A tirania do amor

Com um protagonista que pensa o mundo a partir da matemática, Cristovão Tezza lança seu novo romance

“Considero A tirania do amor o romance em que minha literatura se realiza mais plenamente”, diz, em entrevista exclusiva à Vila Cultural, o escritor Cristovão Tezza, que lança seu novo livro na Livraria da Vila do Shopping Pátio Batel dia 2 de maio, em Curitiba, onde ele vive.
O contentamento do escritor, autor do celebrado O filho eterno, já traduzido para diversos idiomas, também vem com uma considerável distinção ficcional. No lugar da literatura ou da filosofia, que, de alguma forma, pautavam as obras anteriores de Tezza, autor de O professor e A pianista, personagens-títulos de romances recentes, entra a matemática – a “arte sem afetação”, que promete uma forma lógica de pensar o mundo.
É exatamente a “disciplina” da precisão e da lógica que impulsiona as digressões de A tirania do amor (Todavia). Neste caso, na voz e na história de Otávio Espinhosa, um economista que vive uma profunda crise pessoal, com um casamento falido, problemas com o filho militante político, o fim humilhante de sua carreira acadêmica e a experiência sui generis de ter tentado enriquecer como guru de autoajuda.
No meio dessa verdadeira turbulência cotidiana, Otávio decide, logo na “cena” que abre o livro, abdicar completamente do sexo, numa decisão tão assustadora e improvável como libertadora e prosaica. Se, como diz Tezza, é nessa trama que sua literatura se dá plenamente, também sobram motivos para que os leitores se interessem integralmente pela história, com seu panorama atualíssimo do Brasil em tempos de Lava Jato. A propósito, ao ser perguntado sobre o que a operação anticorrupção mais comentada do país mudou em Curitiba, local estratégico nas investigações e prisões de condenados, Tezza diz que “rigorosamente nada”: “Para mim, Curitiba continua a mesma cidade agradável e literária de sempre”, afirma.
Além do novo livro, outros projetos mobilizam o escritor em 2018, ano que marca três décadas do lançamento do romance Trapo, que foi publicado em 1988, nunca saiu de catálogos de diferentes editoras e marcou, como diz Tezza, a transição de “escritor local” para um autor com visibilidade nacional. A edição crítica e comemorativa dos 30 anos que sairá em agosto pela editora Record tem posfácio assinado por Tezza para contar a “história da história” do romance.
Antes disso, no mês que vem, a editora Dublinense traz a público uma coletânea valiosa produzida a partir de conferências que Tezza fez na última década. Com o título Literatura à margem, o livro surge como um documento essencial por registrar, na percepção de um dos autores mais importantes do país, “as tentativas de compreender o processo da criação literária e o seu sentido no mundo de hoje”.
“Meter-se na linguagem é um processo perigoso, transformador e sem volta. Mais: sem nenhuma garantia de nada. Não consigo mais me imaginar fora desta relação entre mim e meu texto. Acabou sendo uma âncora estabilizante da minha vida”, disse Tezza à Vila Cultural em 2014, quando do lançamento de O professor.
Autor de mais de uma dezena de livros, Tezza foi professor universitário e há quase dez anos deixou a vida acadêmica para dedicar-se exclusivamente à literatura. Desde o ano passado, com o mesmo rigor com que cuida de seus livros, é colunista do jornal Folha de S.Paulo, em que trata de temas dos mais diversos, numa tarefa, conforme ele diz, que não é das mais fáceis. Ainda assim, ele parece tirar de letra, com perdão do trocadilho. Em dezembro do ano passado, sob o título A internet é onipresente como Deus e promete maravilhas como o Diabo, o escritor escreveu o seguinte em sua coluna quinzenal: “(…) Hoje os fatos já vêm de fábrica embrulhados na opinião (pensei em escrever ‘envelopados’ para lhes dar um certo pedigree, mas na verdade são embrulhos mesmo), todos pedradas diretas na testa. Dessa evidência corriqueira, extraio meu ponto de referência histórica do antes e do depois: a internet. Entre nós, a data de 2000 seria uma boa medida da virada sem volta. A internet não é de esquerda nem de direita; como Deus, está em toda parte, com a indiferença da eternidade; e, como o Diabo, nos atenta a cada minuto prometendo maravilhas, de lindas russas que namoram até carteirinhas do Exército Islâmico”. Leia a entrevista do escritor.

Vila Cultural. Como tem lidado com a expectativa em torno do novo livro?
Cristovão Tezza. Por mais veterano que o escritor seja (no meu caso, já são mais de dez romances publicados), um lançamento é sempre um momento de insegurança. O trabalho em arte não tem garantia nenhuma; é uma atividade de alto risco. Mas, é claro, terminar um livro sempre me dá uma boa margem de prazer. Desta vez, há uma expectativa a mais porque considero A tirania do amor o romance em que minha literatura se realiza mais plenamente.

