A poeta Alice Ruiz prepara Isso menina não faz, livro com ensaios sobre a mulher que ela escreveu nos anos de 1970
*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 189 (Janeiro/2020)
A poeta, letrista e tradutora Alice Ruiz, presença confirmada no Navegar é Preciso, projeto da Livraria da Vila e da Auroraeco que acontece em abril com uma viagem pela Amazônia (leia mais aqui), publicou, na década de 1970, na imprensa de Curitiba, onde vivia, vários ensaios e artigos sobre
a mulher.
Com sua visão sensível, perspicaz e intensa da experiência feminista em um tempo histórico transformador no Brasil e no mundo, Alice nunca quis voltar aos textos escritos naquela época e resistia à ideia de sua filha caçula, Estrela, também escritora, de publicá-los em livro. “Temia que tivesse muita coisa datada ali”, lembra Alice, que perdeu o medo, mudou de ideia e finalmente deu OK para a publicação do material em 2020. É uma notícia e tanto para os admiradores do trabalho e da trajetória
da escritora.
O título do livro, a exemplo do que sempre acontece na obra da poeta, antecipa uma provocação: Isso menina não faz. Ainda sem data confirmada de lançamento, trata-se de mais um registro para olhar historicamente, sob outras perspectivas, o feminismo no Brasil, além de disponibilizar a prosa de uma artista que tem dedicado a vida e a obra aos versos.
Durante duas décadas Alice foi casada com o poeta Paulo Leminski (1944-1989). Junto com o parceiro da vida pessoal e do trabalho, especializou-se em haicais, os poemas de origem japonesa marcados pela concisão e objetividade – normalmente com três versos em algumas
poucas sílabas.
No texto Sobrevida, que ela escreveu para a biografia Paulo Leminski – Vida, publicada originalmente pela editora Sulina em 1990 e relançada pela Companhia da Letras em 2013, Alice cita John Lennon e James Joyce entre outros heróis de Leminski, enquanto lembra o seguinte: “Às meninas restava inventar suas próprias heroínas ou, quem sabe, sonhar encontrar um homem que encarnasse as qualidades deste ou daquele personagem. No imaginário da minha infância, não consigo lembrar-me de nenhum herói que tivesse tanta poesia, tanta radicalidade, tanto amor, tanto humor e, principalmente, tanta generosidade intelectual como esse Paulo Leminski, que encontrei um dia e com quem compartilhei vinte anos”.
Alice, que comemora 74 anos no dia 22 de janeiro, já publicou mais de duas dezenas de livros ao longo de sua carreira. Em 1989, quando trocou Curitiba por São Paulo, ganhou pela primeira vez o Prêmio Jabuti pelo livro Vice-Versos (Brasiliense). A escritora tem poemas traduzidos e publicados em antologias em diversos países. Na música, já fez parcerias das mais produtivas, algumas muito ilustres, com nomes como Itamar Assumpção (1949-2003), José Miguel Wisnik, Paulo Tatit e Arnaldo Antunes.
Antes da publicação de seu primeiro livro, Navalhanaliga (Edição Zap), em 1980, Alice já havia editado revistas e feito roteiros de histórias em quadrinhos e escrito os textos feministas que estarão no novo livro. Duas décadas depois de guardar o primeiro Jabuti na estante, voltou a receber o prêmio em 2009, pelo livro Dois em um (Iluminuras).
No poema Noite e dia, do livro Luminares (Castelinho Edições), de 2012, Alice escreve lindamente assim: “Não me agradam/ essas coisas que despertam/barulho, susto, água fria/tudo na minha cara/mais nenhum sonho por perto/não me agradam/essas coisas que adormecem/vazio, escuro, calmaria/tudo que lembra morte/quando nada mais dá certo/não me agradam essas coisas sem poesia/uma noite só noite/um dia só dia.”
Entre as criações mais admiradas e conhecidas da poeta e letrista está a música Socorro, que Alice escreveu em 1986 e ganhou uma versão definitiva e memorável na voz de Cássia Eller (1962-2001). A potência da letra reverbera atualíssima como trilha sonora de um mundo e uma época que às vezes paralisam: “Em tantos sentimentos/ Deve ter algum que sirva/ Socorro, alguma rua que me dê sentido/ Em qualquer cruzamento, acostamento, encruzilhada/ Socorro, eu já não sinto nada”.
