Ler para mudar*
“Se o povo puder ter acesso ao prazer e à capacidade de
ler, ele faz um país melhor”, diz o escritor Pedro Bandeira,
que lança Esses bichos maluquinhos!, feito com rigor e
amor para as crianças em processo de alfabetização
*Entrevista publicada na revista Vila Cultural 161 (setembro/2017).
O escritor Pedro Bandeira lança Esses bichos maluquinhos! (Moderna) nos dias 23 e 30 de setembro, respectivamente na Livraria da Vila do Aurora Shopping, em Londrina, e na loja da Fradique, em São Paulo, às 15h. São duas ótimas oportunidades para estar perto de um dos mais importantes autores da literatura infantojuvenil do país, no qual Bandeira é campeão de audiência, tamanha a importância de seus livros na rotina de escolas brasileiras.
Desde que lançou A droga da obediência, nos anos de 1980, no período pós-ditadura militar, e que ainda hoje faz enorme sucesso entre crianças e adolescentes, Bandeira virou referência. Por responsabilidade do ofício, curiosidade incontrolável e vocação genuína, transformou-se em exímio pesquisador para ser “um artista que trabalha com educação”, como diz em entrevista exclusiva à Vila Cultural.
No novo livro, com ilustrações de Adilson Farias, há 17 historietas contadas em versos – como O sapo reclamão e A meia do macaquinho. Todas apresentam, como algo aparentemente simples, ideias meticulosas e muito estudadas. Sempre em busca de novos desafios, Bandeira, que tem 75 anos, se propôs o desafio de fazer um “livrinho”, como ele se refere carinhosamente ao novo trabalho, para crianças em processo de alfabetização, fornecendo material precioso para professores que conduzem esse aprendizado. O resultado é primoroso. Revela ao mesmo tempo o rigor do processo criativo de um autor que sabe da importância do seu trabalho e também do cidadão que só vê saída para o Brasil pelo caminho da educação.
Crítico contundente da política e do cenário “desesperador” do país na atualidade, Bandeira também é um otimista, sobretudo por ter vivido, como jornalista, a experiência da censura depois do Golpe Militar de 1964. “Imagina se no começo do século 20 havia possibilidade de uma Ruth Rocha ou um Ziraldo escrever livros. A escola pública era para poucos. Para entrar numa escola pública você tinha que fazer um exame de admissão que, na verdade, era um exame de exclusão porque não havia vaga para todo mundo”, diz Pedro Bandeira.
“Escrevo por uma razão política. É preciso que o meu povo saiba ler e goste de ler como eu gostei quando era criança”, afirma o escritor. “Desde 1985, nós estamos tentando construir uma democracia, aos trancos e barrancos, porque somos analfabetos, mas estamos avançando um pouquinho. O problema é que os que se dizem progressistas querem que pare e que volte para trás”, afirma o escritor. “Temos milhões e milhões de pessoas que estão trabalhando, que têm sonhos e que estão batalhando por eles. Nós não precisamos de mais cadeias. Precisamos de mais escolas. Se o povo puder ter acesso ao prazer e à capacidade de ler, ele faz um país melhor.” Leia trechos da conversa
com o escritor.
Vila Cultural. Gosta de entrevistas?
Pedro Bandeira. Gosto. Nos livros, sou um “inventador” de histórias. Claro que subliminarmente os meus pontos de vista aparecem ali porque todo livro tem sua ideologia e toda ideia traz um ponto de vista. Mas gosto quando posso falar mais abertamente. Sou um artista ligado à educação. Se você resolve escrever livros para o ensino fundamental ou para a educação infantil, é uma opção pedagógica e, portanto, também uma opção política. Você tem ideias sobre educação. Se escreve qualquer livro, é qualquer livro. Leia quem quiser. Mas quando você faz um livro que entrará na escola pelas mãos de uma professora ou um de professor, que está tentando fazer uma forte introdução da compreensão da língua portuguesa de modo que a criança domine a língua, possa transmitir suas ideias através dessa língua e tenha o direito de acessar qualquer coisa que esteja escrita – em livro, na nuvem ou na tela –, é uma opção política e pedagógica. Por isso me sinto meio escritor, meio educador. E por isso uma entrevista é tão interessante. Você pode expor ideias. O resto é metáfora. Na literatura, tudo é metáfora.
VC. De onde vem o seu gosto pela palavra?
PB. Venho do jornalismo, do teatro, da palavra viva. Só que quando jovem, logo que comecei a me meter nesses trabalhos, ocorreu um golpe militar no país, uma ditadura que, para se manter no poder, como acontece com todo ditador – e veja que agora ainda temos um candidato dizendo que, se eleito, vai censurar a imprensa –, precisou controlar a palavra livre. Daí veio a censura. O teatro foi varrido. E não havia internet, em que você pode descartar qualquer censura e escrever o que quer. Quando a ditadura surgiu, eu tinha 20 anos, e quando ela foi embora, já tinha uns 40. Ou seja: toda a minha juventude como jornalista foi sob censura. Então o livro que me introduziu na literatura, A droga da obediência, é uma metáfora sobre o “cala a boca”, sobre o “eu que penso e você não tem o direito de vir com as suas ideias” ou “faça aquilo que eu te mando”. É sobre um sujeito maluco que inventa uma droga para fazer todo mundo ficar obediente.
