“Futebol alimenta a alma”, diz o jornalista José Trajano, que faz do esporte um personagem em seus livros
“Sempre trabalhei muito, desde cedo, e continuo com muita vontade de fazer, de estar presente. No momento em que eu saí da TV, fui estimulado por uma moçada e acabei assumindo este projeto. Somando tudo, dá mais prazer do que trabalho. Só que você tem que se organizar para dar conta de tudo”, diz o jornalista e escritor José Trajano sobre o trabalho à frente do Ultrajano, uma plataforma digital de conteúdo dedicada preferencialmente aos temas ligados ao esporte, à política, à cultura geral e aos direitos humanos.
Um dos nomes mais conhecidos do jornalismo esportivo do país, Trajano foi diretor e fundador ESPN Brasil, da qual se desligou há dois anos. Além de manter participações e quadros em outras emissoras de TV e rádio, ele produz e comanda programas de entrevistas e debates agora disponíveis na web. Também já se dedica ao seu quarto livro, ainda sem data de lançamento. No começo do ano, trouxe a público o elogiado Os beneditinos (Alfaguara), que reforça sua paixão pelo futebol e simula memórias, algumas inventadas, com que cativa o leitor. Antes disso, publicou, ambos pela Paralela, Procurando Mônica, de 2014, com a história de uma paixão juvenil, e Tijucamérica, de 2015, em que dá ares fantásticos e mitológicos ao América, time-símbolo do bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. Interlocutor dos mais lúcidos, às vésperas de Copa do Mundo, Trajano concedeu a seguinte entrevista à
Vila Cultural:
Vila Cultural. Como avalia a trajetória de Os beneditinos desde o lançamento do livro?
José Trajano. A repercussão é maior do que eu imaginava. Vários amigos dizem que é o melhor dos três livros que escrevi. Sinto que as pessoas gostaram mais. Ainda que trate muito do esporte, como o Tijucamérica, que ficou mais preso ao futebol, Os beneditinos também focaliza o Rio de Janeiro dos anos de 1950 e 1960.
VC. Foi proposital criar um narrador-personagem que os leitores pensam ser você?
JT. Houve quem lesse o primeiro capítulo e me ligasse perguntando se eu estava muito deprimido. Porque no começo eu joguei muito pra baixo o “eu/personagem”. Desempregado, meio doente, desiludido da vida, ele vai morar num bairro em que não conhece ninguém. A diversão é pouca, porque ele não é do lugar. Mas não foi de propósito, ainda que eu tenha carregado muito com as minhas experiências. Por isso as pessoas confundem. E foram várias confusões. O pai de um amigo chegou a ligar me oferecendo ajuda financeira.
VC. Por que decidiu por um começo assim, jogando para baixo?
JT. Tem a ver com a desilusão de um momento cruel, muito ruim, que nós estamos vivendo, em que há mais notícias ruins do que boas. Na política, na violência do dia a dia. Tudo surpreende para o mal. Desde o assassinato de Marielle Franco, um absurdo, até a faixa que estenderam recentemente no Corcovado chamando o Lula, a Dilma e o Fernando Henrique de comunistas, dizendo que o Brasil jamais será vermelho. É tão absurdo que indica que as pessoas nem sabem quem foi Karl Marx. Os três, Fernando Henrique, Lula e Dilma, não têm nada de comunista, mas é uma ignorância que alimenta esse clima de Fla-Flu que vivemos agora. Com violência a toda hora, há gente da pior espécie, como um Jair Bolsonaro, falando asneira para uma grande camada da população. E quando você escreve ficção, você vai embora. Então o livro não deixa de ser um delírio. Você veste a camisa, engata uma primeira e vai.
VC. Como começou sua história com os livros?
JT. O primeiro livro, Procurando Mônica, eu fiz por causa de um caso que eu contava para muita gente. A história de um apaixonado, que chega a embarcar em um navio para Europa por causa de uma menina bonitinha. Eu contava e as pessoas morriam de rir porque cheguei a ser preso na Itália por causa dessa experiência. Quebração de cara total. Até que um dia eu resolvi escrever. Mas eu não me considero um escritor. Agora talvez eu possa até dizer que sou porque estou escrevendo o quarto livro. Mas eu acho que o escritor-escritor é uma outra categoria. No meu caso, tenho boas histórias para contar, o que é diferente de um cara que é mais “classudo”, que domina o idioma, que penetra na alma das pessoas de um jeito mais contundente. Aí você tem, só para ficarmos no presente, nos contemporâneos, um Sérgio Rodrigues, um Milton Hatoum, um Moacyr Scliar. Esses sim são escritores.
VC. Escrever é um prazer para você?
JT. É agradável. Você ocupa o tempo, se comunica mais pelo processo em si, de acordo com o que está acontecendo com o livro. É uma viagem. Para frente, para trás. Você retrocede, vai costurando. Na verdade, parece que é um processo solitário mas você não está sozinho. Você está envolvido naquela multidão de personagens, de situações.
