Dedicação admirável

A escritora Ana Maria Machado fala sobre seus 50 anos de carreira, comemorados em 2019

*Entrevista publicada na revista Vila Cultural Edição 183 (Julho/2019)

A escritora Ana Maria Machado completa 50 anos de produção literária em 2019. Foto Gonçalo Diniz/ Divulgação

No romance A audácia dessa mulher, Bia e Virgílio se conhecem durante a produção de uma minissérie histórica para a TV e acabam se envolvendo de um jeito tão inesperado quanto intenso. Entre o amor e o ciúme, a fidelidade e a rebeldia, a realidade e a ficção, há uma sucessão de outras histórias que se sobrepõem e se dão com a vivacidade e a fluência características da obra da escritora Ana Maria Machado. Lançado originalmente duas décadas atrás, o livro ganha uma nova edição comemorativa – de vinte anos –, criando outro excelente pretexto para celebrar, também em 2019, os 50 anos de produção literária da escritora.

Foi a partir de 1969, há exatamente meio século, que Ana Maria Machado começou a publicar regularmente para, desde então, construir, com rigor e constância, uma carreira brilhante. Ana Maria tem mais de uma centena de livros publicados no Brasil e em outros 17 países e supera a marca dos 20 milhões de exemplares vendidos. “Apenas gostaria de saber que meu trabalho foi útil, já que trabalhei com dedicação e honestidade”, diz a escritora à Vila Cultural ao ser perguntada sobre que legado gostaria de deixar com a sua obra.

Enquanto trabalha na organização de um volume de contos reunidos, seu décimo primeiro título de ficção adulta, Ana Maria também se prepara para lançar, pela Global, o livro de poesias Brinco de listas. Sempre reverenciada pela qualidade da literatura que faz, inclusive para o público infantojuvenil, Ana Maria diz não saber exatamente de onde vem a sua familiaridade com as crianças. “O que me levou a isso foi um conjunto de circunstâncias. Primeiro, encomenda de uma revista. Depois, sucesso entre os leitores que gostaram do que eu fazia e que, quando a história publicada era de minha autoria, compravam maciçamente aquele número da revista. Foram eles que me mostraram esse caminho, ao me escolher. Em seguida, me senti atraída por um desafio. Eu dava aulas de literatura na faculdade, estava me doutorando, e me vi diante da possibilidade de explorar a linguagem brasileira num registro coloquial, familiar e oralizante e, mesmo assim, buscar uma qualidade literária que não ficasse nada a dever às obras escritas em linguagem mais formal e erudita. Quis tentar.”

Ana Maria Machado iniciou sua carreira como pintora. Ela estudou no Museu de Arte Moderna e participou de exposições individuais e coletivas. Cursou Letras, foi professora em colégios e faculdades, e trabalhou em jornais e revistas do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em janeiro de 1970, saiu do Brasil. Na Europa, trabalhou como jornalista na revista Elle, em Paris, e na rede BBC, em Londres. Tornou-se professora da Universidade Sorbonne. Foi aluna e orientanda do escritor Roland Barthes, tendo apresentado sua tese de doutorado na área de Linguística e Semiologia. O livro Recado do nome, que trata da obra de João Guimarães Rosa, é resultado dessa tese.

Ana Maria voltou ao Brasil no fim de 1972, quando começou a trabalhar no Jornal do Brasil e na Rádio JB, onde foi chefe do setor de Radiojornalismo. Em 1978, recebeu o Prêmio João de Barro pelo texto História meio ao contrário, que depois de editado recebeu o Prêmio Jabuti. Ela abriu a primeira livraria infantojuvenil do país em 1979, a Malasartes, e a gerenciou por 18 anos. Ao mesmo tempo, foi desenvolvendo sua carreira de escritora e prosseguiu no jornalismo.

De tão premiada no Brasil e no exterior, acabou se tornando hors-concours do prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), em 1993, e do prêmio Ibero-Americano de Literatura Infantil, em 2006. Em 2000, recebeu o Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura para crianças. Mãe de Rodrigo, Pedro e Luísa, e avó de Henrique e Isadora, Ana Maria concedeu a seguinte entrevista à Vila Cultural:

Vila Cultural. Há algum novo livro para comemorar uma data tão especial?
Ana Maria Machado. Devo lançar este ano, pela Global, um livro novo de poesia – acessível a crianças e bem lúdico. Então sairá ilustrado, no formato de livro infantil, diferente de meu outro livro de poemas, Sinais do mar, atualmente também na Global (a primeira edição tinha sido pela Cosac), que tem um visual lindo, todo gráfico, sem ilustração. O novo se chama Brinco de listas. Mas ainda não sei em que mês sai, é mais para o fim do ano. E neste mês de junho chegou às livrarias uma obra para adultos: a reedição do romance A audácia dessa mulher, pela Companhia das Letras, que está completando 20 anos do lançamento. Depois de ganhar o Prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, como Melhor Romance do ano em 1999, e de ter sucessivas reedições, agora ressurge com cara nova e um belo prefácio de Adriana Lisboa, autora de quem gosto muito.