VC. Que percepção tem da realidade atual?
PB. Estamos vivendo um momento em que a maior nação do mundo ainda tem passeatas nazistas, assassinas, como a que vimos recentemente em Charlottesville, nos Estados Unidos. É sempre assim: um fato que acaba de ocorrer normalmente faz a gente entrar em desespero. Se você olhar apenas para a marcha de Charlottesville, você vai concluir que os Estados Unidos estão afundando. E não é bem assim. O fato de Donald Trump ter sido eleito, o que pode ser visto como um retrocesso – eleger um palhaço para dirigir o maior país do mundo –, não é o fim dos tempos. Ao ver a União Soviética sair do stalinismo, você constata que ainda há um sobrevivente do stalinismo no poder e diz: “acabou o mundo”. Mas nós temos que olhar sempre
em perspectiva.
VC. Vale para o Brasil?
PB. Se você olhar para o Brasil assim, vai se lembrar que na década de 1930, quando um gaúcho [o ex-presidente Getúlio Vargas] vem lá do sul, toma o poder no Rio de Janeiro e faz uma ditadura, 90% da população brasileira era analfabeta absoluta. Meia dúzia de pessoas lia. Quando Machado de Assis – que na minha opinião é o melhor escritor do século 19 no mundo, com perdão de todos os outros maravilhosos – escrevia, quem sabia ler? Quem era capaz de ler Memórias póstumas de Brás Cubas? Os primeiros livros dele tinham tiragem de trezentos exemplares. Havia trezentos senhores no Rio de Janeiro capazes de ler Machado. Hoje, apesar de todos os problemas por que passamos – até com ditaduras que frearam o país sob vários aspectos –, nós temos “apenas” 10% de analfabetos totais. E temos mais de 50% da população capazes de ler um livro. Claro que é uma tristeza um país como o Brasil ter quase metade de sua população incapaz de ler um livro, já que muitos se declaram alfabetizados mas são incapazes de ler um texto e compreendê-lo ou de deixar um bilhete para alguém ler.
VC. E, pensando assim, há uma tristeza atrás da outra.
PB. Por que um congressista tem direito de mandar na educação? O que ele sabe sobre educação? O Pelé disse, com toda a razão, que o brasileiro não sabe votar e ele foi perseguido pelos intelectuais, que diziam que aquilo era absurdo, que ele era contra o povo. Estava certo. E continua assim. O brasileiro continua votando no Tiririca, votando em bandidos, em pessoas que deviam estar na cadeia se a lei fosse igual para todos. Não é que o povo não sabe votar. O povo não tem condição de entender porque ele não sabe ler. Ele não lê. As pesquisas podem até indicar que vem crescendo o número de leitores no país, mas numa velocidade bem menor do que a que desejamos. Mas a história aqui não é rápida. Na Coreia do Sul, foi rápido. Eles saíram de uma condição zero para hoje ser uma “pequena” potência em que 98% da população têm ensino médio.
VC. Olhar em perspectiva, então, é a “solução”?
PB. Você tem que fazer isso porque se não você enlouquece. Se o mundo em que estamos é esse, quero morrer agora. Mas quando olho para trás, lembro que vivi a ditadura. Imagina não poder estar em grupo de quatro pessoas conversando num bar. Hoje, na avenida Paulista, sempre tem grupos de pessoas gritando por alguma coisa. Que bom. Mesmo assim os canalhas querem botar quase R$ 4 bilhões para eles mesmos se elegerem e chamam isso de reforma política. Só que isso está nos jornais e as pessoas estão gritando. Se a coisa está muito ruim, já estivemos ainda pior. Mesmo que seja difícil acreditar, as coisas estão melhorando. Hoje a televisão está exibindo os idiotas com seus discursos cretinos, com os caras se vendendo. Infelizmente, Juscelino Kubitschek criou uma ilha da fantasia bem distante do Brasil para eles ficarem livres para fazer o que quisessem lá. É desesperador? É. Mas antigamente as coisas aconteciam e isso nem saía no jornal.