VC. Poderia comentar o título do romance?
CT. A relação amorosa é uma espécie de “prisão desejada”, uma dependência mútua, e com graus de exigência bastante complexos. Pode ser, também, um sentimento apenas unilateral, o que dói. Enfim, a ideia de “tirania” é uma metáfora que, como toda metáfora, mantém uma relação com o fato real. Meu personagem se vê envolvido numa rede complicada e opressiva de afetos, desde a relação difícil com o próprio pai, até o naufrágio de seu casamento.

VC. Em que contexto decidiu por um personagem pautado pela “lógica da matemática” e por uma história que, mesmo na perspectiva ficcional, parece tão conectada com a realidade atual do Brasil?
CT. A criação de um personagem é um mistério; é a montagem intuitiva de uma criatura de Frankenstein, em que vários elementos distintos vão criando um novo e único ser. O acaso tem um papel importante. Eu quis sair do meu mundo de referência imediata (meus últimos romances tinham um professor de linguística e uma tradutora como personagens centrais), e tratar da economia, que exerce uma função primordial na vida das pessoas e dos países. Assim surgiu Otávio Espinhosa, um economista brilhante em crise pessoal, num momento especialmente turbulento da história do Brasil.

VC. De onde vem a sua familiaridade com o mundo corporativo (que soa tão sagaz nas percepções de Otávio), com a economia e a matemática (e sua compulsão “a retificar o mundo”)?
CT. Como leitor e escritor, tudo me interessa, e é impossível entender o mundo sem algumas noções mínimas de economia. Estou sempre lendo a respeito. Sobre a matemática, senti a atração pelo que conheço mal (nunca fui bom nessa área); como compensação, criei um personagem com um domínio extraordinário sobre a matemática. A matemática tem o fascínio da abstração; parece um mundo submetido ao império irretocável da lógica e da razão. O seu contraste com as imperfeições da vida real é um bom tema literário.

VC. Por que, pelo menos na ficção, a “simples” hipótese de abdicar do sexo parece ao mesmo tempo tão libertadora e tão assustadora?
CT. É uma ideia que ocorre ao meu personagem – aliás, dando início ao romance – quase como uma solução “matemática” para o desespero pessoal que ele vivia com o naufrágio do casamento. A libertação viria da ideia de “apagar” o sexo como valor da vida pessoal, no sonho de uma “razão pura”; e o assustador é justamente a “razão pura”.

VC. Poderia falar sobre a ideia de “o estado de horror ao sexo do feroz puritanismo (vagamente feminista) contemporâneo”, conforme citou em um artigo para a Folha recentemente? Como lidar com essa constatação?
CT. Antes de mais nada, é preciso lembrar que o movimento feminista é uma extraordinária conquista do mundo moderno, que surgiu e cresceu à medida que todas as estruturas sociais e econômicas decorrentes do advento do capitalismo, da revolução industrial e da urbanização transformaram radicalmente a cultura do Ocidente. A luta pela igualdade dos gêneros é uma conquista civilizatória definitiva. Jamais devemos perdê-la de vista. Entretanto, as infinitas nuances culturais que formam a nossa vida pessoal e afetiva não podem ser apagadas por decreto, porque isso equivale a apagar as pessoas. A bandeira feminista acaba muitas vezes por se tornar um álibi de um fanatismo puritano, muitas vezes perigosamente histérico e insensível, desprovido de humor e de ironia. E, sem humor e ironia, robotizamo-nos todos. A decadência da ironia, o potencial ambivalente de todos os signos da vida, é um evento trágico; para quem escreve, significa o fim da literatura.

VC. Que avaliação faz de seu primeiro ano como colunista do jornal e como decide pelos temas que vai publicar na coluna?
CT. É uma ótima experiência. Para quem não teve formação de juventude em redação de jornal (só comecei a escrever regularmente em jornal depois dos 50 anos), uma coluna é um gênero especialmente difícil, em que você tem de descobrir a própria linguagem. O diferencial é a presença quase instantânea do leitor; no jornal, o leitor é uma presença quase opressiva, por assim dizer. É um processo completamente diferente da produção literária. A escolha dos temas é o acaso, o livro que acabei de ler, a notícia da semana e até – o que é clássico – a falta de assunto.

