Nomes em evidência

*Entrevista publicado na revista Vila Cultural 179 (Março/2019)

Com obras, estilos e interesses diferentes, Aline Bei, Ana Martins Marques, Carol Bensimon, Giovana Madalosso, Jarid Arraes, Lucrecia Zappi e Natalia Borges Polesso, as mulheres que estão na capa e nas próximas páginas desta Vila Cultural, são escritoras brasileiras que, apesar de ainda não serem plenamente conhecidas do público, acumulam elogios, prêmios, ótimos livros e as melhores perspectivas na literatura e na construção de suas respectivas carreiras. Palavra por palavra, são ao mesmo tempo uma amostra e uma demonstração da diversidade de vozes que, para muito além da questão do gênero, merecem ser lidas e ouvidas com toda atenção e apreço.

Giovana Madalosso

E se o momento histórico fez das questões femininas e feministas uma urgência e uma prioridade por uma sociedade mais justa, as escritoras reverberam, cada uma à sua maneira, um tema que não necessariamente está relacionado ao que escrevem. “Para mim, foi uma feliz coincidência viver um momento pessoal assim junto com essa Primavera Feminista que apareceu mais ou menos no mesmo momento. Quando eu escrevi A teta racional, as coisas ainda estavam começando a acontecer. Escrevi de uma maneira superintuitiva, e algumas pessoas acham que o livro foi escrito depois da visibilidade feminista atual”, disse a roteirista e escritora Giovana Madalosso em entrevista à Vila Cultural quando do lançamento de Tudo pode ser roubado (Todavia), seu primeiro romance. A teta racional é o livro de contos de Giovanna. Por outra via, a da literatura assumidamente política, nomes como o da cordelista Jarid Arraes, poeta e autora dos livros As Lendas de Dandara, Heroínas negras brasileiras e Um buraco com meu nome, os dois últimos da Pólen, têm no gênero e nas discussões sobre racismo temas centrais. “Cresci lendo homens e suas perspectivas como se fossem universais.

Ana Martins Marques

 

E eu quero que os homens leiam livros de mulheres com essa mesma visão, não como ‘literatura feminina’, mas como literatura”, diz Jarid , cujo avô, que vive em Juazeiro do Norte, no Ceará, é cordelista. “A decisão de publicar um livro sempre implica um desejo de diálogo, de compartilhamento, e sem dúvida é uma alegria quando você se dá conta de que aquilo que escreveu toca ou interessa outras pessoas”, disse, em entrevista ao Jornal do Commercio, a poetisa Ana Martins Marques, autora de A vida submarina (Scriptum), Da arte das armadilhas, que ganhou o Prêmio Biblioteca Nacional em 2012, e do cultuado O livro das semelhanças, ambos da Companhia das Letras. “Impresso/como parece estranho/o mesmo nome/com que te chamam”, escreve Ana, no poema Nome do autor.

Para celebrar justamente os nomes e as vozes de autoras em evidência no Brasil, Vila Cultural traz, nas próximas páginas, entrevistas com escritoras que estão em plena atividade.

 

