Que delícia!
Com audiência insuspeita graças à maneira divertida e precisa com que compartilha habilidades de chef pâtisserie e videomaker, Raiza Costa esbanja intensidade e cores em Confeitaria escalafobética, seu primeiro livro
*Entrevista publicada na revista Vila Cultural 164 (dezembro/2017).
Fotos Divulgação
Intensidade é palavra-chave no vocabulário, na rotina, no trabalho e no jeito de ser e de viver da videomaker e chef pâtisserie Raiza Costa, que autografou dia 4 de dezembro, na Livraria da Vila do Pátio Batel, em Curitiba, Confeitaria escalafobética – Sobremesas explicadas tim-tim por tim-tim (Senac), seu primeiro livro. Com quase 400 páginas, o título traz em cada uma delas a paixão de Raiza por ofícios e prazeres que se completam: comida e arte. Combinados, neste caso, com outros ingredientes igualmente potentes que fazem a autora e suas criações sempre parecerem irresistíveis: doces deliciosos, overdoses de criatividade, técnicas fabulosas de confeitaria, carisma puro, autoironia finíssima, shows de animação visual, autoconfiança a toda prova, cores-muitas-cores e um sorrisão dos mais generosos.
Com a graça que se apropria de todos os clichês da empatia-simpatia sem jamais deixar de ser espontânea ou parecer fake, Raiza tem uma trajetória peculiar. Formada em artes visuais e naturalmente habilidosa na cozinha, foi viver em Nova York, onde estudou no The French Culinary Institute. Em 2012, linda e faceira, surgiu toda animada na versão americana do reality show MasterChef. Em uma aparição de pouco mais de três minutos, teve o tempo suficiente para encher a tela com sua presença e, melhor ainda, ganhar, com a sobremesa que apresentou, um elogio superlativo do chef Gordon Ramsay, sabidamente o mais rigoroso da atração. Ainda que tenha sido eliminada do programa no episódio seguinte, Raiza se transformou, na imprensa do Brasil, na brasileira que encantou Ramsay.
Mas como encantamento pouco é bobagem, ela guardou o episódio como uma ótima lembrança e tocou sua vida na web com o canal Dulce Delight, criado por Raiza há oito anos para compartilhar suas técnicas de confeitaria, seu talento para edição e, mais cativante ainda, suas loucurinhas visuais e gastronômicas. Tudo direto do apartamento onde vive no Brooklyn, Nova York, e sempre com uma pegada “mais-contemporânea-impossível”: da valorização dos produtos e produtores a pitadinhas sutis de politicamente incorreto para lembrar que apesar de ela ser uma perfeccionista, ninguém, afinal, é perfeito. Fez um tremendo sucesso. E foi pura honra ao mérito, diga-se, com milhões de admiradores no Brasil e no mundo. Não demorou muito para Raiza chegar à TV, onde comanda, no canal por assinatura GNT, o programa Rainha da Cocada, cuja quarta temporada está garantida para 2018.
“Com um pé no vintage e outro na inovação, sempre com seu cãozinho Lancelote por perto, Raiza mistura tecnologia e funcionalidade com elementos decorativos que muitas vezes lembram a casa aconchegante de uma avó querida, mas sem perder a sua espontaneidade nem os códigos contemporâneos”, diz, com precisão, o material de divulgação do livro. Assim, fazer programas ou receitas inspiradas, por exemplo, no movimento e na trilha sonora tropicalista, cercada de discos de vinil por todos os lados, é tarefa básica e deliciosa para Raiza e toda sua a audiência. Leia a entrevista que ela concedeu à Vila Cultural dias antes de desembarcar no Brasil para o lançamento do livro.
Vila Cultural. Como surgiu a possibilidade de fazer o livro?
Raiza Costa. Recebi um e-mail do Senac expressando a vontade de publicar um livro meu. Na época, estava muito atarefada com o Rainha da Cocada, mas a editora foi muito paciente. O primordial pra mim era ter liberdade criativa e estética na finalização do livro. Consegui essas duas coisas e nunca tive qualquer ideia barrada. Por isso sinto que tenho a obrigação de fazer desse livro um sucesso para a editora também, porque confiaram muito em mim. Acabo de descobrir que estamos na lista do PublishNews como um dos mais vendidos, e ainda estamos apenas na pré-venda. Estou muito ansiosa para ver a carinha de cada pessoa que escolheu ter um pedacinho de mim na casa dela. Essa relação próxima com o público é crucial pra mim. É o meu combustível. Gosto de gente e as pessoas gostam de mim.
