “tolstoísmo”. Mesmo assim, continua a produzir obras-primas como as novelas A morte de Ivan Ilitch (1886), A Sonata a Kreutzer (1891) e Khadji-Murát (1905).

 

Nikolai Gógol (1809-1852)
É reconhecido como o precursor da ficção russa especialmente pela habilidade como “mestre da paródia, do humor crítico e do nonsense”. Os textos teatrais de Gógol, encenados no mundo todo até hoje, estão na origem de algumas das experiências mais criativas do teatro de vanguarda do século 20. O livro Teatro completo (Editora 34), traduzido por Arlete Cavaliere, reúne a obra teatral de Gógol e inclui os textos Os jogadores, O casamento, À saída do teatro e Desenlace de o inspetor geral, com exceção de quadros fragmentários e inacabados, não incluídos em suas obras completas. Já O capote e outras histórias, organizado e traduzido diretamente do russo por Paulo Bezerra, traz algumas das histórias mais conhecidas de Gógol (O capote, O nariz e Diário de um louco), além de outras duas narrativas folclóricas, Viy e Noite de Natal.

 

 

Anton Tchekhov (1860-1904)
Apesar de inicialmente trabalhar como médico, fez fama como escritor, contista e colaborador da revista Nóvoie Vrêmia a partir de 1886. A montagem de sua peça A gaivota, em 1898, por Stanislavski, se transformou num sucesso e o ilustre Teatro de Arte de Moscou começou a encomendar outras peças ao autor. Surgem então Tio Vânia (1897), Três irmãs (1901) e O jardim das cerejeiras (1904). A dama do cachorrinho, traduzido por Boris Schnaiderman, traz contos breves, precisos e tocantes que revolucionaram a maneira de escrever narrativas curtas, influenciando os principais escritores que se dedicaram ao gênero depois dele. Grande parte da originalidade de Tchekhov reside no papel fundamental que desempenham, em suas histórias, a sugestão e o silêncio, a ponto de, muitas vezes, o mais importante ser justamente o que não é dito.

 

 

Ievguêni Zamiátin (1884-1937)
Engenheiro naval, Zamiátin começou a publicar contos quando se formou, em 1908. Depois partiu a trabalho para a Finlândia, e viajou à Inglaterra para supervisionar a construção de navios para o governo russo. Em setembro de 1917, esperançoso com a Revolução de Outubro, retornou à Rússia e passou a dedicar-se à literatura em tempo integral. Em 1919, foi preso por suspeita de associação ao partido dos Socialistas Revolucionários. Nos anos seguintes termina a redação de Nós, sua obra mais conhecida. O livro é citado como o principal fundador do gênero distópico, tendo influenciado autores como Aldous Huxley, George Orwell e Kurt Vonnegut, entre muitos outros. Num futuro distante, com a população mundial reduzida a 10 milhões de habitantes, instituiu-se uma sociedade controlada e mecanizada, o Estado Único. Sem espaço para o indivíduo, apenas para o coletivo, as pessoas não têm nomes, apenas números, e qualquer desvio é punido com a morte.

 

 

Vladímir Maiakóvski (1893-1930)
Defensor da ideia de que arte e política devem andar sempre juntas, o escritor ficou conhecido no Brasil principalmente por sua poesia, em especial pela pioneira tradução de seus versos feita em 1967 por Boris Schnaiderman e pelos irmãos Augusto e Haroldo de Campos. Mas a genialidade de Maiakóvski ultrapassa o campo da poesia e se manifesta também no teatro. Um dos exemplos mais célebres é a peça Mistério-bufo, escrita e montada inicialmente em 1918. Como uma narrativa alegórica do processo revolucionário na Rússia, combinando alusões à Bíblia com cenas e rimas das mais inusitadas, marcas de oralidade que ele resgata do teatro de feira e do circo para traçar um retrato vertiginoso e bem-humorado de um tempo que se propôs a reinventar radicalmente a vida.

 

 

Isaac Bábel (1894-1940)
Considerado o autor da prosa mais intensa e original da Rússia pós-revolucionária, o escritor fez fama mundial a partir da publicação dos contos de O exército de cavalaria, em 1926. Nem o enorme prestígio junto às autoridades do regime soviético, no entanto, foi suficiente para salvá-lo da perseguição stalinista: preso em 1939 sob a acusação de “atividades antissoviéticas e espionagem, foi fuzilado em janeiro do ano seguinte. O livro No campo da honra e outros contos, traduzido por Nivaldo dos Santos, traz narrativas de todas as fases da carreira do escritor. De imaginação exuberante e capacidade de aferir o peso de cada palavra na distribuição justa da frase, a escrita de Bábel parece ter encontrado uma fórmula secreta, incomparável, na qual – nas palavras de Jorge Luis Borges – “a música do estilo contrasta com a quase inefável brutalidade de certas cenas”.

 

 

Vladímir Nabokov (1899-1977)
O romance Lolita, de 1955, que fez Nabokov ficar conhecido mundialmente, é baseado no escândalo provocado pelo amor de um homem maduro por sua enteada de 12 anos. Recusado pelas editoras americanas por tratar de um tema tabu, o romance saiu por uma editora francesa dedicada a obras pornográficas, o que prejudicou fortemente a importância do livro, que faz análise irônica da sociedade contemporânea. Na juventude, a fuga da Rússia natal para a Inglaterra durante os distúrbios revolucionários de 1919 representou para Nabokov o início de uma vida nômade, que o levaria a Londres, Berlim, França, Estados Unidos e Suíça. Inclusive por isso, o destino do imigrante é um tema recorrente em suas narrativas. Mashenka (1926), A defesa (1929), O olho (1930) e Riso na escuridão (1934) são algumas das outras obras de Nabokov.

 

 

Liudmila Petruchévskaia (1938)
Histórias e contos de fadas assustadores é o subtítulo de Era uma vez uma mulher que tentou matar o bebê da vizinha (Companhia das Letras) e diz muito sobre o trabalho da escritora russa contemporânea que nasceu e vive em Moscou e faz sucesso no mundo todo, inclusive no Brasil. Liudmila já escreveu mais de 15 livros, além de peças de teatro. A escritora, que também canta e inventou uma personagem pública das mais criativas, foi considerada inimiga do povo pelo regime stalinista e teve seus livros censurados até o final da década de 1990. Pelo conjunto de sua obra, ganhou, em 2002, o prêmio Triumph, o mais prestigioso da Rússia. Citada por críticos como herdeira de Allan Poe e Gógol, dedica-se a histórias sobrenaturais que retomam a tradição dos contos folclóricos agregando humor contemporâneo e uma carga política evidente em seu trabalho.