ALINE BEI
“Quero ser lida”, diz a autora de O peso do pássaro morto

Foto Juliana Lubini/Divulgação

Obra-prima da poeta americana Elizabeth Bishop (1911-1979), o poema A arte de perder (One art, no original) foi, de alguma forma, uma inspiração e uma referência para O peso do pássaro morto (Nós), o primeiro livro da escritora Aline Bei. Um romance híbrido, escrito em versos, o título é uma daquelas preciosidades com as quais só a literatura pode nos brindar. Trata, com delicadeza e vigor, das perdas que se dão na trajetória de uma vida, entre a infância e a maturidade.
Depois de estudar artes cênicas e se formar em Letras, Aline também se transformou numa autora disciplinada. “Como todos os artistas que eu admiro”, ela diz. Vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura 2018 na categoria “melhor romance com autor de menos de 40 anos”, ela, que tem 30 anos, já trabalha em seu próximo livro. Todas as manhãs, religiosamente, mantém sua devoção ao trabalho e à escrita. Sabe do esforço contínuo do qual depende o bom texto e descarta a visão romântica em torno do processo criativo ou da imagem “clássica-boêmia” de um escritor, uma escritora.
Todos os dias, Aline também vai a uma agência dos Correios para postar os livros que ela mesma vendeu, por iniciativa própria, na véspera, nas duas horas em que se dedica às redes sociais e à vida digital. Além de gostar deste “trabalho manual”, que é uma trégua para o esforço intelectual, Aline tem causa mais nobre para a ação: ela quer ser lida. Leia a entrevista com a escritora:

Vila Cultural. Em que situação você descobriu sua habilidade, seu talento para o texto?
Aline Bei. Talento é uma palavra forte, intimida. Mas descobri a minha vocação, digamos assim, em uma aula de Literatura na faculdade de Letras. Eu montei com os meus amigos uma revista para o curso. Depois do lançamento, entregamos alguns exemplares para os nossos professores, um deles era o Joca. Na semana seguinte, durante a aula, o Joca começou a declamar o meu texto que estava na revista, ele tinha decorado, demorei para reconhecer. Quando terminou – e o Joca é um senhor de quase 90 anos, inclusive temos ídolos parecidos, foi ele quem me apresentou o Manoel de Barros –, ele disse: “Continue escrevendo, Aline. Continue, que a escrita é um lugar
para você”.

VC. Quanto tempo demorou para escrever O peso do pássaro morto?
AB. Escrevi o Pássaro durante uma oficina ministrada pelo Marcelino Freire. O grosso eu produzi em seis meses e o processo de edição durou mais de um ano. O Pássaro nasceu com uma força impressionante, todo o processo foi cheio de vida e de velocidade, sem espaço para crises.

VC. De onde vem o seu gosto por Elizabeth Bishop e que outros autores/autoras são importantes na sua formação?
AB. Vem exatamente do poema A arte de perder, com essas duas palavras convivendo, Arte e Perder. Outro poeta que começou em mim com um poema exato foi Álvaro de Campos, com Tabacaria. Também o e.e.cummings, com aqueles versos nobody, not even the rain, has such small hands.

VC. Nas suas melhores expectativas, você imaginava que Pássaro morto voaria tão alto?
AB. Impossível imaginar o que será de um livro depois de publicado, não sou boa de futuro. Mas eu sabia que lutaria por ele, como tenho lutado todos os dias desde que publiquei.

VC. A que atribui o encantamento que seu livro tem despertado nos leitores?
AB. Acho que as pessoas conseguem encontrar no Pássaro memórias e intimidades, parece que o livro resgata algo da própria vida do leitor.

VC. Como lida com as expectativas depois de ter um romance de estreia tão celebrado? Ganhar (assim como perder) também pesa?
AB. Evito pensar nisso. Prefiro focar no meu processo de escrita, nos meus estudos, e também na divulgação do Pássaro, é assim que eu me defendo de tudo o que é externo ao trabalho do escritor.

VC. O bem e o mal de ser uma escritora brasileira em 2019?
AB. A parte boa é a tecnologia, posso conquistar leitores de forma independente e ativa, no meu ritmo, exatamente do meu jeito. A parte mais difícil é saber administrar o próprio tempo, especialmente proteger o tempo da criação, que é o mais importante, buscar silêncios, se concentrar. Procuro ser bem disciplinada em relação a isso.