“O Sartre diz que a tristeza não é um sentimento verdadeiro. O sentimento verdadeiro é a raiva, mas, como a raiva não é socialmente aceita, a gente civilizadamente baixa o tônus afetivo para controlar a raiva. Vai baixando e ficando uma coisa que a gente chama de tristeza. Mas, às vezes, a dor é tanta, e você tem que baixar a tal ponto a raiva, que você para de sentir. Isso efetivamente acontece. Aconteceu comigo. Eu tinha lido O ser e o nada. Não que eu tenha lembrado disso na hora de escrever Socorro, mas depois falei: ‘Essa música é sobre esse pensamento do Sartre’. Isso foi um coisa que efetivamente aconteceu comigo. Foi um momento de muita dor na minha vida. Fiquei afásica, apática”, disse Alice, em 2018, num depoimento ao projeto Um escritor na Biblioteca reproduzido pelo jornal Cândido, da Biblioteca Pública do Paraná. “E aí me veio essa coisa do ‘socorro, não estou sentindo nada’. Freud diz que o humor é a vitória do ego sobre o princípio da realidade. Acho que a arte também. A gente escreve tanto sobre o sentir e, de repente, escreve sobre o não sentir. Aí veio o resto da letra (…). Não escrevi com habilidade, escrevi com as vísceras. Quando a gente é visceral, acho que vai mais longe”, declarou Alice, que concedeu a seguinte entrevista à
Vila Cultural:
Vila Cultural. Você gosta de entrevistas?
Alice Ruiz. Não. Às vezes tenho a impressão de que fico me repetindo sempre, até mesmo em função das perguntas. Mas entendo perfeitamente, porque as questões são sobre o que faço e o que faço é algo que se repete há anos. Então é meio óbvio que as perguntas e as respostas se repitam. Dessa parte eu não gosto.
VC. Como tem observado o Brasil e o mundo neste momento?
AR. Estou tendo que redescobrir muitas coisas. Lembro-me que na ditatura anterior eu e muitos artistas tivemos que descobrir como se escrevia nas entrelinhas, como dizer sem dizer diretamente. Agora isso ainda não acontece, mas há no ar uma ameaça ao pensamento livre. Por um lado, também há uma urgência de produzir mais, de escrever mais, quase como uma estratégia de resistência. Não só como autodefesa, mas em defesa da cultura, das artes, da educação, porque sabemos que elas estão ameaçadas. Daí essa urgência de produção.
VC. Em 2016, você disse que não tinha vontade de produzir por causa do risco de retrocessos.
AR. Ainda estava sob o efeito do choque. Não só do que estava acontecendo, mas porque dava para saber o que se anunciava. Aquele foi um período agudo das más notícias, e agora nós estamos no estágio crônico e o mal já se estabeleceu. É um segundo momento. Naquele instante, já estava profundamente atenta às questões políticas e sociais para entender se havia realmente uma esperança de melhorar nossa situação. Me descolei um pouco desse lado da produção, da inspiração. Fiquei muito objetiva. Agora não. Três anos depois, com o mal estabelecido, nos resta lutar.
VC. O fato de ter vivido os anos de 1960 dá mais “repertório” para viver agora?
AR. Não sei como é para quem não tem essa experiência, essa vivência, e precisa lidar com tudo isso como uma novidade. Para mim, não é assim. Ao mesmo tempo, há muitas diferenças. E há a grande diferença que é o domínio das redes sociais, que não existiam antes. As informações não chegavam na mesma velocidade, o que é um dado positivo. Não existiam, porém, as possibilidades de ampliar tanto alguns aspectos. As fake news, por exemplo: elas sempre existiram. O que acontece é que agora elas têm uma expansão enorme, avassaladora. Por um bom tempo sempre achei que era a mídia – que, de fato, estava a serviço do golpe de 1964 – que, de novo, estava a serviço deste golpe mais recente. Agora parece que parte dela começa a tentar recuar um pouco porque viu a porcaria que fez. Muito por questões relacionadas à economia. Não porque a grande mídia esteja preocupada com as questões éticas ou com o povo. Mas, além disso, nós temos as redes sociais que ampliam tanto a verdade quanto a mentira em um grau inimaginável anteriormente. Então, é uma coisa nova e a minha estratégia de cinquenta anos atrás não serve mais.
VC. Tem uma estratégia?
AR. Não tenho outra senão criar. E eu me lembro, por exemplo, que quando Gil e Caetano, que representavam o que havia de melhor e mais novo da MPB, foram exilados, eles foram substituídos pelos Novos Baianos. Não exatamente substituídos, mas representados por pessoas que ocuparam temporariamente esse papel de segurar a alegria, a esperança do povo, de segurar o amor, não no sentido romântico-erótico, mas no sentido de estar amorosamente no mundo, de responder ao ódio com amor. Não é fácil. Mas eles fizeram esse papel e eu acho que é esse o papel do artista sempre. Então, onde houver ódio eu vou semear o amor com a minha arte. É essa a minha estratégia.
