Escolhas marginais

“A arte é o poder da fecundidade”, dizia Belchior, morto em 2017, uma década depois de “desaparecer”

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 186 (Outubro/2019)

Ilustração Jonas Ribeiro Alves

O cantor e compositor Belchior completaria 73 anos no próximo dia 26 de outubro e a simples menção de seu nome já desperta a curiosidade de gerações que seguem cantando as músicas criadas por um artista brilhante, de trajetória singular na história brasileira. Belchior morreu em abril de 2017 e, na época, a notícia causou alvoroço e comoção especialmente porque ele decidira, dez anos antes, desaparecer do cenário artístico e se recolher para viver uma vida anônima, longe dos holofotes. Desde a opção por este “desaparecimento”, Belchior e sua ausência viraram lenda e inspiraram versões das mais diversas.

“Belchior começou a desaparecer em 2007. As evidências de que seu sumiço era inusitado e ‘misterioso’ foram sendo levantadas pela imprensa e por alguns vestígios que corroboravam a tese de uma fuga doida: além do ateliê abandonado, agentes que não conseguiam marcar shows, pensões atrasadas, celular desativado, familiares que não mais conseguiam dizer como encontrá-lo, amigos que não sabiam mais seu endereço e, enfim, as primeiras dívidas”, escreve o jornalista Jotabê Medeiros em Apenas um rapaz latino-americano (Todavia), a ótima biografia de Belchior. Jotabê, que lança no dia 5 de novembro Não diga que a canção está perdida (Todavia), a biografia de Raul Seixas, passou uma década entre pesquisas e entrevistas para escrever sobre Belchior.

Compositor, poeta, cantor, desenhista, caricaturista, pintor, Belchior era um intelectual de sensibilidade rara. Nasceu em Sobral, no Ceará, e seu nome completo era Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes. Já na infância brilhava como cantador de feira e poeta repentista. A música estava no DNA da família. O avô tocava flauta e saxofone e a mãe, que lhe ensinou as primeiras noções melódicas, cantava no coro da igreja. Fã confesso de Bob Dylan, que admitiu ser sua maior influência, Belchior trabalhou como programador musical em rádios e abandonou a faculdade de medicina para viver de música.

Foi morar no Rio de Janeiro no começo dos anos de 1970 e começou a fazer sucesso nos festivais da época. Seu primeiro disco saiu em 1971 e, no ano seguinte, o compositor Sérgio Ricardo escolheu Mucuripe, parceria de Belchior com Fagner, para fazer parte do Disco de Bolso do Pasquim. Na voz de Elis Regina, Mucuripe virou sucesso nacional.

Com o LP A palo seco (1974), suas músicas fizeram enorme sucesso e foram gravadas por outros intérpretes. A consagração absoluta veio com a balada Apenas um rapaz latino-americano, e Como nossos pais e Velha roupa colorida, do álbum Alucinação (1976). As duas estão no show e disco histórico Falso brilhante, de Elis Regina.

São composições que sintetizam, como dizem os críticos, o diálogo entre a música tradicional nordestina, a MPB, o rock e o folk, misturando a tensão entre o espaço urbano e o sertão. Tudo com toques de experiência pessoal e uma vontade enorme de falar de amor, de poesia, de prazeres, mas sem jamais deixar de entender as podridões e injustiças sociais.

“Eu gostaria de deixar esclarecido também que é muito importante um dado de marginalidade na arte. O casamento da arte com o poder não dá certo. A arte é o poder da fecundidade e o poder, a opressão, é o poder da esterilidade. De 60 para cá, as duas grandes contribuições culturais para o Brasil, as duas grandes novidades, são a música e o humor. As duas têm acontecido à margem da cultura acadêmica. Floresceram marginalmente. Por isso lanço de novo aquele velho lema: flower power. Claro, a flor e o amor. Por quê não?”, disse Belchior numa entrevista ao Pasquim, em junho de 1982.

No mesmo depoimento, celebra a diversidade das mídias da época citando o filósofo Baruch Espinoza: “Tem que ter FM, AM, alto-falante, fita, disco, videocassete, televisão, todos os veículos modernos, contemporâneos, lunares, interplanetários, mas a serviço das pessoas e não das empresas. Gosto do variado, do múltiplo, do rico. Defendo a liberdade dentro do conceito espinoziano: ‘A liberdade não é simplesmente o direito de escolha, é a aptidão física e espiritual de fazer simultaneamente muitas coisas diversas’.”