VC. Por que decidiu se empenhar pessoalmente na venda do livro?
AB. Porque eu quero ser lida.

 

CAROL BENSIMON
“Estou sempre pensando em ficção”, afirma a ganhadora do Jabuti 2018

Foto Renato Parada/Divulgação

Autora de O clube dos jardineiros de fumaça (Companhia das Letras), que ganhou o Jabuti de melhor romance em 2018, a escritora gaúcha Carol Bensimon vive atualmente na Califórnia, nos Estados Unidos, e diz que se mudou para dentro do seu livro. É só uma brincadeira para fazer referência ao lugar onde se passa a história, a pequena cidade de Mendocino, na costa californiana, cuja principal atividade econômica gira em torno do cultivo da maconha. “É lá que o jovem professor brasileiro Arthur busca recomeçar a vida, depois dos acontecimentos que o levaram a deixar Porto Alegre”, diz a sinopse do livro, que retrata a geração hippie e seu legado. Aos 37 anos, Carol já trabalha em próximo romance, também tem escrito contos e admite que não é um momento simples para ser uma escritora brasileira. “Às vezes eu me sinto esmagada pelas notícias. Isso me leva a muitos questionamentos sobre como representar esse Brasil na literatura se ele parece tão absurdo na vida real”, diz em entrevista à Vila Cultural. Mestre em Teoria da Literatura, Carol fez doutorado na Sorbonne Nouvelle, em Paris, e integrou a edição de Os melhores jovens escritores brasileiros feita pela revista inglesa Granta, que deu visibilidade a vários autores da sua geração.

Vila Cultural. Um ano depois do lançamento, que avaliação faz da trajetória de O clube dos jardineiros de fumaça até aqui?
Carol Bensimon. Os primeiros meses foram mais lentos do que eu imaginava, mas isso tem muito a ver com a ansiedade do autor, porque o mundo literário, sobretudo no Brasil, tem um tempo muito particular. Mas então as pessoas começaram a ler o livro, que é relativamente extenso, e recomendar para amigos, postar comentários nas redes sociais etc. E aí finalmente veio o Jabuti, que fez o interesse pelo livro crescer muito mais. Eu diria que o romance está em uma linda trajetória, e sinto que esse livro ainda vai me dar muitas alegrias.

VC. O que mudou na sua vida e no seu trabalho depois do Jabuti?
CB. Muita coisa mudou na minha vida nos últimos meses. Não foi tanto por conta do Jabuti, mas pelo fato de que eu me mudei para a Califórnia, e isso aconteceu a partir da escrita do Clube, porque me apaixonei pela região onde se passa a história e comecei a enxergar uma existência possível para mim aqui. Então digamos que esse livro mudou minha vida, por mais cafona que essa frase possa parecer. Agora, pensando especificamente sobre o Jabuti, acho que há uma consequência bem direta, que é o fato de receber mais convites, ser mais lembrada, vender mais livros, esse tipo de coisa. Mas também acho interessante observar como funcionam esses mecanismos de validação em um nível mais sutil. Parece que algumas pessoas passaram subitamente a me levar mais a sério.

VC. Qual é sua grande motivação para escrever livros?
CB. Para mim, querer contar histórias é tão natural que nem sei se consigo responder essa pergunta. Quando estou circulando pelo “mundo real”, estou sempre pensando em ficção, sempre pensando em como transformar sensações em palavras, ou a suposta vida de alguém em uma história coerente. Gosto da rotina também, embora às vezes escrever (ou não conseguir escrever) seja muito angustiante. Cada dia é diferente do outro, eu faço meus horários e, mais importante de tudo, fico sozinha em um escritório. Faz dez anos que vivo assim e não conseguiria pensar em um trabalho mais adequado ao meu temperamento.

VC. Quais são as dores e as delícias de ser uma escritora brasileira em 2019?
CB. Eu estou muito feliz com minha vida pessoal e com a minha carreira, mas devo dizer que não está exatamente fácil ser uma escritora brasileira em 2019. Às vezes eu me sinto esmagada pelas notícias. Isso me leva a muitos questionamentos sobre como representar esse Brasil na literatura se ele parece tão absurdo na vida real. Não é que eu ache que a ficção não possa dar conta da nossa realidade, mas é que às vezes parece que só a farsa, só a comédia podem lidar com tamanho horror, e eu sei que minha literatura não tem esse tom. Ao mesmo tempo, tenho consciência de que eu não preciso e nem quero envelopar todas as idiossincrasias do Brasil em um único romance. Quero lidar com indivíduos, com vida interior.