VC. Tal qual sugere o protagonista no novo romance, você acha que a sociedade atual está imersa na vulgaridade? Por quê?
CT. Para um racionalista obsessivo, vivendo num estado de permanente abstração, como o meu personagem, há sempre um toque de vulgaridade no mundo real. A percepção da vulgaridade – um conceito, afinal, de raiz aristocrática – é uma das consequências da internet, das fusões culturais contemporâneas e da luta permanente por se manter sistemas hierárquicos de valor cultural, eixos de referência, o que é uma compulsão absolutamente universal.

VC. Você acredita em “crise de meia-idade”?
CT. Eu não senti a tal crise de meia idade, de que falam tanto, talvez por viver o tempo todo um pouco debaixo de uma certa “imersão racionalizante”. Vivi muitas crises de juventude – essas sim, foram pesadas e traumáticas. Com o tempo, as coisas foram melhorando. A literatura (a leitura, a escrita) sempre foi um fator existencial estabilizante para mim. Ultimamente, me sinto bastante tranquilo e feliz.

VC. Como foi a experiência de publicar poesia com Eu, prosador, me confesso? Tem outros projetos assim, em versos ou formatos, digamos, menos “industriais”?
CT. Sempre me senti um poeta frustrado. Como todo adolescente, comecei escrevendo poesia, mas logo a prosa tomou conta da minha linguagem. Nos últimos anos, senti vontade de escrever poemas. Bem, foram surtos de inspiração; para mim, é um processo completamente diferente da prosa. A poesia é a mais difícil das artes, justamente por ser algo que todas as pessoas, em algum momento, se sentem capazes de escrever. A convite do Bruno Zeni, da Tipografia Quelônio, aceitei publicar uma pequena coletânea de poemas em edição artesanal (apenas 300 exemplares, impressos em linotipo). Foi uma belíssima experiência, que teve uma recepção generosa. Sim, não descarto a ideia de um outro livro de poemas, daqui a alguns anos, também em edição limitada. Como poeta, só me sinto seguro quase como se estivesse numa conversa entre amigos.

VC. Como foi voltar a Trapo para edição dos 30 anos do livro e qual a sua relação com um título tão marcante para a sua carreira?
CT. Trapo foi um romance importante para mim; quando foi finalmente lançado, em 1988,  depois de anos de recusa das editoras, naqueles difíceis tempos pré-internet, representou a passagem do escritor apenas local para um nome nacional. Ao mesmo tempo, foi um sucesso recorrente, que passou por três editoras e sempre foi reeditado ao longo dos últimos 30 anos. É um livro que tem uma espécie de “fã clube” – frequentemente recebo e-mails de leitores dizendo que começaram a me ler a partir do Trapo. Em agosto sai a edição crítica, comemorativa dos 30 anos, pela editora Record, com um prefácio da Beth Brait, analisando o romance em relação ao conjunto da minha obra, e um posfácio meu, contando a “história da história” do romance. Estou feliz com este relançamento.

VC. Por falar nisso, que avaliação faz da sua trajetória como escritor e qual é o sentido do texto, da criação literária, no mundo atual – ou no Brasil de 2018?
CT. Não sei como avaliar com frieza minha trajetória como escritor; é preciso um olhar mais distante. Mas arrisco avaliar algumas questões literárias, entendidas no trajeto da minha vida, por assim dizer. Em junho a editora Dublinense lança Literatura à margem, uma coletânea de sete conferências que fiz em eventos nos últimos dez anos, e que foram de certa forma tentativas de compreender o processo da criação literária e o seu sentido no mundo de hoje. A literatura está se tornando quase um “nicho de mercado”, uma atividade “à margem”, mas ela continua imprescindível como modo único de reconhecimento das pessoas e do mundo. Sobre o Brasil… bem, sem escrita e leitura consistentes, estaremos ainda mais perdidos do que já estamos.

VC. Aliás, em ano eleitoral e com tantos problemas sociais-políticos-econômicos, qual a sua percepção do país atualmente?
CT. O Brasil vem passando por uma enorme e traumática turbulência política, que nasceu na recessão do governo Dilma, encontrou focos de erupção nas jornadas de junho, desembocou no impeachment da presidente, e continua no interminável rastro de corrupção do atual governo e de praticamente todos os grandes partidos. Além disso, os desdobramentos da Lava Jato parecem não ter fim, levando até à prisão de um ex-presidente. Apesar de tudo, já fui mais pessimista; o fato de não ter acontecido até agora nenhuma ruptura institucional, o que seria uma tragédia, mostra que o país tem uma complexidade estrutural que escapa às visões messiânicas ou apocalípticas. Com paciência democrática, as eleições próximas devem clarear o terreno e levar a uma estabilidade política. Faz tempo que não acredito em milagres, só no possível. É minha esperança.