Entrevista exclusiva com Maitê Proença

A atriz Maitê Proença estreia novo espetáculo em
São Paulo e é convidada do Navegar é Preciso 2018

*Entrevista publicada na revista Vila Cultural 165 (janeiro/2018).

Fotos Simone Marinho/Divulgação

A atriz Maitê Proença estreia dia 25 de janeiro, no Teatro Sesc Bom Retiro, em São Paulo, o espetáculo A mulher de Bath, texto do inglês Geoffrey Chaucer (1343-1400) dirigido por Amir Haddad. Para o público paulistano, trata-se de uma oportunidade imperdível para ver Maitê em cena e celebrar as quatro décadas da carreira de uma atrizes mais conhecidas do país e cuja beleza física sempre foi uma citação recorrente. Aos 59 anos, linda como sempre, Maitê, que é um sucesso também como escritora e apresentadora de TV das mais versáteis, agora se joga, como ela diz, no projeto de ser “a melhor atriz que eu jamais fui”.
Da escolha do texto ao convívio intenso com o diretor, Maitê também não se intimida ao sugerir, com a montagem, o fim do “teatrão”, numa referência explícita ao desejo de questionar ou derrubar fórmulas para se manter fiel ao seu projeto artístico. Em uma das entrevistas para divulgar a peça, que estreou em Belo Horizonte em outubro do ano passado, a atriz e o diretor chegaram a usar a expressão “pós-teatro” para falar da linguagem do novo trabalho. Segundo a atriz, “é um teatro amigo do público, horizontalizado”. “É tudo vivo, claro e sem truques. Para ficar simples, foram meses de estudo, pesquisa, escavação para dentro de mim, e trabalho em cima do texto e no palco”, declarou.
A Mulher de Bath, que faz referência à cidade no interior da Inglaterra, foi escrito por Chaucer no final do século 15, e está no livro Contos da Cantuária (Penguim Companhia, 2013), traduzido por José Francisco Botelho. Filósofo, escritor e diplomata, Chaucer é nome-chave para a literatura britânica medieval, já que até então não havia a língua inglesa escrita e falada. Como um dos responsáveis pelo idioma, ele passou a ser uma “fonte” de inspiração até para Shakespeare.
No livro, peregrinos a caminho de Canterbury (a Cantuária do título em português), para visitar o túmulo de São Thomas Becket, decidem compartilhar histórias e quem contar a melhor ganha um banquete. No conto que deu origem à peça, a personagem Alice (Alison, no original) surge como uma mulher a frente de seu tempo, inclusive por já contabilizar cinco casamentos. Ela conta a história de um jovem que é condenado por tirar a virgindade de uma moça e que só conseguirá escapar da condenação se responder a uma questão improvável: o que as mulheres mais desejam? Num contexto histórico baseado na religião, Alice usa e abusa de argumentos bíblicos e sagrados para entender e explicar lógicas supostamente profanas. Em versos, a tradução brasileira de Botelho é inspirada nas trovas do Sul e nos cordéis nordestinos.
Convidada do Navegar é Preciso, a viagem ecoliterária que a Livraria da Vila e a Auroraeco realizam anualmente (leia nesta edição), Maitê Proença já publicou seis livros. Em 2005, estreou com Entre ossos e a escrita (Agir), com crônicas originalmente feitas para a revista Época. O romance Uma vida inventada (Agir) mistura impactante de ficção e memórias, virou best-seller em 2008. É duro ser cabra na Etiópia (Agir, 2013) juntava as respostas de um desafio lançado aos fãs da atriz na internet: desenvolver uma história, poema ou imagem, de preferência com humor, tendo como inspiração uma frase inusitada. Em 2013, Maitê publicou o texto do espetáculo À beira do abismo me cresceram asas (Giostri). No romance Todo vícios (Record, 2014), a escritora conta a história de Stella e João, uma atriz e um publicitário cinquentão que vivem uma paixão improvável. Maitê voltou às crônicas em 2015, com Entre ossos agora, também lançado pela Record. Atualmente sem vínculos e projetos de teledramaturgia com a TV Globo, na qual trabalhou por 37 anos, a atriz diz que se sente livre para priorizar outros trabalhos, conforme revela nesta entrevista à Vila Cultural.

Vila Cultural. Como decidiu pela montagem do texto de Geoffrey Chaucer?

Maitê Proença. O editor José Mario Pereira, querido amigo, me presenteou com a mais recente tradução brasileira dos Contos da Cantuária, feita por José Francisco Botelho, Prêmio Jabuti em 2017. O conto da Mulher de Bath estava ali dentro, e me pareceu pronto para ser dito. O tema era atualíssimo, da hora! Aquela história poderia estar na boca de qualquer uma dessas feministas do movimento que ressurge. E com tanta ironia e humor. Mas como transformar aquilo em teatro? Chamei o maior de todos os diretores, o mais contemporâneo que temos, o que sabe falar com o público direto na veia, Amir Haddad. Porque eu queria que a forma fosse popular e acessível, para chegar mesmo na plateia. Tudo aquilo seria como foi escrito, mas sem pompa, sem salto alto. Disso nasceu nosso espetáculo.