VC. O que você pensa sobre feminismo?
CB. É uma palavra que não pode ser banalizada por postagens de Facebook ou revistas femininas querendo surfar na onda do momento. Mas se um dia a palavra feminismo for totalmente esvaziada de sentido ou corrompida, o que talvez esteja bem perto de acontecer, espero que as mulheres ainda sigam lutando pelos seus direitos e por uma existência digna, seja qual for o nome disso.

VC. O que pensa sobre a expressão “geração Granta” e como lida com a inclusão do seu nome no grupo a que ela se refere?
CB. Ser incluída na edição da Granta foi algo bem importante na minha carreira naquele momento. Como o Jabuti, funciona como uma espécie de “selo de qualidade”, as pessoas levam bastante em conta esse tipo de mecanismo de validação, embora qualquer prêmio, qualquer escolha, possa sempre ser questionado. Não sei se existe uma “geração Granta”, isso só os críticos poderão dizer no futuro. Muita gente boa, com carreiras consistentes, ficou de fora daquela edição. Acho que o que existe são pessoas que cresceram nos anos 1980 e que se tornaram escritoras, e essas pessoas escrevem de uma forma muito diferente dos autores que viveram os anos 60 ou 70, mas para mim isso parece quase uma obviedade. Cresceram em outro mundo, tiveram outras influências, portanto escrevem diferente, tratam de outros temas. Mas não sou a pessoa mais indicada para dizer de que forma isso aparece na literatura, estou perto demais para poder analisar.

VC. Em que projetos trabalha atualmente?
CB. Estou começando a trabalhar em um novo romance, mas ainda é uma ideia um pouco difusa que precisa ser desenvolvida para que então eu possa partir para a escrita propriamente dita. Também tenho trabalhado em alguns contos, mais como exercício do que com um objetivo concreto de publicação. E, em algum ponto desse ano, devo lançar um curso online sobre escrita de romances. Boa parte do material já está pronto.

 

JARID ARRAES
Cordel é rebeldia, afirma a ativista e poeta que escreveu Um buraco com meu nome

Foto Divulgação

Jarid Arraes completou 28 anos no mês passado e não pára de escrever. Contabiliza mais de 60 títulos publicados na literatura de cordel. Ela nasceu em Juazeiro do Norte e a questão do gênero está intrinsecamente ligada à sua existência. Seu nome foi uma escolha do avô paterno, Abraão Batista, que é cordelista e xilogravador. “Meu avô sempre gostou de escolher os nomes dos netos. O meu é, na verdade, masculino e significa ‘causador de contendas’. O original é ‘Jared’, como o de um ator bem conhecido, o Jared Leto. Mas meu avô achou que mudando o ‘e’ para ‘i’ ficaria com uma sonoridade mais ‘feminina’. Tudo é bem divertido, né? Mal sabia que uma das minhas contendas seria justamente por questionar esse lugar de ‘feminino’ na sociedade, na literatura”, diz Jarid. Leia trechos do depoimento da escritora.

POR QUE ESCREVO
“Cheguei à conclusão que escrevo porque tenho coisas para dizer que ainda não encontrei por aí e isso me angustia. Estou em busca disso e enquanto não acho – porque não posso afirmar que não tenham sido ditas –, eu mesma vou dizendo. O meu livro mais recente, Um buraco com meu nome (Pólen), é isso. Eu queria falar sobre o que é profundamente feio em nós, nos outros, na sociedade, e queria falar de um jeito muito específico, muito individual e coletivo, muito político. Com As Lendas de Dandara e Heroínas negras brasileiras eu queria contar as histórias das mulheres negras que foram propositalmente esquecidas e apagadas da nossa História. Eu só encontrava seus fragmentos. Escrevo porque acredito que a escrita é sempre política e sempre envolve o coletivo. Isso me importa muito, e faço com muita consciência disso”.

