Viver com likes

“Em vez de continuar resistindo, preferi entrar no jogo”, diz Martha Medeiros sobre suas novas incursões digitais

*Entrevista publicada na revista Vila Cultural 178 (fevereiro/2019).

Martha Medeiros participa do Navegar é Preciso 2019, a viagem ecoliterária promovida pela Livraria da Vila e a Auroraeco que acontece entre os dias 29 de abril e 3 de maio/Foto Carin Mandelli/Divulgação

Tão logo retornou das férias, em meados de janeiro, a escritora gaúcha Martha Medeiros dirigiu-se à sua audiência – de quase 150 mil pessoas – para compartilhar, no ambiente digital, a última crônica que havia publicado na imprensa em 2018, sob o título A um passo. “Que tenhamos um ano mais light, sem tanto bate-boca virtual, sem patrulha, sem grosserias generalizadas. Reatemos os laços. Que nossas irritações momentâneas não reduzam nosso plantel de afetos. (…) Que tratemos bem de nós mesmos, mas sem deixar que a vaidade fique maior do que a lucidez. Que usemos mais cores, que pratiquemos muitos esportes e exercícios, mas sem esquecer de privilegiar o conhecimento e de defender a arte livre quando ela estiver sendo ameaçada”, escreveu, projetando seu votos-desejos-expectativas para o novo ano, este de 2019 já em movimento.

No trâmite e na fluência entre os “canais” físicos, palpáveis – o livro, o jornal, a revista – e toda a intensidade da sociedade virtual, em rede, Martha só não abre mão da interlocução próxima, íntima ou intimista, do tête-à-tête que sempre estabeleceu com seus fiéis leitores. Tem sido assim desde o início da trajetória que fez dela uma das cronistas mais citadas, lidas e queridas no Brasil. Até pouco tempo atrás, Martha “resistia” à vida com “Face”, “Insta”, entre outras conexões online. Flexível que é, agora experimenta os novos hábitos digitais com evidente prazer criativo. No ano passado, lançou um canal no Youtube e já tem pronta a segunda temporada do M de Martha, que ela protagoniza com a naturalidade habitual, tratando de temas e situações aleatórios.

Também em 2018 publicou a coletânea Quem disse que viver ia dar nisso (L&PM), em que reúne uma centena de crônicas com seus “fragmentos cotidianos”, reflexões e pontos de vistas sobre viver no mundo contemporâneo. “Quando falo sobre a minha atividade como escritora, alguns me julgam modesta, mas de modesta eu não tenho nada. O que tenho é uma maneira muito própria de encarar o meu trabalho. É uma aventura, uma sorte, uma oportunidade, nada mais”, escreve Martha no texto Na real, publicado originalmente em 2015. Na crônica Nem todo mundo, a diversidade humana é o tema. “Nem todo mundo gosta de bicho, de doce, de praia, de ler, de criança, de festa, de esportes, e nem por isso merece ser expulso do planeta por inadequação crônica. Seus prazeres estão fora do catálogo da normalidade e ainda assim são criaturas especiais a seu modo, assim como algumas pessoas podem cumprir todas as obviedades consagradas e isso não adiantar nada na hora da convivência: são ruins no trato, fracas de humor e voltadas para o próprio umbigo, apesar de seu exemplar enquadramento social”, ela escreve, com suas ironias sutis.

Martha, que participa da edição 2019 do projeto Navegar é Preciso, a viagem ecoliterária promovida pela Livraria da Vila e a Auroraeco, é autora dos best-sellers Trem bala, Doidas e santas e Feliz por nada e do romance Divã, que também virou peça de teatro e filme, com a atriz Lilia Cabral no papel principal. Leia a entrevista da escritora.

Vila Cultural. Por que decidiu ter um canal no Youtube e que avaliação faz do resultado até aqui?
Martha Medeiros. Nunca havia pensado em ter um canal, até que um dia, durante uma conversa com o produtor Gustavo Nunes, surgiu esse papo. Ele estava interessado em diversificar as atividades da sua produtora Turbilhão de Ideias, eu interessada em diversificar minhas atividades como escritora, e aí fechamos: que tal nos aventurar juntos? Eu já tinha a ideia de escrever um livro chamado EME, onde abordaria vários assuntos que iniciam com essa letra. O livro será lançado daqui a algum tempo, mas, de certo modo, já está sendo formatado eletronicamente. O resultado, até aqui, é modesto, mas com muito potencial de crescimento. Sempre foi assim comigo, um degrau após o outro, sem ansiedade.