VC. Poesia é um ato de amor?
AR. A poesia é espaço de respiro e de questionamento também, no sentido de trazer novas perspectivas e não ficar masturbatoriamente se referindo, na arte, ao horror que estamos vivendo. Porque isso é uma coisa de má consciência, a famosa mauvaise conscience: você acalmar a você mesmo falando publicamente para pessoas que pensam a mesma coisa que você. É masturbatório. Não é eficaz nem produtivo.
VC. Como ter boas parcerias na arte?
AR. Talvez sendo uma boa parceira. O bom parceiro é sempre aquela pessoa que tem afinidades com o seu projeto estético. Se você tem um compromisso com o novo, bom parceiro, boa parceira será quem tem também na sua arte um compromisso com o novo. Se você tem o compromisso com o já conhecido, com o mais digerível, aí seu bom parceiro será alguém que também tenha esses compromissos. Os meus parceiros, todos, assim como eu, têm compromisso com o novo, com a ruptura. Eu acho que a gente vai se encontrando pelo caminho. Há situações que vão nos colocando frente a frente, nos espaços, porque estamos pensando juntos. Porque estamos indo ver as mesmas exposições, assistindo os mesmos espetáculos, voltados para as mesmas energias, que nos puxam e provocam o encontro.
VC. Como observa a “nova onda feminista”?
AR. Há várias ondas acontecendo. Por um lado, é possível perceber que avançamos muito e a cada uma dessas ondas realmente conseguimos avançar mais, mesmo em um momento que várias conquistas da onda anterior estejam em perigo, correndo riscos. Eu vejo claramente isso no comportamento das pessoas, inclusive das feministas atuais. Por outro lado, falta um pouquinho – e não estou falando de todas, mas de algumas correntes, já que nunca vi tantos feminismos como agora – de noção histórica. Observo muitas descobrindo coisas que já havíamos descoberto há cinquenta anos. Mas há um avanço inegável.
VC. Como será o livro de ensaios?
AR. Nos anos de 1970, escrevi vários ensaios sobre a mulher e publiquei na imprensa curitibana, entre revistas e jornais. A minha filha mais nova, Estrela, que é escritora também, me disse mais de uma vez que gostaria de ver essa produção reunida em livro. Sempre argumentava com ela que temia que muita coisa estivesse datada. Pois bem, eu não temo mais. Esse livro vai acontecer. E já tem até um título: Isso menina não faz.
VC. O que pensa sobre a homenagem a Elizabeth Bishop na Flip?
AR. Nesse momento, é uma escolha que reforça a subserviência do governo atual aos Estados Unidos e a admiração pela ditatura, que ela sempre deixou claro. Não é uma discussão sobre o mérito ou o talento dela como poeta. Isso para mim está fora de questão. O que eu acho lamentável é esse reforço à admiração pela ditadura e pelo império norte-americano. É o que esta escolha significa em um país que está cheio de grandes escritores e grandes escritoras que não ainda não foram homenageados pela Flip. Pela primeira vez, a pessoa homenageada não escrevia em português, não escrevia na nossa língua. E é justamente uma estrangeira que é representante dos imperadores do mundo e desse governo atual. Acho lamentável. Reforço que não tem nada a ver com a arte dela, algo que não está em questão. O que está em questão é a escolha do nome dela neste momento. É quase como um referendar o lugar da subserviência nacional.
VC. A que atribui a potência e alcance da música Socorro?
AR. É muito visceral, é muito verdadeiro. Saiu de um lugar muito profundo. Não que as outras letras que eu fiz não sejam verdadeiras, mas, efetivamente, quando a gente sofre muito, chega-se em um grau de insuportabilidade da dor que é como se tivéssemos anestesiados. Todas as pessoas conhecem isso em maior ou menor grau. Ter conseguido falar disso revela essa universalidade. É uma letra que conversa com todo mundo. Acho que o grande sonho do poeta é poder dar sentimentos, pensamentos que não são facilmente dizíveis para o maior número de pessoas possível. E neste caso específico eu acho que consegui.
VC. Quais as suas expectativas com o Navegar é Preciso?
AR. Não sou uma pessoa muito chegada a expectativas. Não projeto muito. Mas a mera possibilidade de estar trocando, compartilhando com outras pessoas que têm os mesmos interesses que eu numa experiência inovadora para mim só pode ser legal. Mesmo que não seja. Mesmo que o crocodilo nos persiga, mesmo que nem tudo sejam flores, ainda assim não tem como não ser bom.
VC. Como chegar tão bem aos 70 e poucos anos?
AR. Aceite os desafios, esteja sempre aberto para o novo e sempre disposto a começar alguma coisa.