VC. E como será o quarto livro?
JT. É o primeiro em que eu não sou personagem e que não é escrito em primeira pessoa. É um processo enriquecedor porque estou utilizando muitos livros, com títulos que tratam da história da política e do futebol do Brasil. Imaginei um personagem inspirado no meu avô e a história se passa na Fazenda da Forquilha, em Rio das Flores, da qual ele é o administrador. O personagem chama-se Zé Reis. Na estrada que dá acesso a fazenda, há um túmulo, de uma escrava, e do lado tem uma cruz, dizendo o seguinte: “Aqui morreu José Reis. O futebol deve muito a ele”. Por causa dessa citação, que me pareceu estranha, vou atrás da história. Por que, afinal, o futebol deve alguma coisa a esse tal de Zé Reis? A partir daí, se mexe com a história política do Brasil. O irmão do Reis, Vicente, era o braço direito do integralista Plínio Salgado, e eles organizaram o Golpe de 1938 porque consideravam Getúlio um traidor por causa do Estado Novo. E a história do futebol se mistura com essa trama. A ideia é entender porque o mundo do futebol passa por Rio das Flores. E a história acaba na década de 1960, antes do golpe militar. É bom que está me obrigando a ler muito.
VC. Na sua opinião, o futebol ajuda ou atrapalha o país?
JT. Ajuda, claro. O Juca Kfouri, inclusive, ao se formar em Ciências Sociais, defendeu essa tese de que o futebol não é o ópio do povo. Ao contrário, o futebol alavanca o país porque é uma forma de expressão popular, de cultura, que faz parte do nosso dia a dia e não nos deixa alienados por causa disso. Você pode ser um fanático torcedor sem deixar de ser um intelectual, um executivo. José Lins do Rego, Ary Barroso eram fanáticos torcedores do Flamengo. O homem escolhe um time e vai atrás dessa paixão durante toda a vida. Futebol alimenta a alma. Não acho que é pão e circo não. Um esporte que a gente gostou de jogar e hoje parece que já não se gosta tanto de ver. Uma pesquisa recente indica que 41% das pessoas não têm time. Ou seja: a maior torcida brasileira é de nenhum time. Muito louco isso. Aquele negócio de que o Brasil é o país do futebol hoje é verdade do mesmo jeito que a Inglaterra é, que a Itália é, que a Espanha é, que Portugal é, que a Argentina também é o país do futebol, porque as torcidas, assim como as nossas, são apaixonadíssimas pelo futebol nesses países. Então, eu acho que o futebol aproxima, faz bem. O que faz mal são os dirigentes corruptos que se mantêm no poder durante tanto tempo, os presidentes incompetentes dos clubes, a violência que tem acontecido nos estádios. Mas futebol é muito bom.
VC. Qual é a sua expectativa com a Copa?
JT. A expectativa para a Copa é sempre a mesma porque os países que podem chegar lá são sempre os mesmos, à exceção da Itália, que não vai estar na Rússia. Brasil, Alemanha, Inglaterra, Espanha e agora tem a França também, e a Bélgica. Jamais dá Costa Rica, Arábia Saudita. Não tem zebra na Copa do Mundo. Tem sempre um que se destaca um pouquinho e depois é eliminado, cai fora. Por isso, dependemos muito do Neymar, que é um jogador especial. O Tite conseguiu fazer uma seleçãozinha bem armada e classificou-se com um pé nas costas depois de o grupo estar tão mal quando ele assumiu. Mas Copa do Mundo tem muito equilíbrio também. O que vale mesmo é o melhor daquele mês. Você pode ser o melhor do mundo até ali, mas se naquele mês o time não for o melhor, não vai ganhar a Copa. Por isso, há muitos times que vêm mal, caindo pelas tabelas e naquele mês, pimba, jogam bem na Copa. Não adianta estar bem antes. Tem que estar bem durante. A Hungria ganhou a Olimpíada de 1952, foi na Inglaterra e bateu o invencível time inglês em Wembley, Londres, chegou na Copa de 1954, bateu em todo mundo, fez oito em cima da Alemanha e foi à final contra a própria Alemanha. Mas perdeu a Copa por quatro a dois.
VC. Quais os livros sobre futebol você costuma citar?
JT. Há muitos livros de futebol que têm importância histórica. Por isso, O negro no Futebol Brasileiro, do Mario Filho, é um livro de uma importância fundamental. Tem sociologia, tem história, tem tudo. Há quem diga que ele é o Casa Grande Senzala do futebol. E há livros que são sensacionais. Por exemplo, o livro O drible, do Sérgio Rodrigues, que ganhou o Prêmio Portugal Telecom alguns anos atrás, é sensacional. Você tem o do Moacyr Scliar, com A colina dos suspiros. As crônicas do Nelson Rodrigues. Ou Veneno remédio – O futebol do Brasil, do José Miguel Wisnik, que também é muito bom.