VC. Como reage e que tipo de reflexão ou avaliação faz quando lembra das cinco décadas de produção literária?
AMM. Quando comecei a escrever em 1969, com histórias infantis para a revista Recreio, jamais pensei que um dia ia virar escritora profissional, largar o magistério e me afastar do jornalismo diário, e um dia iria comemorar meio século dessa atividade. Eu estava paralelamente me dedicando a minha tese sobre Guimarães Rosa, mas ainda a imaginava como uma etapa da carreira acadêmica. A escrita, como caminho definitivo, foi uma lenta e constante construção, feita de trabalho e descobertas diárias, sem qualquer planejamento. Agora, olhando para trás e fazendo um balanço, constato que essa trajetória me deu muita alegria – tanto na própria atividade da escrita, quanto num processo de autoconhecimento e no encontro com leitores de todas as idades, em diferentes culturas, pelo mundo afora. Um presente da vida, que se fez pouco a pouco.

VC. Com o distanciamento do tempo, como entende e avalia hoje os espaços que a sua geração desbravou na literatura?
AMM. Não acho que minha geração tenha desbravado caminhos na literatura. Isso vinha de gerações anteriores. A não ser que você esteja se referindo à literatura infantil. Nesse caso, sim, por circunstâncias históricas nos coube revelar ao mundo a excelência de nossa criação. Por um lado, estávamos nos ombros de um gigante e víamos tudo do alto, porque fomos formados pela leitura de Monteiro Lobato na infância. Ou seja, já sabíamos que literatura não se confunde com pedagogia, que se pode transitar entre imaginação e realidade sem necessidade de intermediações forçadas, e que a língua portuguesa falada no Brasil nos fornece um rico terreno de exploração de palavras e registros de linguagem, a serviço de uma cultura rica, miscigenada e irreverente. Essa tradição foi preciosa, dando base à ruptura inevitável que toda geração precisa operar. Por outro lado, como começamos a escrever num momento histórico de obscurantismo e repressão, tínhamos um impulso libertário irresistível, numa energia muito intensa de busca de autonomia e de questionamento, que nos obrigava a explorar muitas camadas de sentido em cada história, a aprofundar significados, a utilizar a força criadora do humor e da poesia para conseguir enfrentar a realidade, driblar a censura e expressar o sonho.

VC. Como Guimarães Rosa influenciou a sua linguagem?
AMM. Não creio que tenha havido qualquer influência direta. Nossos mundos são muito diferentes e, embora eu o admire, não é uma paixão (como a que tenho por Drummond, por exemplo). Eu já lera seus livros e o admirava muito, é claro. Mas só mergulhei no estudo de sua obra por sugestão e desafio de meu primeiro orientador no doutorado, Afrânio Coutinho. Se há um autor que me dava vontade de escrever, era outro bem diferente: Rubem Braga. Um mestre da linguagem, em outro registro, invejável na expressão da beleza das coisas simples, embora densas. Eu queria um dia chegar a escrever tão bem como ele, ainda que em meu estilo. Mas, ai de mim, ainda me falta muito engenho e arte.

VC. Qual a sua principal motivação para escrever hoje?
AMM. Hoje, ontem, sempre, não sei. Podia dizer como Guimarães Rosa, nesse caso: ‘Toda história começa sempre por uma palavra pensada.’ E daí vai se desenrolando.

VC. E qual a sua principal motivação para pintar?
AMM. Não precisar explicar nada. A maravilha de pintar, para mim, é não ter a menor necessidade de mediação de palavras para nada.

VC. Como observa e entende o mercado de livros no Brasil e no mundo neste momento?
AMM. Apenas observo que, no mundo todo, o mercado de livros virou um grande negócio que tem cada vez menos a ver com literatura, e constato que me assusto um pouco com sua concentração cada vez maior em poucos grandes grupos, deixando menos espaços para pequenos livreiros e editores independentes. Vejo as mudanças grandes – o grande número de lançamentos competindo (tanto de ótimos títulos tentadores quanto de bobagens que não justificam as árvores derrubadas para fazer o papel), o pouco tempo de vida do livro nas estantes, sempre tendo de dar seu espaço às novidades que chegam… Limito-me a constatar mais do que entender.