VC. Por que sua confeitaria é escalafobética?
RC. Essa expressão popular nos anos 1990 nunca saiu do meu vocabulário e, além de me definir, define bem meu trabalho como um todo: exagerado. Meus programas na TV, no YouTube e o livro são todos profundos e complexos, ricos de informações, de cores, de filosofias de vida. Isso inunda, transborda. Por isso é escalafobético. Minha confeitaria é viva e colorida, sempre prezando pelos ingredientes caseiros, pela diversidade de sabores e técnicas e evitando a monotonia do leite condensado e Nutella. Existe mais nesse universo da confeitaria que esses dois ingredientes industrializados, e eu, com a minha “escalafobetice”, vou mostrando isso pra todo mundo nessas quase 400 páginas de livro.
VC. Como descobriu que poderia conciliar, de maneira tão saborosa, suas habilidades de chef de confeitaria e videomaker?
RC. O meu plano era me manter fiel a mim mesma e às minhas predileções e, com isso, fui naturalmente incluindo esses interesses nos meus programas, que começaram no YouTube. Já nos primeiros episódios ficava claro o meu conforto quando estava na cozinha, o meu amor por animação de stop motion (feita com fotos), a minha paixão pela edição (que modéstia à parte é o que eu acho que faço de melhor), pela música que sempre foi tão crucial nos episódios e pela direção de arte em que eu cuidadosamente fazia a “curadoria” dos paninhos com estampas florais e flores do campo. A coisa foi crescendo e se profissionalizando, mas sempre fiel às minhas raízes. Até hoje minha assistente me manda foto da floricultura pra eu escolher a dedo a flor que quero nos episódios.
VC. De onde vêm suas referências visuais e como define seu estilo – de viver, de cozinhar, de ser ou tudo-junto-misturado?
RC. Adoraria citar uma personalidade conhecida que tivesse me inspirado a fazer isso, mas na verdade vem tudo bem de dentro de mim, bem do fundinho da minha alma. Tenho programa de TV, mas não tenho TV em casa. Tenho programa na internet, mas não sou inscrita em nenhum canal do YouTube. Tenho uma relação muito saudável comigo mesma e aprendi a compreender e aceitar quem eu sou. Assim, as minhas inspirações foram vindo de vivências, aprendizados e experiências e não de uma estética específica criada por alguém. Acho que é por isso que tenho um trabalho tão singular. Não dá pra comparar com nada. É muito diferente de tudo que se vê. Sou eu com as minhas loucuras criando ideias no papel e clientes maravilhosos que patrocinam essas ideias. Tudo começa com um caderno de folha reciclável e uma boa lapiseira de metal com grafite 0.5. Tudo analógico, claro.
VC. Além do prazer de descobrir tanta coisa, não é eventualmente “exaustivo” ser tão curiosa?
RC. Não. É uma delícia. Isso vem da minha vontade de estar em contínuo aprendizado e de melhorar como ser humano. Acho que nada é mais importante para a velhice que o conhecimento. Tem beleza mais linda que essa? Uma pessoa velha, sensata e sábia? Passaria dias só observando essas pessoas. Dia desses, filmando com a Bela Gil em um mercadinho do Brooklyn, uma velhinha que aparentava uns 90 anos precisava acessar uma parte da geladeira que estava sendo bloqueada pelos equipamentos da filmagem. Ela pediu ajuda a uma pessoa do meu time, mas antes disso uma outra foi tentar ajudar e ela disse: “não quero sua ajuda, seu macaquinho”. Aquilo me chocou em um nível tão profundo que imediatamente eu perguntei a ela se todos esses anos vividos não haviam servido pra nada. Imagine que horror não aprender nada com a vida. Deus me livre!
VC. Como lida com as “patrulhas” que colocam o açúcar como vilão da dieta e da saúde?
RC. Minha sensatez me permite entender diferentes pontos de vista. Entendo nutricionistas falarem tão mal do açúcar. Ele de fato é pobre nutricionalmente. O problema é quando você enxerga a alimentação apenas como medicamento e esquece toda a carga cultural que a gastronomia carrega como a história do nosso país, baseada nos engenhos de cana-de-açúcar e nos doces portugueses, por exemplo. O problema do açúcar não mora em sobremesas caseiras que fazemos uma vez por semana para comer com familiares. Ele mora no uso ininterrupto da indústria alimentícia para tornar seus produtos mais atrativos, colocando níveis absurdos de açúcar em molhos de tomate, sopa, maionese, batata chips, entre outros. O mundo consome açúcar demais, mas não porque todo mundo está fazendo croissant de chocolate em casa não. É porque todo mundo está comendo demais porcaria industrializada. Sendo assim, minha resposta é: açúcar com moderação faz parte de uma cultura gastronômica feliz.
VC. Quais são as suas referências profissionais?
RC. Gosto muito de arte e artistas performáticas como Sophie Calle e Marina Abramovic, que sempre tiveram um impacto na maneira como enxergo o mundo. Acho que o artista em si está aqui para mostrar que há uma maneira diferente de viver a vida e isso me inspira demais.
