Além de mobilizar o mundo por causa da Copa da Rússia, o esporte predileto dos brasileiros também inspira ótimas leituras
“Quando parava, os adversários se perdiam nos labirintos que suas pernas desenhavam. Quando saltava, subia no ar como se o ar fosse uma escada. Quando cobrava uma falta, os adversários que formavam a barreira queriam ficar de costas, de cara para a meta, para não perder o golaço”, escreve, no livro Futebol ao sol e à sombra (L&PM), o jornalista, escritor e pensador uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015), autor do clássico As veias abertas da América Latina, descrevendo a performance de Pelé, o rei do futebol, em jogos que mesmo antes da vida digital e da comunicação online já mereciam atenção mundial. Inspirado e preciso, Galeano é só um exemplo de como o esporte preferido dos brasileiros gera ideias e textos tão fascinantes quanto as melhores partidas. Com o início da Copa da Rússia este mês, depois de quatro anos da última edição do campeonato que é o ápice do esporte – e que aconteceu no Brasil, em 2014 –, descobrir boas leituras sobre futebol pode ser uma jogada e tanto.
Há livros para todos os gostos, o que inclui desde argumentos sociológicos, para entender a dinâmica do futebol com mais razão e menos emoção (se é que isso é possível), até criações literárias em que o futebol é quase um personagem como no premiado O drible, de Sérgio Rodrigues. Tão interessante quanto a leitura é tentar observar, afinal, qual é a relação, no Brasil, do futebol com os livros nas reflexões sobre o esporte – e vice-versa. De forma brilhante, a questão aparece no texto intitulado Preliminares, no excelente Veneno remédio – O futebol e o Brasil (Companhia das Letras), de José Miguel Wisnik. “(…) No limite, a onipresença do jogo de bola soa abusiva e irrelevante para quem acompanha a discussão cultural. Assim, mais do que um desconhecimento recíproco entre as partes, pode-se falar, de fato, de uma dupla resistência. Viver o futebol dispensa pensá-lo, e, em grande parte, é essa dispensa que se procura nele. Os pensadores, por sua vez, à esquerda ou à direita, na meia ou no centro, têm muitas vezes uma reserva contra os componentes anti-intelectuais e massivos do futebol, e temem ou se recusam a endossá-los, por um lado, e a se misturar com eles, por outro. Tudo isso, por si só, já daria um belo assunto: o futebol como o nó cego em que a cultura e a sociedade se expõem no seu ponto ao mesmo tempo mais visível e invisível”, escreve Wisnik, no aquecimento do ziguezague, como diz, com o qual ele lida, compartilhando ideias, ao longo do livro.
Ao partir para o ataque, no melhor sentido, o escritor e pensador contemporâneo chega a argumentos imbatíveis. “Pois a mais importante consequência de sua rápida semiologia exploratória, a meu ver, é de que o futebol é o esporte que comporta múltiplos registros,sintaxes diversas, estilos diferentes e opostos e gêneros narrativos, a ponto de parecer conter vários jogos dentro de um único jogo. A sua narratividade aberta às diferenças terá relação, muito possivelmente, com o fato de ter se tornado o esporte mais jogado no mundo inteiro, como um modelo racional e universalmente acessível que fosse guiado por uma ampla margem de diversidade interna, capaz de absorver e expressar culturas”, escreve Wisnik, sintetizando, de alguma forma, parte dos mistérios que vão fazer o mundo inteiro não tirar os olhos da Rússia nas próximas semanas.
A colina dos suspiros
O livro de Moacyr Scliar para a Moderna também se transformou em alternativa sedutora para leitores que, como o autor, adoram futebol. Na cidade Pau Seco, o esporte é o que move e o que paralisa o lugar, onde estádio e cemitério ficam lado a lado. A trama e os personagens são igualmente divertidos. Possível salvação dos paussequenses, Rubinho é o jogador revelação da cidade, mas sofre uma humilhação pública ao revelar seu medo de marcar um gol em frente ao túmulo do falecido ídolo Bugio. Desaparece, e só tem um desejo: vingança. Trata-se de um momento decisivo em sua vida. Questões éticas, políticas, sociais, familiares, amorosas, assim como ideias sobre o bem e o mal, são discutidas e tratadas com maestria por Scliar.
