Sobre ser livre

*Entrevista publicado na revista Vila Cultural 179 (Março/2019)

“Lobato abre o livro dizendo que Narizinho é uma menina de sete anos morena da cor do jambo. Que cor é jambo? É uma cor escura. E se Narizinho é negra, ele era racista? Por que ele pôs cor do jambo?”, pergunta Pedro Bandeira, que recria, em seu próximo livro, o universo de Lobato em A menina do narizinho arrebitado.

O vigor, a vitalidade e a inteligência do escritor Pedro Bandeira, que faz 77 anos no dia 9 de março, acolhem e contagiam. É impossível ficar indiferente quando, como um pesquisador da educação, ele argumenta sobre motivos que, historicamente, fazem do Brasil uma nação tão displicente – ou perversa, dependendo do ponto de vista – na formação de cidadãos que tenham minimamente o domínio do idioma, do raciocínio, da alfabetização. “Quando decidi que queria falar com crianças e jovens, eu fui estudar Educação. E aprendi, como sociólogo, político, antropólogo e como educador, que o problema do meu País, o meu problema como patriota, é que o Brasil tem uma história da Educação muito ruim. Enquanto alguns países como o Japão, na metade do século 19, fazem uma revolução educacional a ponto de não ter, já no início do século 20, nenhum analfabeto, nós sempre estivemos atrasados”.

A fala cativante e didática sobe um tom e vira indignação quando Bandeira se refere a uma entrevista recém-publicada do atual ministro da Educação, que acusa os cidadãos brasileiros de portarem-se como “canibais”, mas não faz qualquer referência a projetos, ideias ou ações concretas no sentido de reverter os índices cada vez mais alarmantes sobre a qualidade da educação no Brasil. O escritor sai em defesa dos professores, nossos verdadeiros heróis, segundo diz, e mantém seu compromisso com o desejo de estimular o gosto pela leitura, pelo questionamento, pela desobediência, no melhor sentido.

O autor de A droga da obediência, leitura que marcou gerações, se empolga para falar da recriação recente que fez sobre a obra de Monteiro Lobato. Bandeira é tão fã que se autodenomina um “lobatista”. No livro, que terá as ilustrações de Renato Alarcão, Narizinho é, como nos originais de Lobato, uma menina cuja pele é cor de jambo. Não é um mero detalhe num momento em que há acaloradas discussões e controvérsias em torno do conteúdo associado ao racismo na obra de Lobato. Com lucidez de poucos, Bandeira joga luz nessa discussão e, passional, se permite, com legitimidade, usar toda sua verve criativa na releitura de Lobato. “Eu li aquelas falas da Emília para a Tia Anastácia quando criança e aquilo não me fez ser uma pessoa racista. Ao contrário, o racismo me revolta. E fui criado em outros tempos, inclusive por ele, Monteiro Lobato”, diz. Convidado do Navegar é Preciso, o escritor concedeu a seguinte entrevista à Vila Cultural:

Vila Cultural. Qual a expectativa com o Navegar é Preciso?
Pedro Bandeira. Todos dizem que essa viagem à Amazônia é imperdível. Já fiz dois cruzeiros em rios, ambos fora do Brasil, um na Ucrânia e outro que achei o mais bonito, na Rússia, entre São Petersburgo e Moscou. E nós temos essas atrações aqui! Seria muito bacana se pudéssemos trazer mais e mais gringos para fazer esse programa. Imagino que para eles deve ser maluco andar naquele enorme rio, ver o encontro das águas, observar crianças segurando jacarezinhos, brincando com bichos-preguiça, entre outros animais silvestres. Quando estive numa feira de livros na Amazônia, essas experiências foram marcantes. Comer um pirarucu, com aqueles temperos típicos, é uma experiência que não se pode ter em nenhum outro lugar do mundo.

VC. Gosta de socializar em um contexto assim, uma viagem?
PB. A profissão de escritor é extremamente solitária. Quando você escreve está sozinho. Quando alguém lê, também está sozinho. Por isso gosto tanto do convívio, de conversar, de trocar experiências.

VC. Podemos falar de Monteiro Lobato?
PB. Eu sou um “lobatista” desde que nasci. Quando meu pai morreu, eu ainda estava na barriga da minha mãe, então eu nunca o vi. Fui criado por ela, uma mulher maravilhosa, adorável, doce. E quando me perguntam sobre uma figura masculina na minha vida cito Monteiro Lobato. A imagem masculina era a dele. Havia também Robert Stevenson, Mark Twain, tantos autores. Mas Lobato foi muito marcante. Trabalhei como jornalista e comecei a escrever livros infantojuvenis tardiamente. “Se é para escrever sobre crianças, para crianças, vou imitar Monteiro Lobato”, eu me dizia. No meu primeiro livro, era como se eu tentasse usar a técnica dele. Claro que ninguém pode escrever pelo outro e você acaba criando a sua própria técnica, mas ele sempre foi uma influência.