VC. Como é viver em Nova York?
RC. Nova York faz o que poucas metrópoles são capazes de fazer: você sentir que as ruas te pertencem. Por conta da quantidade de eventos culturais, pistas de bicicleta, bares e restaurantes, você sente que a cidade te pertence e que a Broadway é o seu jardim. O senso de comunidade em NY e em especial no Brooklyn é muito latente. Isso me inspira e faz com que eu não queira sair daqui. Todo mundo que vem pra cá adora a cidade mas não entende que ela só é assim pela política liberal que é aplicada nela. Gostam daqui, mas quando alguém fala em diminuir os carros em uma cidade como São Paulo só falta subirem pelas paredes. Querem o resultado mas não querem aceitar as implicações. Eu diria que Nova York é uma cidade a ser observada como um bom modelo de cidade-caos, que não é perfeita, nem muito limpa, nem muito organizada como seria uma cidade escandinava, por exemplo, mas é um sistema que tem vida, pulsa e funciona muito bem pra todo mundo, e por isso é um modelo que admiro.
VC. A que atribui o seu sucesso e o carinho/empatia que a simples menção do seu nome desperta entre seus fãs?
RC. Não vou levar crédito da minha personalidade espontânea porque isso eu herdei da minha mãe, ou seja, ganhei de presente genético. Acho que essa sinceridade com que vivo a vida e demonstro no meu trabalho faz com que as pessoas gostem de mim. Mesmo que elas discordem do que eu penso, elas sabem que aquilo é verdadeiro. Hoje em dia é tudo muito plastificado nas mídias e uma pitada de autodestruição é sempre bem-vinda. Exemplo: aceitar os erros, mostrar fracassos, cara lavada, casa desarrumada, louça na pia, pudim que quebrou.
VC. Como lida com as redes sociais?
RC. Tenho uma relação muito saudável com essas mídias. O meu termômetro é o quanto aquela exposição está me fazendo deixar de viver aquele momento com os meus familiares, o quanto o que eu vou falar vai ser útil pra alguém e quanto tempo eu estou passando no celular. Pra mim, sentar em uma mesa de restaurante e encostar em um celular é um ato extremamente rude. Estar com alguém na sua frente e seus olhos estarem voltados pra uma telinha é sinal que tem coisa errada aí. Outro filtro que tenho é de compartilhar apenas ideias ou momentos que possam ser inspiradores para os meus seguidores, fazendo eles pensarem, mesmo que seja sobre algo banal. Tenho pavor de poluidores digitais que colocam conteúdo o dia todo sobre todos os assuntos para tentar arrecadar o máximo de público possível. Acho que é por isso que meu público é tão engajado. Só fica quem realmente se identifica.
VC. Como define/explica seu amor pelos livros?
RC. Existem coisas que são insubstituíveis, e se você for um pouquinho mais questionador vai identificar essas coisas bem cedo. Não vai precisar ir na onda do que está na moda ou fora de moda. Quando comecei a fazer o meu programa, ele foi o primeiro canal dedicado à confeitaria do YouTube. Há oito anos, cozinhar em um programa ainda estava muito atrelado a dona de casa e a vovó. Eu fui lá e fiz tudo moderninho, mesmo tendo uma temática tão estigmatizada, por exemplo. Via nisso uma coisa importante, que era o ato de cozinhar, e assim segui em frente sem questionar muito as mensagens que aquilo poderia estar criando. O mesmo acontece com os meus discos de vinil, que guardo desde a infância. Moda nenhuma, nem CD nem K7, foi capaz de me convencer que eu deveria jogar fora um baita discão com uma capa enorme, uma fotografia linda e assim passei por todos esses modismos seguindo em frente com meus vinilzinhos. Hoje eles estão em alta outra vez e minha coleção vem desde a década de 1980. Os livros são a nossa maior riqueza. São páginas que ocupam pouco espaço mas que transbordam conhecimento. Tenho biblioteca em casa, meu pai tem biblioteca na casa dele e não importa quantas mídias digitais tentem me convencer do contrário, meus livros morrerão comigo.
VC. Há quem diga que o sucesso e a variedade de programas de culinária também têm a ver com certa preguiça (dos telespectadores) de botar a mão na massa e preparar o que comer. O que pensa sobre isso?
RC. Um estudo americano mostrou que mais de 80% das pessoas que assistem programas de TV não cozinham em casa. Programas de culinária deixaram de ser um guia prático e se tornaram entretenimento. Tendo isso em mente, decidi fazer um programa que realmente explicasse as técnicas de cozinha e com isso inspirasse as pessoas a se jogarem. Uma das táticas foi manter alguns erros de gravação, ovos que sem querer eu deixo a casca cair no merengue, massas que eu derrubo. Essa luta contra a perfeição faz com que o telespectador se identifique, se veja ali e entenda que para cozinhar não precisa ser perfeito ou fazer tudo perfeito. As pessoas fazem demais as minhas receitas, inclusive as mais difíceis, e acho que o que estimula isso é a casualidade com que trato o ato de cozinhar.