Publicado há quase cinco séculos, O príncipe consagrou a obra e o nome de Maquiavel
*Retrato publicado na revista Vila Cultural Edição 181 (Maio/2019)
Quis o destino que, ao ter seu nome transformado em adjetivo, o pensador italiano Niccolò Machiavelli (1469-1527) – ou, aportuguesando, Nicolau Maquiavel –, nascido há exatos 550 anos, em maio de 1469, carregasse para sempre o peso de uma conotação negativa. Afinal, diz-se maquiavélico sobre alguém ou algo ardiloso, falso, astuto e capaz de qualquer coisa porque os fins justificariam os meios, segundo uma frase erroneamente atribuída ao filósofo de Florença.
Pelo sim pelo não, também sempre é tempo histórico de colocar pingos nos “is” (maquiavélicos que sejam) à luz de uma correção necessária: ainda que lidas como conselhos, as indicações e ideias de Maquiavel vinham da observação e da descrição do comportamento dos governantes de sua época, conforme ele o faz em O príncipe, sua obra mais ilustre – e que tem edições disponíveis na maioria dos idiomas. O impressionante é que o livro se mantém surpreendentemente atual, sobretudo no que diz respeito à conduta no poder.
Veja-se o que Maquiavel escreve em um trecho de O príncipe. “Daí nasce uma controvérsia, qual seja: se é melhor ser amado ou temido. Pode-se responder que todos gostariam de ser ambas as coisas; porém, como é difícil conciliá-las, é bem mais seguro ser temido que amado, caso venha a faltar uma das duas. Porque, de modo geral, pode-se dizer que os homens são ingratos, volúveis, fingidos e dissimulados, avessos ao perigo, ávidos de ganhos; assim, enquanto o príncipe agir com benevolência, eles se doarão inteiros, lhe oferecerão o próprio sangue, os bens, a vida e os filhos, mas só nos períodos de bonança, como se disse mais acima; entretanto, quando surgirem as dificuldades, eles passarão à revolta, e o príncipe que confiar inteiramente na palavra deles se arruinará ao ver-se despreparado para os reveses. Pois as amizades que se conquistam a pagamento, e não por grandeza e nobreza de espírito, são merecidas, mas não se podem possuir nem gastar em tempos adversos.”
Pouco se sabe sobre a vida de Maquiavel até ele chegar aos 30 anos e ser nomeado secretário e segundo chanceler da República Fiorentina. Nos círculos do poder, viajou em missão à corte de Luís XII e à do Imperador Maximiliano, acompanhou uma eleição papal e organizou uma força de infantaria para participar da captura de Pisa, em 1509. Depois de três anos, ela foi derrotada, o que implicou na retirada de Maquiavel da vida pública. Ele foi preso, torturado e se “refugiou” na companhia da esposa e dos seis filhos para estudar e escrever. Entre seus livros, além de O príncipe, Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, A arte da guerra e a comédia A mandrágora, que é uma sátira sobre a sedução. Por encomenda do cardeal Giulio de Médici, escreveu a história de Florença em 1525, dois anos antes de sua morte, em 1527.
Reeditado pela Penguin/Companhia das Letras dois anos atrás, O príncipe foi publicado postumamente, em 1532. Trata-se de uma extensa reflexão sobre a conduta do governante e sobre o funcionamento do Estado, produzida num momento da história ocidental em que o direito ao poder já não dependia apenas da hereditariedade e dos laços de sangue. “Mais que um tratado sobre as condições concretas do jogo político, é um estudo sobre as oportunidades oferecidas pela fortuna, sobre as virtudes e os vícios intrínsecos ao comportamento dos governantes, com sugestões sobre moralidade, ética e organização urbana que, apesar da inspiração histórica, permanecem espantosamente atuais”, diz o texto de apresentação do livro.
A arte da guerra, que a LP&M reeditou no ano passado, é um dos mais importantes tratados sobre estratégia militar de que se tem notícia. O livro apresentou, entre outros, o conceito de formação de tropas e conferiu à disciplina importância fundamental para o êxito do combate. Maquiavel desenvolveu seu pensamento a partir do isolamento do fenômeno do poder e da sua relação intrínseca com o uso da força e até mesmo da violência, em que são criados os meios para a conquista, a manutenção e a preservação do poder político.