VC. Você disse que ia mudar o nome da peça para A esposa ideal. Mudou?
MP. Por ora ainda não tive coragem de mudar o nome. Ainda que o tema seja universal e Bath seja uma cidade da Inglaterra de difícil pronúncia. Estamos em turnê, talvez quando chegar a São Paulo ou ao Rio eu ainda mude. Por enquanto A esposa ideal é o apelido.

VC. Que avaliação faz da receptividade do público?
MP. O que tem acontecido é que as pessoas ficam depois do espetáculo pra conversar, muita gente, uma fila imensa. Elas dizem que chegaram com receios e saem encantadas, que o que leem nas matérias de jornal nada tem a ver com o que assistiram, jamais teriam imaginado aquilo… Tanto que agora estamos fazendo vídeos com comentários do público. Publico-os em minhas páginas na internet. É estranho, porque as matérias na imprensa foram todas excelentes, mas ainda assim não explicam a experiência teatral e o novo teatro do Amir. As mulheres saem vitoriosas dizendo: “vou pôr isso em prática agora lá em casa!”. E os homens, às gargalhadas, pensando em como colocar um cabresto naquela abusada. Os jovens saem impactados com a graça que pode ter um texto de tanto conteúdo. Como a peça é cômica, tudo acontece num clima de brincadeira. É muito prazeroso, com um texto desse naipe, ver a reação quase unânime. Nunca vi 100% da plateia sair contente assim.

VC. Você já citou a qualidade literária do texto e o “apelo popular” da montagem. Como conciliar essas duas virtudes, sobretudo se envolve poesia?
MP. O brasileiro tem a tradição do cordel e as trovas do Sul. A rima está nos nossos ouvidos. Mas o truque da montagem é fazer com que a beleza da rima fique secundária, e o sentido de tudo se torne simples e coloquial. Nos primeiros três minutos o público esquece que o texto é rimado.

VC. Você escreveu que a peça tem altas DRs. Por que as DRs são sempre tão inspiradoras na arte?
MP. São as artimanhas do amor, os jogos e divergências de todo casal desde quando Eva mordeu a maçã, graças à Deusa.

VC. O que é mais fascinante quando o sagrado e o profano estão juntos?
MP. A gente não está acostumado a ver o sagrado e o profano convivendo com tanta desfaçatez. A mulher de Bath tem um deboche libertador na lida com essas questões. Ela usa a bíblia pra justificar seu gosto pelo sexo, pela bebida, pelos prazeres todos da vida. Alice é bem falante, solta e sem pudor no vaivém entre o sagrado e o profano. É muito engraçado e quebra tabus até hoje. As pessoas reagem alto na plateia, do início ao fim.

VC. O que, na sua opinião, é ser uma mulher libertária em 2018 e como define o feminismo neste momento?
MP. Existe um feminismo histórico que exige mudanças para discriminações ancestrais que persistem nos dias de hoje. As mulheres do mundo todo ainda sofrem com prostituição, casamentos prematuros, trabalho forçado, têm filhos que não desejam e que não podem alimentar, não têm controle sobre seus corpos ou suas vidas, não recebem educação, não têm liberdade ou reconhecimento, são estupradas, espancadas e às vezes mortas com impunidade. Mulheres fazem 2/3 do trabalho mundial mas têm menos de 1% dos bens. São pagas menos que os homens pelo mesmo trabalho, quando pagas. São as mais pobres entre pobres. Continuam vulneráveis porque não têm independência econômica e são constantemente ameaçadas por exploração, violência e abuso sexual. Quem acha que isso precisa mudar já, é a favor do feminismo.

VC. Como foi a experiência de dirigir É sobre você também e o que já descobriu sobre suas habilidades nessa função de diretora?
MP. Eu já havia dirigido À beira do abismo me cresceram asas, junto com Clarice Niskier (e supervisão do Amir). Era uma peça escrita por mim. No Sobre você a supervisão é minha. Julia Portes, uma menina de 20 anos, estuda teatro desde os seis, formou-se nisso e é muito, muito boa, mas é fora dos padrões da TV. Então nos testes fica sempre em segundo lugar e quem leva é a de beleza mais óbvia. Ela escreveu um esquete que vi num festival. O esquete foi aumentado e virou peça. Fomos parar na Casa Rio, um espaço alternativo. Deu certo. Agora vou redirigi-la pra valer, pra reestrearmos mais abusadas e inovadoras, com muitos novos conceitos que trago da experiência de me deixar fazer gato e sapato pelo Amir em A mulher de Bath. Foi doído pra mim mas valeu cada minuto. A Julia não sabe o que a espera, ha ha ha.

