O começo de tudo
Lançado há 80 anos, em 1937, o filme Branca de Neve e os Sete Anões marca o nascimento do império de Walt Disney, indica o futuro do cinema de animação e agrega cores, sons e valores à cultura pop mundial
Publicado na Revista Vila Cultural 161 (setembro/2017)
Por Rafael Menezes
A animação é um gênero “anterior” ao cinema porque as primeiras experiências com imagens em movimento usavam ilustrações, não fotografias. Um dos primeiros aparelhos a apresentar este “conceito” foi o praxinoscope, do francês Emile Reynaud, em 1877, muito antes dos também franceses irmãos Lumière estrearem o cinematógrafo, uma evolução natural das investigações tecnológicas a respeito da ilusão óptica que culminaria no nascimento do cinema em 1895.
O praxinoscope foi o precursor dos curtas-metragens de animação, utilizando o recurso de girar 12 quadros em alta velocidade para criar a ilusão de movimento das imagens. Este foi o primeiro passo para evoluir para uma máquina mais ousada, o théâtre optique, que também utilizaria projeção como base para criar obras de até 15 minutos, com 1500 imagens desenhadas. A primeira exibição entrou para a história com a série Pauvre Pierrot, Un bon bock e Le Clown et ses chiens, exibidas em 28 de outubro de 1892, data que garante até hoje um Dia Internacional da Animação. Muitas outras obras animadas apareceriam com outros artistas na passagem do século, porém, após o feito de Reynaud, o próximo marco viria somente duas décadas depois, em 1908, com Fantasmagorie de Émile Cohl. Com pouco mais de um minuto, o “curta” moldou, pela técnica e pelo uso do cinematógrafo, o que denominamos como animação.
Na época em que Fantasmagorie era exibido, o cinema era um bebê engatinhando em sua própria linguagem. Era um tempo em que não se podia nem filmar pessoas sem mostrar todo o corpo, como no teatro. Nesta época, Walt Disney era uma criança sonhadora do estado americano de Missouri, na região centro-oeste do país. E se hoje crianças do mundo todo crescem com uma exposição maciça ao legado do cineasta, no começo do século 20 a existência de uma indústria voltada ao público infantil não era nem sonhada. Trabalhos na fazenda na infância, um pai severo que o castigava por qualquer coisa e a condução de uma ambulância da Cruz Vermelha na adolescência foram alguns episódios de um começo de vida difícil para o futuro cineasta que criaria outro marco histórico da animação: o primeiro longa-metragem de animação, sonoro e em cores, com Branca de Neve e os Sete Anões, que faz 80 anos em 2017.
O filme, lançado em 1937, demorou três anos para ficar pronto e foi criticado à época de seu lançamento como “loucura de Disney”. Ninguém acreditava que um filme animado poderia ser feito ou se transformar em sucesso comercial. Novidades como o uso de sons e cores e a grande tela ainda eram motivos de desconfiança entre críticos assim como a ideia de que um filme totalmente animado era uma ousadia financeira. O filme custou US$ 250 mil, uma fortuna para a época. Havia ainda uma discussão estética pois os curtas-metragens de animação eram pequenas comédias com “valor cultural” abaixo de outros movimentos cinematográficos da época.
No começo, a carreira de Walt foi totalmente focada em curtas. Antes de sua mais ousada empreitada, ele já tinha feito nome em Hollywood, criando uma junção de animação e pessoas reais na série Alice, de 1923, que trouxe os primeiros reconhecimentos, e criando, em 1927, um personagem extremante popular: Oswaldo, o coelho sortudo. Posteriormente, uma revisão de contratos de propriedade intelectual o fez abrir mão de suas criações, que não duraram sem a mão criativa de Disney. Como há males que vêm para o bem, ao se desvincular de suas primeiras criações o desenhista colocou sua imaginação criativa para funcionar e, com a ajuda do também desenhista Ub Iwerks criou um personagem que lembrava um pouco os traços de Oswald, mas se tornou muito maior que qualquer outra criação da época e hoje é a cara da Disney Company: Mickey Mouse.
