Entre sons e palavras

Arthur Nestrovski publica seleção de ensaios sobre música e literatura em Tudo tem a ver

O crítico e compositor Arthur Nestrovski. /Foto Claudia Cavalcanti/Divulgação

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 184 (Agosto/2019)

O crítico, ensaísta, compositor e diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) Arthur Nestrovski autografa dia 10 de agosto, na loja da Lorena, Tudo tem a ver – Literatura e música (Todavia), que junta dez ensaios, seis sobre música, quatro sobre literatura, e uma série de textos mais curtos publicados na imprensa ao longo das últimas décadas.
De Chico Buarque a Beethoven, de Edgar Allan Poe a Ian McEwan, sempre entre o erudito e o popular, Nestrovski documenta suas habilidades com o texto para confirmar um lugar especial no melhor ensaísmo cultural brasileiro.
“Era Nietzsche quem dizia que só tem valor aquilo que a gente lembra e que a gente só lembra do que dói. Mas ‘doer’, nesse contexto, pode ser sinônimo de ‘prazer’. Melhor dizendo: algo que nos toca muito fundo, entre a dor e o prazer. Numa escala muito diminuída, mas afinal da mesma natureza, a lembrança de momentos assim nos textos tem algo a ver com isso. Algo daquela forma mansa de loucura que é viver tão intensamente entre palavras e sons. É o prazer da experiência em si da escrita, que retorna, tantos anos depois, quase como se não houvesse intervalo, como se os dois momentos, passado e presente, existissem num mesmo plano e pudessem agora se sobrepor. Pensando com cabeça de editor, este livro também tem uma dupla pegada. É uma seleção de textos muito diversos, tanto na forma quanto no conteúdo, sobre música e literatura, de um autor que chega aos sessenta anos”, escreve Nestrovski na apresentação do livro. Leia a entrevista que ele concedeu à Vila Cultural.

Vila Cultural. Que critérios usou para selecionar os textos do livro?
Arthur Nestrovski. O primeiro critério foi reunir alguns textos mais longos que já estavam fora de catálogo, por diversos motivos: alguns publicados há mais de duas décadas, para não dizer três (como no caso do pequeno livro Debussy e Poe, lançado pela L&PM em 1986); outros, em livros de editoras que não existem mais (como o ensaio O samba mais bonito do mundo, que fazia parte do livro Três Canções de Tom Jobim, da Cosac Naify). A ideia, também, era reunir textos que fossem de interesse, em princípio, para leitores dessas áreas, e que formassem juntos um acervo representativo da produção editada ao longo de todo esse tempo, seja na área da música, seja na da literatura. O livro, afinal, faz as vezes de antologia, de um autor que chega aos 60 anos. Não seria eu mesmo a melhor pessoa para julgar o que é atemporal nisso tudo, mas a gente sempre publica um livro com a esperança de que alguma coisa – ideias, escrita, postura – tenha valor para quem lê e sobreviva à seleção natural.

VC. Como a diversidade das suas experiências/funções pode ser percebida no seu trabalho como ensaísta?
AN. A diversidade fica aparente pela própria seleção dos textos, que tratam de compositores como Beethoven e Schumann, mas também de um poeta como Coleridge e um romancista como Philip Roth, de Tom Jobim e Bob Dylan, até uma teoria da influência na literatura e um documentário sobre o Holocausto. Evidentemente, são assuntos diversos e nem tudo tem a ver com absolutamente tudo. Mas as formas de ser e estar no mundo, sim, para quem se dedicou a esses temas sem fazer distinção, porque de fato tudo sempre teve a ver com as mesmas preocupações e interesses num horizonte amplo cujo ponto de fuga é a cultura do Brasil. Vistos assim em conjunto, os textos também exprimem uma disposição de cruzar as fronteiras entre as disciplinas – fronteiras que, de resto, só existem por conveniência pedagógica, não na “vida real” das obras.

VC. Olhando em retrospectiva ou em perspectiva, o que muda na percepção de um autor que chega aos 60 anos?
AN. Muda a compreensão de algumas coisas? Claro. Mas talvez mude mais a forma de escrever e o tom da voz. Do meu ponto de vista, eminentemente pessoal, vejo uma evolução dos primeiros textos até os inéditos, na seção final do livro. A idade – quer dizer, o acúmulo de experiências, de todos os tipos – ajuda não só a pensar melhor, mas escrever com menos ânsia e mais simplicidade. Em perspectiva, espero continuar melhorando. É como tocar violão. Ainda falta muito, mas quem sabe, um dia, fique bom.

VC. Idealmente falando, qual é o lugar da crítica e o que é preciso para que ela mantenha relevância em tempo de tantas revoluções da comunicação digital?
AN. Parece muito longe do ideal o lugar da crítica hoje no Brasil, se é que ainda se pode falar com tanta confiança de “lugar”, quando a imensa maioria dos jornais e revistas, na prática, aboliu a crítica. E os meios digitais, que poderiam ter se tornado o lugar por excelência da crítica cultural, ainda não cumprem esse papel. Nem uma mínima parcela da produção de uma cidade como São Paulo recebe qualquer resposta crítica. E nem vamos começar a definir o que é crítica, diferente da mera expressão de gosto pessoal, ou das comédias e farsas da personalidade. No campo da música clássica, ficam evidentes não só a diminuição de espaço, mas a falta de renovação. O que vira um círculo vicioso. Quem sofre com isso somos todos nós, porque à diminuição da importância da crítica corresponde uma diminuição da importância da cultura. Pode-se perguntar por que as universidades não assumem esse papel, que não é mais dos grandes meios de comunicação, com surpreendentes exceções, aqui e ali, em canais pagos de TV.

VC. Que impressões tem do atual panorama musical do país, seja na produção popular ou erudita?
AN. O país é grande e diverso demais para uma resposta só, e a produção popular e erudita têm características diferentes. São muitos gatos e muitos balaios. Mas vá lá: com todas as dificuldades, e mesmo no clima recessivo do momento, a música brasileira vai resistir. Ninguém acaba com a música, embora alguns façam o que podem para atrapalhar. A Sala São Paulo acaba de comemorar 20 anos, reconhecida como uma das melhores do mundo; a Osesp, tida como a melhor orquestra sinfônica da América Latina, faz 65; Chico chegou aos 75, em plena atividade musical (Caravanas) e literária (Prêmio Camões). A quantidade de jovens músicos de alto nível é de cair o queixo. Basta ouvir a Orquestra do Festival de Inverno de Campos do Jordão (que, aliás, completa 50 edições), composta por uma garotada que tem a idade da Sala São Paulo. E toda hora se escuta um solista novo, um grupo, uma cantora. O que ficou mais difícil mesmo foram as formas de fazer carreira, especialmente na música popular. Mas também há muitas novidades boas, como o barateamento dos meios de gravação e divulgação. Que o país não apoie de modo muito mais expressivo uma de nossas maiores riquezas segue sendo um absurdo, entre tantos. Quem puder, que dê continuidade ao tanto de bom que já se fez e toque o barco adiante. Temos todos a responsabilidade de garantir que o futuro, no mínimo, não seja menor do
que o passado.

LANÇAMENTO
Livro: Tudo tem a verLiteratura e música (Todavia), de Arthur Nestrovski
Loja: Lorena
Quando: dia 10 de agosto a partir das 11h30