O drible
O livro de Sérgio Rodrigues para a Companhia das Letras ganhou prêmios importantes e é leitura da melhor qualidade, independentemente das paixões pelo futebol. O argumento da trama é o seguinte: “desenganado pelos médicos, um cronista esportivo de oitenta anos, testemunha dos anos dourados do futebol brasileiro, tenta se reaproximar do filho com quem brigou há um quarto de século”. Nessa reconstrução da relação, além de histórias sobre craques, sobram muitas emoções e relatos cativantes como o que conta sobre um extraordinário jogador dos anos de 1960 chamado Peralvo, dotado de poderes sobrenaturais e que teria sido “maior que Pelé” se não tivesse encontrado um fim trágico. Há ainda, na trama do romance-campeão de Rodrigues, a descoberta, pelo filho, de um sombrio segredo de família e um episódio tenebroso dos porões da ditadura militar. O drible, na verdade, é um golaço literário.
Fechado por motivo de futebol
O livro de Eduardo Galeano publicado no Brasil pela L&PM é a maior demonstração (irresistível, diga-se) de todo o fascínio do escritor pelo esporte. Ao longo da vida, o futebol foi uma paixão declarada de Galeano – e infinitamente mais intensa a cada Copa do Mundo. O livro reúne a maior parte dos textos do autor sobre o esporte e momentos memoráveis como a crônica em que chama Che Guevara de “traidor” por ter trocado o futebol pelo beisebol em Cuba. Falando de uma das Copas que acompanhou, ele escreve, no texto que dá título ao livro, o seguinte: “Quando o Mundial começou, pendurei na porta da minha casa um cartaz que dizia: Fechado por motivo de futebol. Quando o retirei, um mês depois, eu já havia jogado 64 jogos, de cerveja na mão, sem me mover da minha poltrona preferida.”
Veneno remédio – O futebol e o Brasil
O livro de José Miguel Wisnik para a Companhia da Letras é um ensaio fascinante que toca em pontos-chaves para compreensão da complexa e intrínseca relação do futebol com o Brasil e com os brasileiros. “Lançando mão de um sofisticado instrumental crítico que bebe na filosofia, na sociologia, na psicanálise e na crítica estética, Wisnik desce às minúcias do jogo da bola e de sua evolução ao longo das décadas. Craques como Domingos da Guia, Pelé, Garrincha e Romário põem à prova, com sua linguagem não verbal, ideias sobre o país de escritores como Machado de Assis, Mário e Oswald de Andrade, sociólogos como Gilberto Freyre, historiadores como Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior”, diz, com precisão, o texto de apresentação do livro.
Os beneditinos
Terceiro livro do jornalista José Trajano, o título publicado pela Alfaguara compartilha uma trama cheia de lances esportivos e divertidos. O protagonista é um jornalista desempregado, sessenta e poucos anos, que vive na Moóca e prioriza os cuidados com a saúde, que não anda lá essas coisas. Torcer pelo Juventus, tomar ocasionalmente uma cerveja e se dedicar as suas partidas de futebol de botão contra veteranos do bairro também estão na sua pauta de felicidades cotidianas, até o dia em que, folheando uma revista na sala de espera do dentista, dá de cara com a manchete: “Será em Londres o 1º Mundial de Walking Futebol”. É uma notícia que muda suas perspectivas e a trama de uma história cativante.
Sócrates & Casagrande – Uma história de amor
Feito a quatro mãos pelo comentarista de TV e ex-jogador de futebol Walter Casagrande Júnior e o jornalista esportivo Gilvan Ribeiro, o título da Editora Globo trata das memórias da amizade entre dois dos maiores craques do Corinthians. Assim, documenta a participação da dupla em episódios fundamentais, como no processo da Democracia Corintiana e na campanha das Diretas Já. O livro também revela detalhes do envolvimento dos astros do Timão com a boemia, os vícios e os amores, num registro só possível no plano da memória. É leitura que cativa seja por ter o esporte como tema ou pela percepção mais humana e sensível de tudo o que é relatado.
Estrela solitária – Um brasileiro chamado Garrincha
Lançada nos anos de 1990, quando ganhou o Jabuti, a biografia que o escritor Ruy Castro fez do jogador Garrincha é leitura obrigatória para quem gosta de futebol e drama. Traz a história de um ídolo amado por uma mulher, a cantora Elza Soares, e por um povo inteiro, já que Garrincha era idolatrado no Brasil, mas que acabou destruído por um inimigo implacável, o vício. Além do esporte, paixão e desventuras são ingredientes indissociáveis na história do jogador, que tem como cenário o Brasil e o Rio de Janeiro dos anos de 1950 e 1960. Dos biógrafos mais prestigiados do Brasil, Castro confirma, no livro, toda a sua habilidade e talento para o gênero.