Mickey e sua namorada Minnie estrearam em 1928 em Plane crazy, que basicamente define a produção artística da época quando falamos de curtas, com humor ácido, aliado a uma ambientação e personagens que flertam com o nonsense. Essa descrição pode levar a pensar mais em Gato Félix do que no rato mais famoso dos desenhos (desculpe Jerry, mas não dá para competir), mas é certo lembrar que o personagem de Disney era nada menos que um concorrente do Félix, de Otto Messmer, entre os anos 1920 e 1930, e essa era a dinâmica e o tom usual dos cartoons da época. Portanto, não é de se estranhar que quando Walt Disney anunciou que faria um filme de 1h30 as pessoas estranharam. Como aguentar mais 1h25 dos desenhos cômicos do Mickey? Nem mesmo o irmão e sócio, Roy Disney, acreditava no projeto. Apesar dos contratempos, três anos e meio depois do anúncio o projeto Branca de Neve estreava no final 1937, quebrando todos os recordes de bilheteria.
Disney criou uma maravilha técnica para época. Não reproduziu o tom dos curtas surreais e se concentrou na reinterpretação do conto dos irmãos Grimm, mudando bastante o original e incluindo o seu final. Até certo ponto era bem mais “pé no chão” tanto para a estética dos desenhos quanto para a história original, na qual Branca de Neve basicamente só engasga com a maçã e um solavanco na carruagem a faz cuspir o caroço, salvando-a (?!) imediatamente. O filme consolidou uma estética que seria reutilizada pelas obras de animação posteriores, incluindo a característica intrinsicamente musical dos filmes do estúdio. Sucesso de crítica e público, foi o filme colorido mais assistido por um breve período até ser superado pelo também eterno clássico E o vento levou, de Victor Fleming.
O lucro obtido levou à construção do estúdio de animação que é o coração da companhia até hoje, e também à produção de novos longa-metragens ainda mais instigantes. Dessa safra temos o levemente surreal Pinóquio, e a experiência estética-musical de Fantasia em 1940, que ainda hoje é uma obra ímpar na história do cinema. Há também o emocionante e dramático Bambi, de 1942. O sucesso financeiro fez o estúdio sobreviver à Segunda Guerra, no período em que atuou ativamente produzindo curtas antinazistas como Der fuehrer’s face e Education for death. Os grandes filmes só voltariam em 1950, com mais um conto de fadas adaptado à tela grande: Cinderela, que também é uma celebração da estética criada em 1937 desenvolvendo a ideia das “princesas Disney”.
Branca de Neve é o nascimento “oficial” da animação tradicional no cinema americano e mundial. O filme foi extremamente influente em toda a história da animação que o sucedeu. Muitos consideram ser o primeiro longa-metragem, mas essas classificações dificilmente são unânimes do ponto de vista histórico. Há controvérsias, por exemplo, sobre o primeiro filme animado com uma duração que permite considerá-lo um longa quando se fala na realização do argentino El Apóstol, de Quirino Cristiani, em 1917. Este, porém, hoje, é um filme “perdido”, cuja influência nem é tão representativa se comparada a do clássico de Disney.
Branca de Neve foi um filme decisivo para o desenvolvimento do cinema e da Disney, além de consolidar a animação como uma forma de arte direcionada para crianças. Antes disso, um cartoon não era necessariamente voltado para o público infantil, como Félix e Betty Boop podem atestar.
Hoje uma empresa com sede em vários países e com atuação determinante e influente na cultura pop mundial, a Disney também é dona e/ou parceira de marcas como a Marvel Studios e a Lucasfilm. No cinema, sua atuação é fundamental para a animação mundial, especialmente quando o assunto é computação gráfica, em uma duradoura parceria com a Pixar desde os anos 1990, e que recentemente rendeu mais um clássico Disney: o belo e inteligente Divertida Mente. A empresa de Walt ainda revisita e atualiza seus clássicos em forma de filmes live-action, seja com a inversão total de história em Malévola ou a simples atualização da narrativa para a modernidade com O livro da selva. O futuro aponta para mais reinterpretações com O Rei Leão e Dumbo vindo por aí, e a expansão do universo Star Wars e do MCU, além de vários livros e séries que expandem esses universos.
Walt Disney morreu aos 65 anos devido a complicações de um câncer de pulmão. Anos antes, criou, em 1961, a primeira faculdade de artes visuais, a Califórnia Institute of the Arts, e o conceito de parque de diversões temático com a Disneylândia. Porém, seu maior legado é a empresa que, com o nome do criador, marca presença na vida contemporânea ao criar cada vez mais ícones para um mundo pop e inventar fantasias das mais incríveis para crianças de todas as idades, desde as muito pequenas até as de 30, 80, 90 anos.