VC. Como sair desse buraco?
PB. Dá para construir esse país, sim, mas para isso é preciso ter consciência e para ter consciência é preciso ter conhecimento. Nós precisamos gostar de ler. Para mim, a única saída é a educação. O Brasil gasta com os que já pararam de trabalhar, os aposentados e pensionistas, quatro vezes mais do que gastamos com educação. É como se investíssemos no passado e não no futuro. Danem-se as crianças. Junto com a educação, a nossa única saída é a democracia e para manter a democracia só o conhecimento. E você não tem conhecimento se você não souber ler bem. Tem um papo da esquerda que dizia: “precisamos criar leitores críticos”. Como é que você vai criticar se você não entende o que está escrito? O povo continua sendo manipulado. Mas tem mais gente querendo um país melhor. Hoje, há mais pessoas discutindo coisas importantes. E temos que continuar construindo a democracia desse modo. Não tem outro jeito. Eu não conheço outro. Se houver, me conta. Como dizia o Churchill, a democracia é o pior dos regimes, fora os outros.
VC. Precisamos de eleitores leitores.
PB. É preciso ler e ler muito. Leitura também é quantidade. Essas crianças precisam ler demais. Quando faço palestras para professores, sempre digo: “não me venha com essa de adoção de um livro a cada bimestre”. Como é que a criança vai aprender a ler com um livrinho a cada bimestre? Tem que ler o tempo todo. Fazer uma redação por quinzena é o fim. Tem que escrever o tempo todo. Ficar com calinho na mão. Precisa treinar. Como se cria um nadador? Uma vez por quinzena ele cai na piscina? Não. Ele tem que estar lá todo o dia, nadando como um louco, fazendo exercício. É quantidade.
VC. Como fez Esses bichos maluquinhos!, o novo livro?
PB. Depois de muito estudo, o meu ponto de vista é que é mais fácil para uma criança que está sendo alfabetizada que você apresente a língua de maneira mais facilitada. E a maneira mais facilitada de apresentá-la é com a língua organizada, rimada. Com versos, por exemplo. É mais simples do que a prosa, que não é fácil de ler porque não reproduz a musicalidade natural da língua falada. Você tem que ser um bom leitor para saber onde é a pausa, onde você respira, qual a ênfase da exclamação, da interrogação. Se você ignorar isso, você é capaz de ler todas as sílabas e não entender o que está escrito. Num verso, principalmente numa redondilha [estrofes de versos curtos, com rimas alternadas], como no novo livro, é muito mais fácil. Então você tem que levar a criança a acertar para ela se gratificar. Ela tem que ir bem. Facilite a vida dela. Ajude-a a acertar. E a respiração natural é a respiração da redondilha: “Batatinha/ Quando nasce/ Se esparrama/ Pelo chão…” É difícil ler errado um verso assim. Então, as poesiazinhas ou o jeito de contar a história com riminhas é para facilitar para meu leitor. Assim, ele vai se familiarizando com a leitura.
VC. Difícil de fazer, não?
PB. Esse livrinho, que levei um tempão fazendo, foi muito pensado assim. Por isso, até sugiro aos professores que façam a criança ler cantando ou cantem com ela. Uma referência para alguns dos textos foi aquela musiquinha: “Um elefante incomoda muita gente, dois elefantes incomodam muito mais”. Assim [Bandeira abre o livro e cantarola um dos textos]: “O macaquinho/ Foi na festa da coruja/ Bem elegante/ Para todos agradar/ Calçou a meia/ Que estava muito suja/ E foi tirar/ A galinha pra dançar./ Saiu pulando/ De um jeito muito esperto,/ Dando voltinhas/ E fazendo rapapé/ Mas quem dançava/ Por ali saiu de perto/ Pois o problema/ Era o cheiro de xulé…” Imitar uma galinha e um macaco dançando faz parte do imaginário infantil e é uma maneira também de introduzir o humor para as crianças pequenas. No caso do livro, é um humor baseado em ironia, mas uma criança pequena não percebe ironias. É uma fase em que ela está aprendendo a controlar o esfíncter e a excreção, por exemplo. Por isso, coco, xixi, bumbum são coisas engraçadas para ela. Quer que ela ria, diga bumbum e ela cai na gargalhada. Fala de novo. Como naquela historinha de dois tomatinhos atravessando a rua, quando eles são atingidos e fazem aquele barulho de “ploft”. E as crianças morrem de rir por causa do efeito sonoro. Acredito que é assim que podemos fornecer material para as professoras trabalharem a língua.
VC. Qual o maior desafio nesse tipo de tarefa-missão?
PB. Quando escrevo, não é a cabeça do Pedro Bandeira, com as realidades do Pedro Bandeira, que aparece no livro. O desafio é saber quais são as realidades que a criança gostaria de ler. O bom escritor para crianças é aquele que escreve pela criança, como se fosse uma criança. Por isso, esse livro, que parece tão simples, é produto de um trabalho muito profundo. Se você ler para uma criança de cinco anos, que está sendo alfabetizada, ela vai se divertir e ter a ideia de que o livro, a literatura, é uma experiência agradável, uma coisa gostosa, uma brincadeira. Não é como um purgante. Por isso que as pessoas criticam tanto a professora que só fala do livro para estudar para prova e ainda dá nota baixa. Ela não está apresentando a literatura e o conhecimento como experiências agradáveis e divertidas.