VC. Como define os temas que merecem episódios no M de Martha?
MM. Aleatoriamente. Vou anotando numa caderneta palavras que começam com M e escolho as que me despertam alguma reflexão. Depois vamos soltando um episódio a cada quarta-feira, sem compromisso com alguma data específica. Gravei os 13 episódios da primeira temporada num único fim de semana no meu apartamento, em Porto Alegre. E a segunda temporada, mesma coisa: foram 13 episódios gravados de sexta a domingo no hotel Yoo2, no Rio de Janeiro. A equipe é composta por Theo Tajes (videomaker responsável pela gravação e direção de fotografia), Gustavo Nunes (produtor) e Camila Tavares (suporte digital). Faço umas anotações antes de gravar, mas quando a câmera liga começo a falar de forma espontânea, às vezes seguindo o que havia pensado em dizer, às vezes me permitindo dispersar. Além disso, a equipe me faz perguntas-surpresas a respeito do assunto em meio à gravação, para provocar pensamentos livres de qualquer ensaio. Gravamos cerca de 20 minutos de conversa e o Theo edita até ficar com uma duração de 5 a 7 minutos. É assim.

VC. Como lida, aliás, com a sua própria imagem (em vídeo) e que cuidados toma ao viver essa dinâmica audiovisual (o que é dito/falado, afinal, reverbera diferente do que é escrito)?
MM. Se até as deusas não gostam de se ver no vídeo, imagine eu. Quem me dera ter uma baby face para exibir, mas tudo bem, não sou linda, jovem e descolada como grande parte das youtubers, então invisto na minha espontaneidade e em conteúdos que identificam meu trabalho. Quanto à diferença de reação sobre o que é dito e o que é escrito, difícil analisar com tão pouca vivência nessa área. Até agora colocamos no ar apenas a primeira temporada, não há como comparar com o feedback de mais de 25 anos de colunas no jornal. De qualquer forma, acho que a palavra impressa é sempre mais transformadora, mais respeitada, e sua documentação mais perene. Na internet, por mais que se possa rever um vídeo mil vezes, não sei se ele penetra da mesma forma na alma de quem assiste, mas sempre é bacana ver que o escritor é de carne e osso, vacila, faz graça, tem olheiras, diz palavrão, tem um gato que passa no meio da sala. Esse é o barato dos vídeos, a ausência de solenidade.

VC. Antes resistente à ideia de exposição nas redes sociais, você já tem dezenas de milhares de seguidores no Instagram. O que fez você mudar de ideia?
MM. Quando me dei conta de que eu tinha vários perfis fakes no Facebook, foi inevitável criar um oficial. Tecnologia não é o meu forte e não acreditava que conseguiria administrar minhas contas, mas uma amiga entendida no assunto se predispôs a me ajudar: ela veio aqui em casa e numa única tarde criamos a minha fanpage (facebook.com/marthamattosmedeiros) e meu perfil pessoal, que só libero para amigos e pessoas que realmente conheço (cerca de 500). Ano passado, conheci a influenciadora Patti Leivas numa viagem, ficamos amigas e ela, inconsolável com minha ausência no Insta, abriu uma conta pra mim no ato e me ensinou a postar. Eu mesma controlo todas as postagens das minhas redes, sou eu que escolho textos, fotos, legendas, faço tudo sozinha. São ferramentas de trabalho, mas é também uma egotrip, não me iludo: tem muita vaidade envolvida, todo mundo querendo parecer inteligente, divertido, bonito e contabilizando likes. É o retrato do nosso tempo. Em vez de continuar resistindo, preferi entrar no jogo. No mínimo, é um passatempo. Raramente exponho minhas relações íntimas nas redes públicas, e as pessoas que aparecem são marcadas à minha revelia, pois o Face reconhece alguns semblantes e marca por ele mesmo.

VC. O que tem aprendido com essas novas experiências digitais e o que elas agregam ao seu texto, a sua escrita?
MM. Aprendi que a qualidade das pessoas que seguimos faz toda a diferença. Redes sociais podem ser fonte de cultura, de humor, de reflexão, desde que não se abra totalmente a porteira desta terra de ninguém. Tem também o benefício de resgatar amizades antigas, iniciar namoros etc, mas este não é o meu foco. Me interesso pouco por fotos de formaturas e festinhas, me concentro mais em opiniões e compartilhamentos culturais de jornalistas, artistas e amigos que têm uma visão interessante sobre o que acontece no mundo.

VC. Poderia falar sobre Quem diria que viver ia dar nisso (porque ele ganhou uma nova capa – linda, aliás)?
MM. O título sempre foi considerado muito bom, porém, na primeira capa, ficou pequeno e passou meio despercebido, então o pessoal da L&PM sugeriu colocarmos outra capa no mercado com o título mais evidenciado, apenas isso. Sempre fico meio cabreira, com receio de que os leitores pensem que é um novo lançamento, mas não é, o conteúdo é o mesmo: uma seleção de 100 textos publicados nos jornais entre 2015 e 2018.

