Vocação cronista

“Sempre foi um plano A”, diz o escritor Antonio Prata sobre a escolha e a conquista da literatura como trabalho

*Entrevista publicada na revista Vila Cultural Edição 181 (Maio/2019)

A devoção que o escritor Antonio Prata tem pela crônica, gênero que focaliza, como ele diz, as pequenas epifanias do cotidiano,

O escritor Antonio Prata, que lançou recentemente o infantojuvenil A menina que morava no chuveiro (Ubu), com ilustrações de Talita Hoffmann

não tem sido uma escolha simples no Brasil de 2019, com seus rompantes trágicos e improváveis a desafiar, um dia após o outro, a lógica da civilidade, do bom senso e do bom humor. Ainda assim, Prata, 41 anos, segue firme no “dever cívico” e profissional da escrita, publicando no mínimo semanalmente, sempre aos domingos, no jornal Folha de S. Paulo, em que compartilha com seus leitores inclusive as reflexões sobre o próprio ofício. Para dar mais graça à vida.

Quando começou a escrever crônicas na revista Capricho, em 2001, aos 23 anos, Prata também iniciava a descoberta, na prática, do sentido e da possibilidade (real) de viver da literatura e do texto como trabalho. Enquanto aprendia e praticava – ao longo de oito anos –, já chamava atenção pela habilidade, sensibilidade, humor e talento. Confirmou, palavra por palavra, o que já sabia: ser escritor, no caso dele, nunca foi obra de circunstância, do acaso ou apenas-uma-alternativa-possível-tipo-um-plano-B. “Sempre foi o plano A”, ele diz em entrevista à Vila Cultural.

Deu tão certo que, mais de dez livros e quase vinte anos depois, Prata, que é filho dos jornalistas e escritores Marta Góes e Mario Prata, segue gostando ainda mais de poder fazer o que gosta. No meio do caminho, também tomou gosto pelo trabalho como roteirista. Já integrou equipes de autores de novelas e atualmente é um dos roteiristas da série Pais de primeira, da Globo, que trata das descobertas e desventuras da maternidade e da paternidade. “É exatamente o que eu faria, mesmo se tivesse bilhões na conta e não precisasse ganhar dinheiro algum”, diz, resumindo seu contentamento criativo com a ficção.

Na vida real, a paternidade também mudou a vida de Prata, pai de Olivia e Daniel. A vivência inspirou livros que as crianças adoram, como Jacaré, não! e o recém-lançado A menina que morava no chuveiro, ambos da Ubu Editora e lindamente ilustrados por Talita Hoffmann. “Originalmente, na primeira versão da história, a menina realmente morava no chuveiro, mas quando li para os meus filhos eles ficaram apavorados, com medo de que a menina nunca mais visse os amigos ou fosse para escola ou para a festa junina. Ai eu entendi, com a ajuda deles, que aquela menina era uma psicopata, e não uma iconoclasta, e reescrevi o livro de tal maneira que se transformou num diálogo da garota com o pai”, diz Prata, que publicou Meio intelectual, meio de esquerda (2010), pela Editora 34, e Nu, de botas (2013) e Trinta e poucos (2016) pela Companhia da Letras, entre outros livros. Leia a entrevista do escritor.

Vila Cultural. Gosta de entrevistas?
Antonio Prata. Fico muito tranquilo porque sempre é sobre um assunto que eu entendo, o meu trabalho. Em situações, por exemplo, que você tem que decorar um texto para apresentar no palco, fico mais nervoso. Se tivesse que falar sobre física quântica estaria desesperado. Mas pra falar de livros e das coisas que eu faço, é tranquilo.

VC. O que pensa sobre esse interesse pelo que o escritor tem a dizer?
AP. É uma questão um pouco paradoxal que se dá com profissionais de todas as áreas, não apenas com o escritor. Me parece que tem a ver com as redes sociais, porque todo mundo virou relações públicas e diretor de marketing de si próprio. O médico é uma estrela. O jornalista é uma estrela. O engenheiro é uma estrela. Porque todo mundo se vende dessa maneira. Há outro fenômeno, que é positivo, mas que também tem esse efeito colateral, que vem com as feiras literárias. Me lembro da escritora espanhola Rosa Montero contando, na Flip [Festa Literária Internacional de Paraty], que virou escritora justamente por não saber lidar bem socialmente. Tímida e atrapalhada, ela preferia se fechar no quarto, e escrevia. Como escritora, precisou aprender a ser uma estrela dos palcos, a falar coisas engraçadas para grandes públicos.

