Emoção e sensibilidade

“Começo tímida. Conhecer escritores renomados parece um sonho distante” diz Carolina Steinmuller Farias*

*Matéria publicada na revista Vila Cultural Edição 182 (Junho/2019)

Segundo Fernando Pessoa, para “viajar basta existir”. O mesmo Pessoa deixou célebre, em versos, a frase do general romano Pompeu, dita por volta do ano 70 a.C.: “Navegar é preciso, viver não é preciso”.

Na nona edição do projeto Navegar é Preciso, os organizadores convocaram um time literário especialíssimo, com craques das palavras: Pedro Bandeira, Martha Medeiros, Maria Rita Kehl, Maria Ribeiro, João Carrascoza e Mônica Salmaso, que proporcionaram a todos a bordo uma aventura única pelo pulmão do mundo, a Amazônia.

Carol em um mergulho inesquecível. Foto Carolina Steinmuller Farias/Arquivo Pessoal

Embarquei no navio Iberostar Grand Amazon – um luxo de conforto e conveniência: suíte privativa, varanda com vista para o Rio Negro e para a Floresta, restaurante com comida e serviço ótimos, carinho da tripulação, a gentileza característica do povo amazonense, acrescido das competentes e prestativas equipes da Livraria da Vila e da AuroraEco.

Foi minha segunda experiência nesse projeto. Na primeira, fui com meu esposo e meu filho, Gabriel, na época com treze anos. Juntos vivenciamos instantes de extrema conexão com a natureza, com a literatura, convivência em família e desconexão com o mundo virtual, uma vez que durante esse cruzeiro permanecemos sem internet, algo tão difícil hoje em dia e que se torna um dos diferenciais dessa viagem. Nesta edição de 2019 fui sozinha e afirmo que se trata de um programa maravilhoso. Seja com família, com amigos ou sozinho, é impossível não aproveitar o Navegar.

Começo tímida. Conhecer escritores renomados parece um sonho distante. Vejo Pedro Bandeira no aeroporto, de carne e osso. Espio Martha Medeiros. Olho Maria Ribeiro à distância. O primeiro dia parece com o início de um período de aulas ou de uma nova turma de faculdade. No auditório, apresentam-se a tripulação e a programação. Logo após, o primeiro jantar, com um buffet delicioso e variado, garçons simpáticos e atenciosos, maneira mais do que perfeita de iniciar uma deliciosa aventura. O restaurante do navio é um capítulo à parte, repleto de opções para todos os gostos; todos os dias, os chefs capricham, trazendo-nos diferentes comidas com uma apresentação incrível, de encher os olhos.

O barco sai. Despeço-me de Manaus. Iluminada, a famosa ponte sobre o Rio Negro vai distanciando-se, enquanto brindamos no deck. Um brinde à vida, à literatura e à natureza.

No segundo dia, acordo ansiosa e animada para o primeiro passeio. Vamos de “voadeira”, como são conhecidos os rápidos barcos que parecem voar pelas águas dos rios amazônicos. Paramos para ver os botos-cor-de-rosa, os lindos “golfinhos” de água doce, beleza e lenda do Amazonas. Um momento singelo e encantador. Logo após, seguimos pelas areias brancas na praia da região de Acajatuba, tal qual um batismo nas águas deliciosas e envolventes do rio.

O tempo parece voar e retorno ao navio. No primeiro encontro literário, Maria Ribeiro – escritora, atriz e diretora – entrevista o consagrado Pedro Bandeira. Duas gerações, dois estilos enriquecedores em lições de literatura, de vida, e de vida-literária. Não poderia haver melhor início literário. Bandeira diverte, ensina, encanta, prende a atenção de todos, encerrando de forma brilhante, em verso e rima, “tá vendo como deu certo esse jeito de rimar, para artistas como vocês é bem fácil de ensinar, só que agora eu me despeço, pois eu tenho de partir, mas eu levo seu carinho se quiserem me aplaudir”. E, claro, todos nós aplaudimos de pé.

Os “navegantes”, como somos chamados os privilegiados exploradores literários da Amazonas, começamos a nos conhecer. Somos pessoas de todo o Brasil, de várias profissões, de diversas idades, de lindos e diversos sotaques, com histórias de vida distintas, mas com paixões comuns: a leitura, os livros e a literatura.

Na região do Jaraquí, percorro uma trilha na Floresta. Mais que uma trilha: uma aula de amor ao verde, uma lição de louvor à natureza, um ensinamento de que temos que preservar nossa riqueza verde. Amigos multiplicam-se. Escritores e escritoras começam a ser vistos não mais como inalcançáveis e sim como “navegantes”, nesse local único do Planeta que é o Amazonas.
No segundo evento literário, João Anzanello Carrascoza inquire Martha Medeiros. Ambos consagrados, cada um no seu estilo, por escrever sobre os mais diversos sentimentos. A entrevista transforma-se em aula. Mais que aula, exemplo de amor aos livros. A gaúcha Medeiros deixa várias lições, como “quem não lê é um presidiário, vive uma vida sem janelas… quem não lê tá confinado”. Carrascoza finaliza: “A literatura é uma rede de afetos”. Logo após as entrevistas, abre-se espaço para perguntas e a plateia interage com o(a) escritor(a), de maneira gostosa e descontraída.