DE POLÍTICA E LITERATURA
“Toda literatura é política, quer saiba disso ou não. Um livro que só fala sobre andanças pelas ruas em Paris, sobre janelas, cores e solta palavras aleatórias em francês misturadas ao português, esse livro é político, porque mostra o lugar desse poeta. Quem é esse poeta? Ele viajou até Paris? Esse dinheiro ele ganhou com muito suor ou era uma herança de família? É branco? Foi fácil publicar esse livro? É negro? Quantos negros já ganharam prêmios literários? Quantos negros foram publicados por grandes editoras no Brasil? Há pesquisas acadêmicas a respeito disso. Posso citar a maravilhosa pesquisa de Regina Dalcastagnè, da UnB, que mostra o retrato dos romances brasileiros: brancos, masculinos, sudestinos, com protagonistas que são quase espelhos de seus autores. Sempre é político. Alguns negam, fingem não ver, porque é cômodo, porque é mais fácil, porque assim não se questiona a ideia do talento, do dom, do merecimento. Meus livros são considerados ativismo porque a norma dos protagonistas brancos é tão vista como o universal que sair da norma é ativismo. Porque a norma do homem é considerada tão universal, que falar do ponto de vista de uma mulher é ativismo. Porque a norma do sudestino é tão universal, que falar do ponto de vista de uma nordestina é ativismo. Mas assim como há livros com personagens históricos brancos, por que não livros com personagens históricos negros? E quando escrevo poemas como Dora, que fala do primeiro caso de histeria de Freud, faço ativismo porque escancaro o machismo, mas também estou nos meus interesses – a poeta que sou, os livros que leio, as raivas que tenho. Entende? Todas as poesias são políticas”.

SER CORDELISTA EM 2019
“Sou muito feliz como cordelista. Eu tenho muito amor pela literatura de cordel. A métrica, a rima, o ritmo e a identidade literária e sonora. Dito isso, você pode escrever um cordel sobre qualquer tema e publicá-lo em folheto, livro, nas redes sociais, nos muros. Eu sempre vou publicar em folheto, mesmo que publique em livros também, porque o folheto é autonomia. É a liberdade do poeta. É a certeza de que ninguém controla sua poesia. E o cordel pra mim é isso: pura rebeldia. Meu cordel é bastante consciente de seu lugar no mundo. Eu rompi com os temas tradicionais, não escrevo aquele ‘mais do mesmo’ de temas machistas, racistas e homofóbicos sobre cornos, sogras, Lampião etc. Tenho protagonistas mulheres, temas que desafiam pensamentos que devem ser ultrapassados. E foi assim que consegui reunir dois públicos: o pessoal que já gostava de cordel, mas nunca tinha lido nada nesses temas, e o pessoal que se interessou por esses temas, mas nunca tinha lido cordel. Eu vendo cordel pra caramba, tudo independente. Já vendi mais de 60 mil cordéis nos últimos quatro anos, só pela internet. Mas, curiosamente, nunca sou convidada para os stands de cordel das bienais, para os eventos de cordel e coisas do tipo, porque quem faz as curadorias desses eventos são os homens de sempre, que escrevem os temas de sempre, e que talvez fiquem chateados com minhas críticas a respeito do machismo etc. Um deles até aconselhou uma editora a não publicar o Heroínas negras brasileiras. A editora não publicou, seguindo seu conselho. Aí publicamos por outra e já temos aí 12 mil exemplares pelo mundo. Essa galera que não se atualiza, é uma tristeza, né?”