VC. Você é bom de palco?
AP. Modéstia à parte, sou desenvolto. Trabalho com humor e costumo me dar bem nesse tipo de situação. Para mim, é fácil. Há quem sofra com isso. Mas acho que isso é uma coisa menor, não me parece que seja um grande problema. Não acho que a literatura esteja sendo contaminada por isso. É um ruidinho apenas. Os bons escritores vão encontrar o seu público, com ou sem feiras literárias, que são maravilhosas. Tem um outro lado importante que é desmistificar o escritor como o ermitão, o estranho, o alcóolatra, o louco. E isso é bom. Isso aproxima as pessoas da literatura porque há inclusive autores que usam esses eventos para vender essas imagens de abençoados, perturbados, santos.

VC. Acontece com você?
AP. Eu tenho uma vantagem por escrever crônicas, que é um gênero muito colado ao autor. É diferente do romancista, que pode ter protagonistas como um serial killer, uma nuvem, um pé-de-meia, que não tem nada a ver com eles no sentido mais óbvio. Escrevo narrativas em primeira pessoa e falo de coisas que se parecem com as que acontecem na minha vida. Então, quando falo com o público, ele já tem conhecimento de quem eu sou. Claro que o narrador da crônica não sou exatamente eu e o que acontece na crônica na maioria das vezes não aconteceu comigo. Considero crônica um gênero de ficção e sempre bato nessa tecla. Se digo “eu fui à padaria” não significa que eu tenha ido à padaria. Não. Eu estava em casa escrevendo uma crônica em que o narrador foi à padaria. Mas é próximo de mim.

VC. Como se reconhece como autor?
AP. Isso vai mudando ao longo do tempo. Durante um período, eu tinha uma vida dupla de escritor. Havia trabalhos que me pagavam as contas e de que geralmente eu não gostava. E um trabalho que eu chamava de pessoal, que só fazia porque havia o dinheiro que eu ganhava com a outra tarefa. Dizia que eu era um Robin Hood de mim mesmo. Roubava do Antonio rico para sustentar o Antonio pobre. Fiz seis livros assim, ou seja, com o tempo que me sobrava. Ao começar a escrever roteiros, a coisa começou a se aproximar e o lugar em que eu ganhava dinheiro começou a ficar divertido também. É algo de que eu gosto muito. Adoro ficar tendo ideias. Ontem mesmo, antes de dormir, fiz umas anotações com ideias para uma peça. Há sempre um monte de ideias – de livros, crônicas, histórias infantis – lutando por espaço. A vida me levou para essa fusão. O meu caminho na literatura sempre foi tentar executar as ideias que eu tinha vontade de realizar e aceitar qualquer coisa que pagasse as contas.

VC. Ser de uma família de escritores ajuda ou atrapalha?
AP. Acho que só me favorece. Primeiro porque soube desde muito cedo que a escrita era um caminho. Muitas vezes me perguntam como eu me descobri escritor. Como se isso fosse uma libertação de algo, como se significasse sair do armário. Como se eu fosse médico, engenheiro, alguma coisa em que, antes, me colocasse em um caminho errado. E tinha essa coisa um pouco envergonhada de que não é uma profissão. Daí, publiquei um livro e vi que era. No meu caso, quando ainda era bem pequeno, via meu pai, sempre lá, com a maquininha de escrever, vivendo disso. Sempre com pilhas de papel do lado. E tinha comida na mesa, roupa no corpo. Via que era possível viver disso. Ter essa porta aberta facilitou muitíssimo. As pessoas já estavam de olho. Os jornalistas, os editores. Já os conhecia e isso foi um grande atalho. Claro que tinha um lado ruim também que era uma desconfiança, “a desconfiança do herdeiro”, tipo “ele não é tão bom e só está aí porque é filho do outro, da outra e tal”. Mas isso passou muito rápido. Eu já gostava do que escrevia e tinha segurança com o que escrevia.

VC. Do ponto de vista criativo, o que você aprendeu com a experiência da paternidade?
AP. Primeiro, algo bem básico, que é escrever nas condições mais adversas que você pode imaginar. Se antes eu falava que precisava de um lugar silencioso, de muitas horas isolado no escritório, sem qualquer interferência, agora já entendi que preciso só de uma mão livre e um papel ou um guardanapo… para anotar enquanto estou, ao mesmo tempo, trocando uma fralda.

VC. Mas consegue escrever nessas condições?
AP. Quando a Olivia, a minha primeira filha, nasceu, eu comecei a escrever muito sobre isso e me perguntaram se eu estava escolhendo essa realidade. E a questão não era de escolha. Era de só ter aquela realidade. De ficar três meses sem sair de casa. Depois você volta ao mundo, mas esse, o da paternidade e das crianças, também é um mundo fascinante, cômico, desesperador, cheio de assuntos relacionados com as outras pessoas porque se você não tem filho, pelo menos foi filho ou conhece filhos dos outros. É um assunto universal, muito rico.