VC. É o momento de redescobrir Lobato?
PB. Ele levou setenta anos para entrar em domínio público e eu discordo disso porque acho que é muito tempo. Se ele tivesse entrado em domínio público antes, teria sido importante. Não só pelo fato de qualquer editora poder publicar Monteiro Lobato sem pagar para a família, mas pelo fato de ele pertencer a seus leitores a ponto de você reinventá-lo a partir da própria obra dele. Eu mesmo já adaptei Andersen, irmãos Grimm, já reescrevi porque eles passaram a ser do mundo.

VC. Como ler Lobato agora?
PB. Monteiro Lobato sempre foi um autor que me ensinou a liberdade do pensamento. No Sítio do Picapau Amarelo, por exemplo, ninguém engole coisas. As pessoas, os personagens pensam sobre as coisas. E o pensamento, a alma enfezada dele, Monteiro, é a boneca Emília. Até porque uma boneca não tem as travas de um ser humano. Ela fala o que pensa. Na minha opinião ela é um produto de Narizinho, uma menina de sete anos que interage com seus brinquedos, a exemplo do que toda menina de sete anos faz. Ela conversa com suas bonecas e as suas bonecas respondem sim. É um momento solitário, em que a imagem e a criatividade são estupendas. Em Reinações de Narizinho, ela cria a Emília, ela faz a boneca falar. É o pensamento livre de Narizinho e o pensamento de Lobato. Ela quer saber das coisas e sempre me ensinou isso.

VC. Esse é um valor, uma característica da sua obra.
PB. Os meus livros só falam sobre isso, sobre liberdade e democracia. O meu livro mais vendido até hoje, depois de 36 anos de ter sido lançado, chama-se a A droga da obediência. O personagem fala exatamente que obediência é uma droga. Obedecer cegamente é muito ruim. Você precisa escolher quando você diz sim e quando você diz não. E só o conhecimento pode te dar esse poder. O poder da escolha. A obediência cega só pode levar à repetição de velhos erros. É a desobediência que muda o mundo. Quando você cria uma coisa nova, você está desobedecendo o velho. Para o homem voar, alguém desobedeceu. E o homem voou. Para chegar à lua, alguém teve que desobedecer.

VC. O que pensa sobre as acusações de racismo a Lobato?
PB. Lobato é o maior escritor brasileiro para crianças. Sem dúvida nenhuma, ele é o inventor da literatura infantojuvenil brasileira. E tem especificidades incríveis, que é lutar pela liberdade, pelo novo, pela criatividade. Teve defeitos? Claro. Quem não tem? Mas é importante entender e lembrar que da primeira metade do século 20 até aqui o mundo mudou muito. Coisas que a gente vê, entende hoje como absurdas, na época não eram absurdas. Se você dissesse, por exemplo, na primeira metade do século 20, que não havia raças seria chamado de maluco. Como não há? Todo mundo sabe que há. Hoje isso parece estranho. Por isso não podemos pegar a ferro e fogo. Claro que ele trabalhava em prol da eugenia, que, na época, era uma ciência ensinada nas faculdades. Os livros didáticos em que estudei, nas décadas de 1940 e 1950, mostravam as pessoas de um modo diferente: o branco, o negro e o índio. As raças eram ensinadas e ninguém achava isso absurdo. Na segunda série, a professora dizia que branco e preto davam mulato. O branco com o índio dava caboclo. O negro com o índio dava o cafuzo. E ela, a professora, ensinava com uma expressão de repulsa. Isso, acredite, era normal. Significa que hoje jogamos pedra no Lobato porque ele era normal. Só não há ódio na obra dele. Quando a Emília briga com a Tia Anastácia e a ofende, sob os olhos de hoje, era para provocar o humor, para ser engraçado. Há alguns anos, um artista do qual eu sou extremamente fã, o Renato Aragão, o comediante fantástico, fazia piada com a cor da pele do Mussum. E todo mundo morria de rir. Faz pouco tempo, e hoje obviamente ele não poderia fazer isso porque as coisas mudam. Mas você não pode obviamente xingar o Renato Aragão porque ele é um dos grandes brasileiros do humor, um gênio, assim como Mussum também era.

VC. É uma questão de memória e mudança?
PB. Em 1917, quando Lobato escreve Urupês e a velha praga, ele diz, nesta crônica, que o caboclo é o culpado pela terra brasileira não estar indo bem, porque ele é preguiçoso, vagabundo, miserável, um cogumelo que nasce com tronco podre. Ele é o urupê. E todo mundo achou maravilhoso quando a crônica foi publicada em O Estado de S. Paulo. Só que ele foi mudando. Poucos anos depois, Lobato descobriu que aqueles caboclos indolentes estavam infestados de muitas pragas, de muitas doenças, por isso eles não tinham forças. Então, ele alerta que era preciso cuidar da saúde pública para que aquilo fosse resolvido. Algum tempo depois, ele descobre que a situação do trabalhador do campo brasileiro é devida ao latifúndio, à exploração. E cria o personagem Zé Brasil. Antes, tínhamos o Zeca Tatu. Então, Monteiro Lobato mudava de opinião e nós, da nossa parte, não podemos, por causa dessas características da época, ir contra ele.