VC. Qual a sua percepção do jornalismo atualmente?
JT. O jornalismo está bem complicado. Vamos fechar a questão no jornalismo esportivo. No jornalismo impresso, há cada vez menos gente e menos espaço. Os jornais tinham cadernos, edições especiais de esporte e hoje têm uma, duas páginas no máximo. Na Folha, quando fui editor, às vezes fechávamos cadernos de 16 páginas para uma segunda-feira, que era o dia do esporte. Tudo foi deslocado para os meios digitais, o que fez a imprensa escrita diminuir muito. E os profissionais procuram ir para a televisão e para os sites, principalmente para a TV porque paga melhor e tem mais exposição. Os jornalistas saíram do impresso e foram para a televisão. Para os sites, eu tiro o chapéu e respeito por causa da criatividade e de uma linguagem que eu acho que combina com o esporte. Muita gente fazendo coisas mais humorísticas. Alguns são engraçados e outros tentam ser. Mas, na TV, nós estamos infestados por caras que entraram para o jornalismo querendo se passar como engraçadinhos de quinta categoria, e muitos ex-jogadores. Eu mesmo, na ESPN, contratei o Tostão, o Casagrande, mas eles eram exceções. De formação, de cabeça, de visão do mundo. Hoje você observa todos os canais e percebe que os jornalistas estão sendo jogados no lixo. Na verdade, agora quem manda é o marketing. Fazem pesquisa e dizem que o público gosta de muita programação ao vivo e da presença de ex-jogadores. Significa que todas as emissoras fazem mais ou menos igual. Não vejo ninguém tentando algum caminho alternativo. Não vejo programas de esporte com reportagens mais humanas, matérias mais profundas, tratando o esporte de um jeito legal, mais ou menos como o Caco Barcellos faz na Globo com o Profissão Repórter. No esporte, a reportagem dá lugar aos programas ao vivo, de estúdio, com um bando de homens falando, alguns engraçadinhos, outros não. É uma fórmula da qual não gosto porque acho muito repetitiva. Para mim, perdeu muito a graça
ver televisão.
VC. Você imagina o que pode acontecer com a revolução digital da comunicação?
JT. Não sei. Porque as redes sociais enlouqueceram as pessoas. Todo mundo pode falar o que quer, interpretar como quiser. Fica uma coisa estranha. Sou de um tempo em que as referências eram muito fortes, que o jornalismo tinha muito texto ainda e as redações tinham grandes mestres, professores, profissionais que eram referência para nós. Mas até eu, que gosto de ler, de folhear jornais, ando me interessando menos por eles.
VC. Por quê?
JT. Politicamente me incomoda muito essa coisa do partido único. Ver só um viés. Por isso que eu, do meu cantinho, tento fazer do meu jeito. Vou atrás do que eu acho mais correto. Apesar de que, nos grandes veículos, ainda há nomes indispensáveis. Na Folha, por exemplo, não tem como não ler o Jânio de Freitas, que é indispensável. No Estadão, tem que ler um Sérgio Augusto. A Globo pode até ter uma linha editorial X, mas tem profissionais lá que praticam um jornalismo de excelência. Ou seja: tem gente fazendo coisa boa, mesmo na grande imprensa, com a qual eu tendo a discordar na maioria das vezes.
VC. Qual a sua expectativa com as eleições?
JT. Não tenho nenhuma expectativa. Vou fazer 72 anos e já vi algumas eleições. A primeira que eu tomei mais consciência foi a de 1955, ganha pelo Juscelino, que tomou posse em 1956. Depois veio o Golpe Militar e ficamos sem eleições. Mas eu nunca vi uma coisa tão indefinida, tão esquisita como agora. Para começar, o líder das pesquisas, Lula, está preso. Ele estaria no segundo turno com todas as chances de se tornar presidente de novo. Esse já é um ponto de interrogação. O partido lança outro candidato? Não se sabe ainda. Entre os candidatos de centro e de direita, cada hora aparece um querendo ser. Fora os de sempre, Marina, Ciro Gomes… É uma coisa de louco. Tem a figura tétrica e abominável que é o Bolsonaro. Tem muitos candidatos. Então o panorama é muito confuso. Há uma tentativa de desmoralizar a política, que é a pior coisa que se pode fazer porque teríamos que optar por um candidato que não fosse político. Mas o político é uma figura importante. Por mais que a gente tenha tido pessoas que fizeram lambança, a política tem que ser exercida como um direito da democracia. Nós temos que pensar nisso. E é a eleição mais perigosa que temos porque elege congresso, que pode ser ainda pior do que o que está aí. Temos eleição para governador também. É diferente caso fosse uma eleição para prefeito e vereador. Presidente, governador, deputados e senado é bem complicado.
VC. Acha que Brasil tem jeito?
JT. Claro que tem. Mas ninguém sabe como. Por pior que esteja e por pior que possa ficar, tem que ter alguma luz no fim do túnel.