VC. Você também estreou com elogios na literatura infantojuvenil depois de ser pai…
AP. Foi a minha primeira produção com focus group, com pesquisa de mercado. Porque estou lidando cotidianamente com as crianças. A graça de Jacaré, não! é que eu faço uma enumeração e insiro um item exterior e estranho à enumeração. Na comida, tem arroz, feijão, carne, salada e tem… jacaré. E a criança ri. Isso eu aprendi brincando com a minha filha, observando onde nascia o humor, que vem da estranheza. O humor também é essa reversão de expectativa. Você cria um ambiente em que sugere que “virão bonecas” e cria um choque com cabide, um jacaré. E A menina que morava no chuveiro também é isso. É sobre a dificuldade de tirar a criança do banho, ou melhor, de qualquer atividade. Ela está brincando e você precisa fazer com ela coma ou vá para a escola. A criança quer sempre continuar ali, no mundinho dela.

VC. É mais desafiador ou recompensador escrever para crianças?
AP. É a mesma coisa. O prazer é maior com a recepção do trabalho. Porque quando uma criança vem falar que gostou do livro ou a própria mãe fala e o olho da criança brilha, você sabe que aquilo é de verdade. Porque adulto mente, criança não. Nessa idade eles não sabem mentir. Recebo comentários de pais que dizem que a primeira vez que o filho gargalhou com um livro foi com Jacaré, ou que o livro estava despedaçado de tanto ler. Isso é muito legal. Mas a escrita é igual.

VC. Como entendeu que o bom texto depende do tempo dedicado a ele?
AP. É da natureza do trabalho. Eu não imagino que um engenheiro calculista faça muitas contas erradas até chegar na exatidão da espessura do pilar de uma ponte. Imagino que ele já deva saber os ingredientes daquelas equações e saiba colocar os dados corretos. A escrita não funciona assim. Você começa a fazer uma ponte que você acha que é uma ponte e, no meio do processo, descobre que aquilo não é uma ponte. É um castelo. E continua fazendo um castelo para descobrir que é um transatlântico e voltar para a ponte. Por isso, o tempo é tão necessário para essas descobertas. Alguém já disse que o primeiro rascunho de qualquer coisa é uma porcaria. Há um decálogo de uma roteirista da Pixar que diz que você só sabe a história que está contando quando escreve “the end”. Aí, você volta para o começo e reescreve a história inteirinha. Escrita tem a ver com isso. Não é só o tempo para você polir as frases, não repetir palavras. É o tempo de descoberta, de elaboração do tema e de melhorar o texto, ir reduzindo. É impressionante como você vai reduzindo quando tem tempo. E entende o quão pouco precisa dizer.

VC. Dá para fazer desse limão, a falta de tempo, uma limonada, em tarefas como a coluna dominical na Folha de S. Paulo?
AP. Eu diria que eu amargo muito antes. E que sempre seria melhor com mais tempo. O que eu tento fazer é ocupar os espaços. Idealmente, a crônica precisa, no mínimo, de dois períodos de trabalho. O melhor é no primeiro momento já ter uma primeira versão e no segundo ficar só ajustando, melhorando. Nem sempre isso é possível.

VC. Você se sente pressionado a ser engraçado?
AP. A condição cômica é um pouco trágica e isso não é um trocadilho barato. Outro dia eu estava lendo a entrevista de um humorista e ele falou que o comediante é alguém que tem tanto, mas tanto medo do ridículo que antes que o outro veja o ridículo nele, ele mesmo mostra. É quase alguém que se suicida por medo de morrer, que se despe por medo que o vejam nu. É uma coisa um pouco paradoxal. O cômico é o oposto do herói. Diante do problema gigante, o herói cresce e vence. O comediante é alguém que diante do problema minúsculo tropeça, falha. Mas faz isso com graça. Então é uma derrota e uma vitória ao mesmo tempo. Um ressentimento não ressentido. É um escudo que não protege. Só consigo pensar em contradições.