VC. Como tem observado/vivido a “crise” no mercado editorial e qual é, na sua opinião, a relevância, neste momento, do “ativismo” em torno do livro, das livrarias?
MM. Olha, acredito que incentivar a compra de livros é sempre emergencial num país que lê tão pouco, então estou achando ótimo esse movimento todo, essa valorização que o livro de repente conquistou. Com crise ou sem crise, o incentivo à leitura deveria ser permanente. Sempre que posso eu indico livros nas minhas colunas e cito a importância que ler teve na minha trajetória pessoal – não só profissional. Desse fuzuê todo, o que eu gostaria mesmo é que as livrarias de porte médio e pequeno se fortalecessem, que voltássemos a ter livrarias de calçada e que voltássemos a ser atendidos por pessoas que conhecem bem o produto que estão vendendo.

VC. Como estão os planos do lançamento do livro em inglês?
MM. Eu tenho livros lançados em francês, espanhol, italiano e isso nunca mudou nada na minha carreira, é apenas um charme do currículo. Quando surgiu a oportunidade de lançar em inglês, aí fiquei mais entusiasmada, pois o mercado para comercialização é muito maior, e também porque seria a primeira vez que eu teria minhas crônicas traduzidas, e não ficção. É um risco, porque crônica é um gênero literário popular no Brasil, mas bem menos em países como a Inglaterra, onde está sediada a Austin Macauley Publishers, que me editou. Mas eles gostaram do meu trabalho e aconteceu, o livro já está disponível online, e fisicamente sei que foi visto em algumas lojas da Barnes and Nobel dos Estados Unidos. A tradução é de Shayla Bittencourt, que captou superbem o meu estilo, sem descaracterizá-lo. Chama-se Non-stop, e agora é aguardar que um anjo leia, goste e divulgue, pois sem o boca a boca nada acontece.

VC. De onde vem sua paixão por Londres?
MM. De onde as paixões sempre vêm – do nada. Foi amor à primeira vista. Londres é elegante e anárquica, gosto deste mix contraditório. Sua imponência não é inibidora, ela é moderna sem fazer nenhum esforço pra isso. Não entendo bem a razão, mas me sinto acolhida pela cidade. Sem falar que o metrô de lá é uma facilidade. Em Nova York eu me atrapalho toda com as linhas.

VC. A propósito, como está o projeto do roteiro/filme em parceria com o cineasta gaúcho radicado em Londres?
MM. Pois é, fui desafiada a escrever um roteiro que teve como pontapé inicial uma crônica escrita há muitos anos. Andrei Koscina, um diretor de curtas que vive em Londres há muitos anos, leu o texto e viu ali a possibilidade de uma história – e de filmar seu primeiro longa. Topei. Tive a supervisão de um roteirista paulista e do próprio Andrei, e o resultado ficou muito bom – ao menos me deu muito prazer escrevê-lo. É a história de uma mulher da terceira idade que vive isolada com o marido numa praia, até que certos acontecimentos a obrigam a alterar o estilo de vida. O filme tem produtora e o orçamento já foi feito, porém está em stand by, aguardando que o momento do país se estabilize para prosseguir na captação. Se não for para as telas, a história será contada num livro.

VC. Quais suas prioridades profissionais para 2019?
MM. Dar sequência a isso tudo que falei: colocar no ar a segunda temporada do canal M de Martha (e quem sabe gravar a terceira, a quarta…), transformar o roteiro do filme num livro de ficção, e continuar me abrindo para outros mercados: a prioridade agora é apresentar meu trabalho em Portugal. Já há algumas iniciativas em andamento.

VC. Qual a sua expectativa com o novo governo?
MM. Me assusta a presença vigorosa de religiosos junto ao novo presidente, não vejo como isso possa dar certo no sentido de modernizar o país e reforçar o direito à diversidade. Mas fico torcendo para que ao menos a economia se fortaleça, a corrupção continue sendo combatida e tenhamos mais segurança pública, desde que o custo não seja a perda das liberdades civis. Não votei em Bolsonaro por uma questão moral – eu teria que nascer de novo para apoiar alguém que homenageia um torturador –, mas ele está aí, o povo decidiu, então torço sinceramente para que seu governo avance onde puder avançar.

VC. E qual a expectativa com a sua participação no projeto Navegar é preciso?
MM. Estive no Amazonas em agosto passado e fiquei muito impressionada com a energia e a beleza do lugar. Voltar acompanhada de pessoas que amam os livros da mesma forma que eu amo é um privilégio – me refiro aos outros convidados e também aos leitores que embarcarem conosco. Não sou uma escritora formal, não tenho perfil acadêmico, sou zero teórica. Sou apenas uma colunista de jornal que se tornou querida por muita gente e que vem se mantendo atuante por mais de 20 anos, então espero que os bate-papos sejam igualmente informais e afetivos, que possamos falar da nossa experiência, da excentricidade e alegria que é viver de literatura, e que possamos estimular todos a lerem, lerem, lerem, pois a leitura abre em nossa cabeça uma ampla extensão de conhecimento – e falar sobre extensão no Amazonas tem tudo a ver. Ah, e quero matar saudade do tambaqui e do suco de cajá.