AUTORAS QUE INSPIRAM
“Conceição Evaristo foi a primeira escritora negra que li na minha vida. Eu tinha 19 anos. Já tinha lido tantos livros que seria impossível contar, mas só com 19 anos li minha primeira escritora negra. E tive a felicidade de já dividir mesas de eventos literários com ela. A primeira vez, nossa! Chorei demais. Ela me abraçou, tão linda. Inesquecível. Com ela, nos Cadernos negros, veio Miriam Alves e Esmeralda Ribeiro. Beatriz Nascimento, Ana Maria Gonçalves. Todas muito importantes para minha formação, pois são brasileiras. Dessas, apenas Beatriz já faleceu. Então é incrível poder ter contato com escritoras que me fortaleceram e me encorajaram a publicar. Essas são as negras, claro. Mas tenho uma paixão enorme pela Sylvia Plath e Anne Sexton, poetas que descobri na adolescência, com as quais me identifico muito.”

 

LUCRECIA ZAPPI
“Percebi que o leitor não é um ser invisível, afirma a autora do romace Acre

Foto Divulgação

Acre (Todavia), publicado ano passado, é o nome do romance mais recente de Lucrecia Zappi, que lançou Onça preta (Benvirá), seu primeiro romance, em 2013. “Acre é um romance que fala da multidão, mesmo que seja por meio do microuniverso de uma janelinha isolada”, diz a escritora ao falar da relação conflituosa da classe média com São Paulo no contexto do livro. Lucrecia, que nasceu na Argentina e veio para o Brasil aos 4 anos, vive há uma década nos Estados Unidos e já começou a trabalhar em seu próximo livro, L de cavalo, cujo argumento, como ela revela em entrevista à Vila Cultural, já surge desafiador.

Vila Cultural. Que avaliação faz da trajetória de Acre?
Lucrecia Zappi. Acre veio no rastro da Onça preta, meu primeiro romance, e trata de questões semelhantes, tais como o canto coletivo do povo entrincheirado pela violência cotidiana, sem importar onde – mesmo que seja em silêncio, e com uma lente aproximada sobre poucos personagens. Sai do campo, vai para a cidade, e o que muda? Eu também me sinto atraída pelos personagens que as pessoas criam para si mesmas. E como se espelham no outro. Nesse jogo de aproximações, em Acre achei interessante como o ciúme ganha chão e expõe o lado mais vulnerável e irracional das pessoas. Com Acre, passei a me sentir mais próxima dos leitores, pelos comentários também implosivos, como se o livro arranhasse uma ferida já esquecida, mas que nunca cicatrizou. Passei a me sentir mais suscetível porque percebi que o leitor não é um ser invisível, mas que respira quase no mesmo compasso, e segue transformando a obra, aparentemente finalizada.

VC. Como define a sua trajetória como escritora e qual é, para você, a grande motivação para escrever livros?
LZ. Sempre escrevi. Lembro que aos oito, nove anos, tentava ecoar as peripécias da fada Clara-Luz, clássico da nossa literatura infantil, de Fernanda Lopes de Almeida, ilustrado por Elvira Vigna. Fui uma adolescente leitora que gostava de escrever cartas, especialmente depois de me mudar para o México, quando telefonar para os amigos era impensável. Era fita K7 gravada ou carta. Mais tarde, na Folha de S. Paulo, trabalhei como repórter, e ao mesmo tempo que era um mergulho nas histórias cotidianas dos outros, eu me sentia um pouco presa pelo manual de estilo do jornal. Ao me mudar para os EUA, onde moro há dez anos, senti uma espécie de liberdade que o exílio muitas vezes oferece de repente: ser quem você quiser, sem que alguém te reprove. Eu sei que soa meio clichê, e até um pouco covarde, mas é assim. Acho que a maior motivação para escrever é ver como uma história se transforma nas minhas próprias mãos, o que segue sendo um mistério. Observar as pessoas, como elas se filtram e se interpretam, os idiomas diversos que aparentemente as distanciam, e como no final seguem sendo parecidas, sem importar a distância física e social. Acho que é o material mais corriqueiro que me interessa. As vontades mais simples e as necessidades aparentemente mais banais.