VC. Como recria Lobato no seu livro que está para sair?
PB. Ele tem outra característica que é uma grande novidade, apesar de não dever ser tão novo assim. Em 1920, a publicação de A menina do narizinho arrebitado dá uma lavada de vendagem. Lobato abre o livro dizendo que Narizinho é uma menina de sete anos morena da cor do jambo. Que cor é jambo? É uma cor escura. E se Narizinho é negra, ele era racista? Por que ele pôs cor do jambo? Ao longo das reedições, ele foi mantendo isso até a última edição, de 1947, antes de sua morte, em 1948. Se ela morava com a avó, Dona Benta, e com a empregada, a Tia Anastácia, então eu penso e me pergunto: será que ela não morava com duas avós, a vó Benta e a vó Anastácia? Por que não um dia o filho da Tia Anastácia se apaixona pela filha da Dona Benta e desse amor nasce Narizinho? Ele nunca falou de quem Narizinho é filha. Ela mora num sítio, isolada, provavelmente não vai na escola. Tudo que aprendeu é com a avó. E nunca ninguém disse quem é o pai e quem é a mãe de Narizinho. Sabe-se que ela é neta de Dona Benta e vem um primo dela, de São Paulo, Pedrinho, que é filho de uma filha da Dona Benta chamada Tonica, para brincar no sítio. Por que não se falar? Será que ele jogou uma pista, uma bola? Mas se jogou ou não jogou, o que eu sei é que essa bola está comigo. Eu tenho direito de brincar com essa bola usando todo o amor que eu tenho pela obra de Monteiro Lobato.

VC. Podemos falar de política e educação?
PB. Já faz alguns anos, depois da ditadura militar, que eu vivi como jornalista e ator, precisando lidar com coisas horríveis, e nós ainda não fizemos uma boa redemocratização. Mas estamos tentando. Já tentamos inclusive fazer o início de uma revolução educacional, mas não aconteceu, apesar de termos criado vagas para todo mundo nas escolas. Quando eu estudei, no Brasil só havia vagas para 30% das crianças. No começo do século 20, 90% da população era analfabeta. Em meados do século 20, 60% da população era analfabeta total, fora o analfabetismo funcional. Mas ainda temos um enorme número de pessoas analfabetas ou não ligadas à cultura, à leitura, além dos analfabetos funcionais. Nós estamos no fundo do poço porque meninos e meninas no primeiro ano do ensino médio não são capazes de compreender um texto curto. E não são capazes de fazer uma regra de três. Por isso seria tão importante que um ministro da Educação estivesse pensando nisso, mas ele não está pensando nisso. Dizer ao professor o que ele pode ou não ensinar… A liberdade em casa é a primeira liberdade pela qual eu luto. Antes da liberdade da minha palavra, o meu professor tem que ser livre porque ele vai criar a liberdade da próxima geração, e esse senhor que dizer que nós devemos censurar o professor. Censurar a educação no seu nascedouro. E aí você observa um ministro da Educação que, ao invés de falar que é preciso ter vergonha de o país estar com os piores índices educacionais nas pesquisas, no mundo, lá no fundo do buraco, ele vem a público dizer que é preciso fazer censura nas escolas. Ele não falou em nenhum momento em fazer uma revolução educacional no Brasil porque ele não tem ideia do que seja isso. Ele não toca nesse assunto. Que esperança eu posso ter?

VC. E tem alguma, afinal?
PB. Encontro esperança justamente no colo dessas professoras porque eu corro o Brasil inteiro há pelo menos 40 anos falando com elas, que são mal pagas, mal amparadas. A professora luta. Ela é uma heroína. Nas casas, você não tem isso. A nossa sociedade é uma sociedade do ter – e não do ser. O pai é capaz de fazer sacrifício para comprar um tênis de grife, uma roupa de grife para os seus filhos, mas chia quando a professora pede para comprar um livro. O pai acha mais importante investir no pé do que na cabeça do filho. Então o que nos resta: essa professora mal paga e desprezada pela sociedade. Se você perguntar para uma pessoa o que ela deseja profissionalmente e ela disser que quer ser professora, professor, a resposta vai ser: “Nossa coitada, coitado”! Dizer isso ao pai ou mãe é ser desestimulado: “Você ficou louco? Vai estudar informática!”, o pai fala. Por isso, a minha esperança é esse povo brasileiro. Mas um povo brasileiro informado, com a liderança do pensamento, que é o professor. O Brasil pode até dar uma pequena recuada, mas o professor não vai permitir isso. Ninguém vai botar o dedo no nariz dele. Você sabe o que é ser professor neste país?

VC. Apesar de tudo, permanece otimista?
PB. Eu sou um realista. Mas o Brasil não vai afundar. Vai ser ruim, mas nós somos fortes. E eu sei que nós vamos sair dessa.