VC. E o que pensa sobre o jornalismo em plena revolução da era da comunicação digital?
AMM. Mais do que nunca, tenho certeza de que o jornalismo é fundamental para uma sociedade democrática. Comunicar-se digitalmente está ao alcance de qualquer um. Apurar fatos, tentar entendê-los, checar sua veracidade, relacioná-los com seu contexto, seguir suas consequências etc., são etapas que exigem o discernimento de uma editoria jornalística responsável e o trabalho de profissionais preparados e dignos de confiança – para que se possa ir além da superficialidade rasteira, das reações epidêmicas tantas vezes equivocadas ou da distorção dos acontecimentos. E hoje em dia, com a velocidade atual, a apuração e a checagem de notícias passaram a ser um trabalho contínuo, de muita gente se revezando. Só com jornalismo na origem e tratamento da notícia é que a gente pode minimamente tomar pé nos fatos reais e tentar não ser manipulada por interesses alheios.

VC. A propósito, como lida com o noticiário e a realidade brasileira neste momento, sobretudo no que se refere aos rumos da educação?
AMM. Com incredulidade, pavor, vergonha. E muita indignação, muita mesmo.

VC. Como alguém que viveu a ditadura, que impressão tem hoje do panorama político do país?
AMM. Dá tristeza ver que aprendemos muito pouco. É altamente preocupante e assustador ver como o país prefere andar para trás, a partir de uma polarização que se recusa a encarar a realidade de forma racional. Em tudo – do abandono da educação e hostilização às universidades e à pesquisa até a indiferença ao grave retrocesso nas questões ambientais, passando pela ideologização no trato da reforma da Previdência. Além de cultivarmos uma imperdoável intolerância com qualquer viés diferente ou divergente, estamos cada vez mais chafurdando na discussão de irrelevâncias enquanto não nos sensibilizamos para os problemas reais mais graves. Como, por exemplo, a urgência da ameaça ambiental ou a escandalosa desigualdade do país – de que pode servir de símbolo o fato de que cem milhões de brasileiros não têm acesso a saneamento e água tratada, mesmo após anos de governos que se apresentaram
como progressistas.

VC. Como observa e o que pensa sobre o feminismo – ou “feminismos” – neste momento?
AMM. Sou feminista convicta, desde a década de 1960. Penso que essa foi a maior revolução de nosso tempo, embora ainda haja muito a conquistar. Tenho o maior orgulho da ampliação de pautas e conquistas efetuada pela corajosa geração da minha filha e da minha neta. Percebo que há uma multiplicação de “feminismos” neste momento, nem sempre percebo as diferenças entre eles. De qualquer modo, sou solidária, quero que todos se somem para ficarmos mais fortes e não sei me situar em um deles apenas, em relação aos outros.

VC. Que legado gostaria de deixar com o seu trabalho?
AMM. Não sei. Não consigo pensar exatamente nesses termos. Apenas gostaria de saber que meu trabalho foi útil, já que trabalhei com dedicação e honestidade.

VC. O que é preciso, na sua opinião, para que as novas gerações desfrutem integralmente da literatura brasileira?
AMM. Não sou muito boa em pensar esse tipo de questão genérica e ampla. Mas estou convencida de que nossa sociedade precisa ser menos desigual e dar as mesmas oportunidades a todos. Inclusive as chances de cada um se aproximar de bons livros, tanto no acesso a eles quanto na chance de entendê-los
criticamente.

VC. Numa época em que a longevidade é uma realidade, a que atribui a vitalidade, o vigor e toda a intensidade dos seus 70 e poucos anos?
AMM. Sorte na loteria da vida, talvez, que me permitiu sobreviver à ditadura, prisão, exílio e doenças graves como um câncer que me maltratou muito.

VC. Como se autodefiniria como mãe? E como avô?
AMM. Sou escandalosamente coruja. Acho que filhos e netos são, disparado, o melhor da minha vida. Os meus são maravilhosos… (rsrsrs), me orgulho muito de serem pessoas de bem, capazes de pensar por si. E tento não sufocá-los de tanto amor, mas apenas lhes dar as bases para que voem e encontrem seus caminhos.

VC. Em que projetos trabalha atualmente?
AMM. Estou terminando de organizar um volume de contos reunidos (o décimo-primeiro título de ficção para adultos), que tem uma seleção de textos inéditos ao lado de outros publicados digitalmente ou de forma esparsa, na imprensa e em revistas em geral. Com o título de Vestígios, será entregue em breve à Companhia das Letras.