VC. Quais foram os autores mais influentes, mais importantes na sua formação como autora?
LZ. Graciliano Ramos, Thomas Bernhard, Samuel Beckett, Virginia Woolf, W.G. Sebald. Sou fã de muitos outros, desses que volta e meia lembro de uma passagem que gostei e penso: ‘como foi mesmo que ele fez isso?’ Só de me perguntar algo assim, já sei que fui influenciada
em algo.

VC. Que atributos são indispensáveis, na sua opinião, seja na realidade ou na ficção, para exercer o ofício da literatura neste século 21?
LZ. Penso que é imprescindível a leitura. Em segundo lugar a disciplina, não só a de estipular um horário diário para a escrita, mas ter a disciplina para editar o texto. Uma passagem que parece muito bonita, mas que fica ali feito um caroço lírico, não funciona. Cortar, mudar a estrutura da frase, ler em voz alta, mudar passagens de lugar para ver se funcionam, tudo isso é importante. Por último, eu diria que um escritor tem que ter uma dimensão histórica. Mesmo no campo da ficção, um texto em que ele vive e a perspectiva de onde ele está no mundo.

VC. Em que projetos trabalha atualmente?
LZ. Estou escrevendo um novo romance, chama-se L de cavalo, em referência à peça do xadrez. É como uma virada de esquina na vida, que muda completamente o rumo das coisas. Ao mesmo tempo, é uma reflexão de como estamos sujeitos às regras de um jogo social. O livro fala da violência banalizada do cotidiano, a partir de duas adolescentes que decidem se encontrar dez anos após terem cometido um crime terrível durante uma balada. É essa virada de esquina, que poderia ter acontecido a qualquer um de nós. Também é um livro sobre a vontade de testar os limites e como alguém volta à vida comum depois de ter se tornado uma figura pública por meio da violência. E as protagonistas são mulheres, justamente em um tempo em que as elas reivindicam o respeito que nunca tiveram. Agora, o que fazer com duas adolescentes da elite paulistana que matam alguém? Daí vem outro jogo.

 

NATALIA BORGES POLESSO
“O desafio é não cair na inércia”, declara a autora de livro de contos Amora

Foto Laine Barcarol/Divulgação

O Prêmio Jabuti 2016 de contos, Amora (Dublinense), da escritora Natalia Borges Polesso, traz 33 narrativas sobre o amor feminino e os relacionamentos entre mulheres. Natalia estreou na literatura com Recortes para álbum de fotografia sem gente (Não Editora), pelo qual recebeu, em 2013, o Prêmio Açorianos também na categoria livro de contos. Em Coração à corda (Patuá), publicou poesias. Natalia é doutora em teoria da literatura na PUC-RS. “Todos os dias eu uso a escrita para pensar o mundo e o meu lugar nele”, diz Natalia em entrevista à Vila Cultural.

Vila Cultural. Qual o maior desafio e o maior prazer ao assumir, pela escrita, o seu lugar no mundo?
Natalia Borges Polesso. Eu procuro entender a escrita como um exercício de vida, para a vida, e creio que isso seja parte de um processo de aprendizagem que o próprio ato de escrever diariamente me trouxe. Não é que eu escreva todos os dias um conto, um poema, uma crônica ou que trabalhe num romance, mas é quase isso. Todos os dias eu uso a escrita para pensar o mundo e o meu lugar nele. Acho que o maior desafio é justamente pôr em prática esse deslocamento que a escrita proporciona, esse exercício de pensar alteridades e a partir dele examinar meu próprio lugar. É uma posição de vulnerabilidade constante. E mais: a disciplina de manter o hábito, a constância de desejar travar essa batalha. Isso funciona para leitura também. A gente vive um tempo louco que nos inunda com urgências e, como efeito no meu corpo, causa uma ansiedade quase paralisante. O desafio é não cair na inércia. O desafio é seguir no meu tempo. O prazer é compartilhar.