VC. O humor é um propósito no seu texto?
AP. Não é uma questão profissional. É um modo de ser. Ninguém é comediante no texto sem ter essa ferramenta na maneira de ser. Mesmo que a pessoa seja muito tímida e não expresse esse humor socialmente, isso, a piada, a graça, está dentro dela. Uma coisa que sempre friso é que o humor não é bom humor. Geralmente é mau humor. Ninguém faz humor porque acha a vida leve, fácil. É o contrário. Você faz humor diante da dificuldade, da adversidade. O humor é uma maneira de olhar. O trágico e o cômico lidam com o mesmo material. Não é que o trágico esteja olhando para a morte e para as coisas difíceis da vida e o comediante veja o passarinho assoviando. Humor é olhar para o que é trágico e tentar dar essa cambalhota, sem a pretensão de vencer, mas zombando daquilo que não se pode vencer. É bobo da corte. Está ali fazendo piada, ridicularizando, mas ele é o bobo. Ele não está vencendo o rei, os nobres. Ele é mais fraco. É um poder que vem da fraqueza e da consciência da fraqueza.

VC. O Brasil trágico de 2019 é uma fonte inesgotável de humor então…
AP. Às vezes a tristeza solapa a possibilidade do humor. É muito pesado. Há uma parte enorme do nosso estado psíquico e mental que tem muito a ver com o centro da nossa vida: “Estou fazendo um trabalho que eu gosto, sou casado com a mulher que eu amo, meus filhos são saudáveis”. Mas não é só isso. Tem a ver com o clima, a atmosfera geral. E pensei nisso porque estava vendo fotos dos meus amigos no show do Paul McCartney e aquilo me deu uma felicidade tão grande. Eram fotos com os pais, com os filhos, gerações compartilhando um pouco de Beatles, e isso é uma coisa que espalha felicidade. E estamos vivendo um tempo em que há tanta, tanta coisa que espalha tristeza. Você pega o jornal e entende que estão acabando com o Ibama para derrubar a Amazônia, excluindo a população LGBT dos Direitos Humanos, acabando com a educação e com a cultura, comemorando a ditadura. Estão rindo dos mortos. Nunca torturou-se tanto, nunca a polícia matou tanto. É um incontínuo de tragédias e tragédias. Sou um privilegiado: homem, branco, heterossexual. Não posso reclamar porque não estou na favela levando tiros, não sou eu que estou morrendo, mas tem esse sentimento de ver tudo desmilinguir numa velocidade e numa intensidade que assustam. De repente, você se pega triste e ansioso e não sabe exatamente o que é. É tudo isso. Parece haver uma força escura e é muito difícil escrever crônicas neste ambiente, porque a crônica, da forma como Rubem Braga criou – porque ele é o grande mestre –, é justamente o contrário. É ver a beleza da coisa pequenininha. É a foto do Instagram no show do Paul McCartney.

VC. Como lida com isso?
AP. Às vezes você consegue enxergar essa pequena beleza, a pequena epifania. E às vezes soa muito irresponsável você falar disso naquele momento. Na Folha, por exemplo, eu escrevo no caderno Cotidiano. Estoura a barragem de Brumadinho, tem 300 pessoas soterradas e vou falar de um almoço de domingo, na casa de um amigo, em que eu comi um bacalhau delicioso? Parece uma Maria Antonieta brindando em Versalhes quando o mundo se corrói… Já escrevi umas cinco crônicas falando sobre isso, dizendo que eu gostaria de falar da borboleta, mas morreram centenas de pessoas. Por outro lado, se eu for falar de Brumadinho, eu não vou fazer crônica. Não é sobre isso o meu trabalho. E às vezes eu me explico. De repente, o bombeiro que está lá, cinco dias na lama, vai pegar o jornal e conseguir rir com um texto meu. Esse é o trabalho cívico que posso fazer. Fazer com essas pessoas que estão ferradas deem uma risada. Mas é bem difícil fazer crônicas neste momento.

VC. Você está satisfeito com sua trajetória até aqui?
AP. Eu sou feliz a maior do tempo e muito grato por trabalhar com o que eu gosto, o que é um privilégio de uma parcela minúscula da população. E gosto de fazer o que eu gosto. Agradeço muito por isso. Mas eu sou um pouco infeliz também porque sempre tenho a sensação de frustração, de que eu não estou conseguindo fazer todas as coisas que eu gostaria de fazer. Aos 40 anos, você já tem um pouco mais de conhecimento de causa e sabe o seu tamanho. Daí, a frustração. Na crônica, não serei o Rubem Braga. E no roteiro, eu não serei o Billy Wilder. Tem uma certa aceitação das suas fragilidades, o que é um pouco melancólico também. Quando se é jovem, você escreve qualquer coisa e diz que é muito, muito melhor que Shakespeare. Aos 40, você diz: “Bem…” Acho que é um pouco isso o que sinto agora: aceitação e tentativa de ir mais longe.