Fauna e flora em plena harmonia

Vou jantar e, para minha surpresa, Pedro Bandeira e sua amorosa esposa Lia me convidam para sentar-me à sua mesa. Pedro e Lia adotam-me e fico absurdamente emocionada com tamanho carinho: seu abraço sempre caloroso, suas palavras doces e gentis, seu imenso coração, sua humildade. Pude comprovar que ele é realmente o “Kara” (Sim! “kara”! Leitores e fãs de Pedro Bandeira entenderão). O casal Pedro e Lia me conquistou de “cara” com seu bom papo, com seu acolhimento, com seus corações imensamente generosos.

Para finalizar o proveitoso segundo dia, Mônica Salmaso presenteia os “navegantes” com sua voz doce, interpretando clássicos da bossa-nova, da MPB, do samba. Ela solta a voz, brindando-nos com um show musical da melhor qualidade. Uma noite memorável.

No dia seguinte, acordamos ao som dos pássaros e do deslizar nas águas dos rios amazônicos. Após o café da manhã, vamos em lanchas ao coração do arquipélago Anavilhanas, com mais de 400 ilhas de diversas formações florestais. Um espetáculo a céu aberto, uma mistura de cores e cheiros, uma emocionante imersão no coração da natureza.

Em seguida, desfrutamos do terceiro encontro literário, com Maria Rita Kehl entrevistando Maria Ribeiro. Maria Ribeiro relata como começou a escrever, combinando o talento da escrita com sua atuação de atriz consagrada. A atriz-escritora lembra que, desde a escola, “era boa de escrever”, recebendo os elogios da crítica após publicar seu primeiro livro (Trinta e oito e meio). Uma entrevista divertida e descontraída.

Impressiono-me com a qualidade e a competência dos guias turísticos. Caboclos que conhecem a Floresta, a vida local, a fauna e a flora. Conhecem também todas as histórias e estórias locais, as lendas, o mundo amazônico.

Os “navegantes” visitam a Fundação Almerinda Malaquias, uma ONG brasileira que desenvolve um projeto social que ensina os “locais” a protegerem a Floresta. A população é orientada a aproveitar as madeiras das árvores, transformando-as em bichinhos de madeira e uma grande variedade de peças artesanais encantadoras.

Mais um encontro literário: Pedro Bandeira entrevista Carrascoza. Dois gênios da literatura nacional. Novamente, duas distintas gerações e dois públicos de leitores que se encantam com essa junção de inteligências. O paulista de Cravinhos expõe-se como escritor. Lembra que desde pequeno tinha uma imaginação fértil e relata que costumava conversar com três pedrinhas, as quais o levavam para um mundo paralelo, o que despertou seu desejo de se tornar escritor.

Termino o terceiro dia com a contemplação noturna em passeios silenciosos pelo rio Amazonas, silêncio interrompido, apenas, pelos sons da floresta. Um dos momentos mais incríveis da viagem: escutar os grilos e o balanço das árvores, sentir o cheiro mais puro da natureza, admirar as estrelas.

O quarto dia teve passeio de lancha pelos igarapés e lagos da região. Outra aula de natureza, de folhas, de água, de verde. Observamos os macacos de cheiro que encantam e divertem todos com suas “macaquices”, pulando de galho em galho. Encantei-me também com o bicho-preguiça, que demonstrava toda sua tranquilidade no seu habitat natural.

Ao retornar ao navio, outro encontro literário. Martha Medeiros passou a ser a entrevistadora e Maria Rita Kehl a entrevistada. Vida, filosofia, coisas cotidianas, o ofício de escrever são algumas das perguntas. “Toda época que tem medo de si mesma tende à restauração”, Kehl cita Thomas Mann. Martha escuta Kehl no divã, trocando de lugar com a psicanalista.

No último dia, conhecemos a Praia do Tupé. Mergulhamos no calor do ar e da água. Foi quando aconteceu um momento marcante da viagem: todos os navegantes circularam uma árvore de mãos dadas, num abraço gigante e molhado, cantando “Viver é preciso, navegar não é preciso”.

A água lava a alma e prepara para o último encontro literário. Maria Ribeiro, de atriz passa a repórter e entrevista Mônica Salmaso, que discorre sobre sua trajetória musical, sua rotina, seu amor pela música.

No quinto e último dia, o espetáculo do encontro das águas dos rios Solimões e Negro. A junção sem mistura. O encontro de distintos. O espetáculo da natureza.

Nós, os “navegantes”, retornamos a Manaus. O grandioso Teatro Amazonas nos aguarda com música clássica. Um retorno à belle époque do mundo amazônico.

No final, a emoção da despedida. Do adeus – ou até breve – a uma família literária. De escritores e escritoras de carne e osso. Carne, osso, emoção e sensibilidade. Mais do que uma viagem, o Navegar é Preciso é uma experiência ímpar e inesquecível, com frutos que ficarão para sempre – como amizades para toda a vida e lições para nossa existência. Foram cinco dias que passaram voando, pois, como Carrascoza fala no seu livro Elegia do irmão, “o tempo, ao passar por nós como um rio, segue para a foz, não lhe é permitido retornar à nascente… No entanto, somos (também) o que fomos: águas, águas que acariciam, águas que rumorejam, águas que rebentam pedras”.

Voltei mais água, menos pedra. Voltei mais floresta, menos prédio. Voltei com energia renovada após um banho de imersão no universo literário, na imensidão e grandiosidade que é a Amazônia.

*Carolina Steinmuller Farias, natural de Campina Grande, na Paraíba, é advogada, autora do livro Práticas abusivas das operadoras de planos de saúde, casada e mãe de dois filhos. Escreve sobre uma de suas paixões, a literatura, no blog Livros e Leitura e no Instagram @livros_e_leitura. Participou pela segunda vez do Navegar é Preciso.