VC. Como exercício de autoconhecimento ou autodescoberta, o que você tem aprendido de mais valioso sobre você mesma ao escrever?
NBP. Sobre mim tenho aprendido o quão resiliente posso ser e também o quão paciente, porque o corpo, a materialidade do real não consegue acompanhar os desejos, as ideias, a criatividade, a curiosidade. Há muitos projetos que ficam só no plano das ideias mesmo. Mas isso também é parte do exercício.

VC. De onde vem o seu gosto por contos e quais são os autores/autoras relevantes na sua formação como escritora?
NBP. Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles, Anton Tchekhov, Guillaume Apollinaire. Fiz graduação em Letras, esses autores fizeram parte da minha formação. Hoje gosto de muitas contistas contemporâneas como Conceição Evaristo, Carol Rodrigues, Luciany Aparecida, Fernanda Vieira, Cidinha da Silva, a Lesley Nneka Arimah, recentemente traduzida. Mas eu leio de tudo, e muita poesia! Eu também escrevo de tudo. Calhou de um livro de contos me dar mais alegrias, de as pessoas curtirem também. Mas eu leio e escrevo de tudo mesmo.

VC. O fato de ser uma autora premiada cria algum tipo de “pressão interna”, cobrança ou expectativa em relação ao que você está por fazer?
NBP. Um pouco, mas eu tento não dar atenção a isso. Já que pra mim a escrita é exercício, seria incoerente eu travar uma competição interna só pra me deixar doente. O bom é que eu sempre estou com projetos paralelos, o que cria uma variedade no exercício e me deixa mais tranquila quanto ao resultado de cada um. É tudo uma aventura, uma experiência! Eu gosto de desafios. O processo é sempre uma viagem fascinante.

VC. Como feminista, como entende e administra, no seu processo criativo, a coexistência da militância, do ativismo e da criação literária?
NBP. Não é difícil. Ser feminista é uma escolha pra vida, um modo de estar no mundo, e isso acaba afetando tudo. Isso quer dizer que todos os meus livros serão feministas? Possivelmente. Mas isso não quer dizer que as personagens serão ou que o feminismo estará no centro de todas as narrativas. Há preocupações outras e também as pautas do feminismo são bastante variadas: saúde, trabalho, bem-estar, família, representatividade política… A militância eu faço na vida, não na ficção, quando me posiciono diante de algum questionamento, quando ajudo a construir eventos ou quando me preocupo em citar autoras mulheres, autoras negras, numa entrevista, por exemplo. Acho que a gente escreve com nosso corpo, com nossas vivências, o processo criativo se vale disso, é elaboração. Por exemplo, minha pesquisa de pós-doutorado, Geografias lésbicas, é algo que se encaixa em uma preocupação com o ativismo, com dar atenção a autoras LGBTs, mas dentro dessas obras meu foco é o espaço. Qual é nosso espaço no mundo? Quais são as geografias possíveis para nossos corpos?

VC. Como se autodefiniria como mulher-escritora no Brasil neste momento?
NBP. Não sei. Estamos vivendo um momento difícil. Acho que não posso definir nada agora. Talvez, se eu pudesse escolher algumas palavras para nortear meu caminho daqui pra frente, elas seriam paciência e resistência. Ah, importante: não confundir paciência com passividade.

VC. Em que projetos trabalha atualmente?
NBP. Um romance de formação que sai em julho, pela Companhia das Letras: Controle. Ando rabiscando uns contos de ficção científica e uns poemas sobre o fim do mundo. Tenho me dedicado a uns projetos de tradução, os quais gosto muito. Tem também projeto ultrassecreto que envolve mais três escritorxs. E o pós-doc, claro. Não sei dizer não.