VC. Como reage quando a sua sinceridade vira “maledicência” na imprensa? Acha possível se blindar dessa prática tão perversa?
MP. Não é possível se blindar a não ser que eu me cale. Depois de um ano sem me pronunciar sobre assunto algum, dei recentemente uma entrevista de altíssimo nível no Roda Viva, com entrevistadores provocantes e inquisitivos, mas brilhantes. O que aconteceu? Vejo aquilo ser vulgarizado até virar lixo por essa parcela da imprensa agonizante que precisa criar mentiras imundas pra
conseguir leitores.

VC. O que apreende sobre arte e vida no convívio mais próximo com o diretor Amir Haddad?
MP. O Amir tem 80 anos de observação aguda da vida, tudo o que ele diz é de grande valor. E com a nossa peça, acho que ele chegou à síntese do que acredita ser a salvação do teatro contemporâneo. A Antígona da Andrea Beltrão já toca ali lindamente. Ele vinha disso quando me pegou, estava fervendo, estava no ponto, e eu o deixei fazer tudo o que queria sem resistência. Tem uma frase dele sobre o teatrão de outrora, teatro este que prestou grande serviço, mas que não tem mais lugar nem porquê. A frase é: “A magia não precisa de mistério”. Quem for nos assistir vai entender perfeitamente do que ele fala.

VC. Por que está tão focada na ideia de ser “a melhor atriz que jamais foi”, conforme declarou?
MP. Porque agora eu posso. Não tenho a tutela de ninguém a impor personagens que não me diziam nada, e muitas vezes me envergonhavam. Há tempos venho escrevendo minhas próprias peças no teatro pra poder, justamente, falar do que acho relevante. Agora vou me jogar como atriz. Não tenho mais o medo, que tive por anos, de ir onde preciso para catar minhas lágrimas de dor ou de riso. Estou livre disso também. É a minha hora!

VC. O que pensa sobre a “onda” de censura às artes no país?
MP. A arte pensa antes, propõe, chacoalha, pra que a gente possa ver além dos condicionamentos e enxergar uma dimensão maior, e quem sabe melhor, do universo que nos cerca. A arte precisa ser um campo de experimentação. E para tal precisa ser livre. Não pode ser cerceada pela ideologia de ninguém, sobretudo não do Estado. Quando isso acontece, temos a Coreia do Norte, ou o Brasil de 40 anos atrás. Queremos voltar?

VC. O melhor e o pior de ter quase 60 anos…
MP. A gente fica bem mais interessante, faz menos concessões pra ser amado, chega mais perto de nós mesmos gerando uma economia de esforço muito agradável. Mas doem os ossos e as carnes ficam moles e isso não é
nada agradável.

VC. A beleza é a recomendação mais influente que alguém pode ter? Por quê?
MP. Todos gostamos de uma paisagem linda, um cavalo bonito, um quadro deslumbrante. Uma mulher bonita faz virarem as cabeças literalmente, e no sentido figurado perde-se a razão por conta dela. E eu acho lindo que a gente perca a razão. A razão pode ser muito cansativa e chata. Só a beleza pode com ela, benza Deus!

VC. Quando diz não ter vontade de escrever nesse momento, como acomoda a ideia de não usar, por escolha ou circunstância, uma habilidade tão valiosa, pelo menos na percepção de quem já leu seus livros?
MP. Agradeço o elogio muito apreciado, acredite. Não digo que não escreverei, tenho uma ideia na pontinha do cérebro doida pra sair por aí. Tenho algumas. Mas o mundo está muito cheio de palavras vãs, vou guardar as minhas até não conseguir mais contê-las, para observar, sentir, viver, e depois talvez ter o que dizer com mais propriedade.

VC. Por falar nisso, como se relaciona com os livros que escreveu?
MP. Não consigo reler nada. Deveria reeditá-los, reescrevê-los, agora, melhor. Fazer outro É duro ser cabra na Etiópia, com a experiência que o primeiro me deu – seria bárbaro trabalhar com aquela gente toda desconhecida, dar voz a quem não tem oportunidade. Foi uma ideia pioneira, ninguém havia feito nada parecido. Mas a imprensa não deu bola pra ele, e nem pra Todo vícios, que é um bom livro sobre um amor impossível entre pessoas que só se conhecem por mensagens, um tema atual. Deram muita bola para os primeiros e depois largaram de mim. Eu tenho culpa também porque não tive energia pra trabalhar os livros a contento. Prefiro escrever a divulgar, mas uma coisa sem a outra não funciona bem.

VC. O que pensa sobre a situação política do Brasil neste momento?
MP. Não penso claramente, lamento, fico imensamente perturbada. Choro pelo meu país.