Filosofia todo dia

Convidado do Navegar é Preciso, Mario Sergio Cortella trata de oportunidades em Ainda dá!, seu próximo livro

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 187 (Novembro/2019)

Mario Sergio Cortella é presença confirmada, em 2020, no Navegar é Preciso, a viagem ecoliterária à Amazônia realizada anualmente pela Livraria da Vila e pela agência Auroraeco. /Foto Tomás Arthuzzi/Nova Escola/Divulgação

O professor, filósofo e escritor Mario Sergio Cortella organiza sua vida de forma obsessiva. Ele segue, na prática, a ideia de que a disciplina é fundamental para conquistar a liberdade. Não por acaso, é um livre pensador da vida. Aos 20 e poucos anos, Cortella decidiu pela Filosofia e pela docência como ofício. Desde então não parou mais de ensinar ou aprender, sempre em uma via de mão dupla. Leitor voraz, construiu uma carreira acadêmica admirável e conseguiu se manter em plena sintonia com os novos tempos digitais do século 21. Com suas falas sempre inteligentes, influentes e inspiradoras, transformou-se também em um exímio comunicador contemporâneo.

Aos 65 anos, o escritor transita livremente entre gerações de jovens influenciadores digitais que se transformaram em fenômeno típicos da era da internet. No Instagram, a rede social baseada em imagens e que (ainda) é a sensação do momento, o escritor contabiliza 3,7 milhões de seguidores. Todos interessados na lógica que Cortella constrói ali. Nas fotos que publica, por exemplo, aparece frequentemente segurando um cartaz com uma frase-provocação (“O sofrimento é o intervalo entre duas felicidades”, de Vinicius de Moraes), no qual o filósofo insere a dúvida obviamente marcada, neste caso, pela caneta vermelha, com a pergunta: “Será?”.

No YouTube, o Canal do Cortella tem 700 mil usuários inscritos. Como qualquer influencer que se preze, o professor encara com desenvoltura peculiar as transmissões/aparições ao vivo. E ainda tira onda com o autorrigor da sua pontualidade. “Horário é horário, antes da hora não é hora, e depois da hora já não é mais hora”, diz, com sorriso no rosto, vozeirão de locutor, carisma cativante e acolhedor e olhar íntimo para a câmera antes de começar a responder as questões de sua fiel audiência.

Há dúvidas de toda ordem. Na primeira brecha, para conectar o que é virtual e o que é real, ele cita a “vida em live”, apropriando-se da linguagem mais atual ao fazer um trocadilho propositalmente pleonástico, algo como “a vida ao vivo”. Que é o que interessa na percepção dele.

Autor de dezenas de livros que propõem a filosofia como recurso e repertório para pensar permanentemente o trabalho, as relações, os desafios e dilemas de cada um, entre outras questões, Cortella é frequentador assíduo das listas de autores best-sellers. São mais de dois milhões de exemplares vendidos em três décadas. Qual é tua obra ? – Inquietações propositivas sobre ética, liderança e gestão (Vozes), de 2009, que está na 25a edição, é o seu livro mais vendido.

O escritor se prepara para lançar, em coautoria com o jornalista Paulo Jebaili, editor de seus livros mais recentes, o inédito Ainda dá! (Planeta), cujo título, ele confirma, já diz tudo. No livro, Cortella publica, por exemplo, versos da música Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro que foi um hino de resistência no período da ditadura militar brasileira, nas décadas de 1960/70.
Professor brilhante, com domínio absoluto do discurso mais didático quando se pronuncia, Cortella tem plena consciência de que a sua “espontaneidade para a fala é muito mais conectada”. Por isso, não raro, ele diz que verbaliza oralmente os livros antes de escrevê-los, conforme revela em entrevista exclusiva à Vila Cultural.

Convidado da edição especial de dez anos do projeto Navegar é Preciso em 2020, a viagem ecoliterária na Amazônia realizada pela Livraria da Vila e pela agência Auroraeco, Cortella diz que, a exemplo do que acontece nos dias de navegação pelo Rio Negro, tem enorme prazer de conversar sobre o encantamento pelos livros. “Há coisas em que eu naveguei na vida, dentro da literatura – científica, romanceada ou de ficção –, que tenho um gosto imenso de partilhar.” Leia a entrevista do escritor.

Vila Cultural. O senhor gosta de entrevistas?
Mario Sergio Cortella. Gosto muito. Faz 45 anos que sou professor e a docência, por exemplo, é uma forma de exposição pública contínua, um exibicionismo positivo, meritório. Eu não só gosto de entrevistas como me inclino nesta direção ao falar para revistas, jornais, rádios, TVs. É uma oportunidade de poder colocar um pouco daquilo que penso e indagar aquilo que nem sempre penso. E, vez ou outra, ser traído pela memória naquilo que eu achei que estava pensando.

VC. Com a trajetória acadêmica, já sabia que poderia ser escritor?
MSC. Não. Ainda que a carreira acadêmica exija a produção de textos, artigos, relatórios, eu não tinha a perspectiva de que seria um escritor de livros. Descartes – Paixão pela razão, meu primeiro livro, que agora só existe em e-book, fez 30 anos em 2018. O livro foi escrito numa máquina de datilografia, sob encomenda, e ser escritor não estava no meu horizonte naquele momento. Menos ainda eu imaginaria que seria capaz de vender mais de 2 milhões de exemplares. Ou seja: nem era uma intenção, que eu tivesse como um ponto de partida, e nem era algo natural pensar em um ponto de chegada. Foi uma construção marcada por algumas circunstâncias que me favoreceram e, por outro lado, por algo estupendo na minha vida que é o mundo digital. Nasci em 1954 e aos 40 anos, no topo da carreira acadêmica, o mundo digital eclodiu. E eu saí surfando na mesma vibe.

VC. Que sensação prevalece ao escrever?
MSC. Ela sempre variará porque não é uma única empreita, uma única tarefa. Em muitos momentos, escrever se dá por conta de demandas, obrigações, acertos. E em outros é uma experiência determinada pelo gosto imenso de continuar se comunicando. Num evento recente em Fortaleza, eu falava para 2,5 mil pessoas e às 21h30 começou a se formar uma fila para autógrafos que só terminaria à meia-noite e meia. Isso dá uma alegria enorme para quem publica. Imaginar que as pessoas estão ali, colhendo um pouco e falando sobre livros. “Isso me ajudou”; “isso fez bem pra minha vida”, as pessoas costumam dizer. Obviamente que ali não ouvi ninguém dizendo “ah, isso não presta”, porque se não nem estaria naquela fila. Mas de maneira geral, a ideia da produção do texto, da produção literária ou do texto acadêmico, ou do texto de comunicação de massa, que é o que eu faço também, pra mim é um grande prazer.

VC. O que significa capricho no texto para o senhor?
MSC. A atenção à informação correta, o saboreio da linguagem, aquilo que os portugueses antigos chamavam de uma escrita escorreita, isto é, que não se transforma num obstáculo, mas, ao contrário, desperta a capacidade de elevação de quem a ela tem acesso. Tenho o hábito antigo, como docente também, não só como escritor, de não me furtar a conceitos e palavras que sejam mais elaborados ou eruditos ou mais sofisticados. Não quero privar o leitor do conhecimento disso, mas tenho sempre a intenção didática. Se eu escrevo, por exemplo, a palavra biocídio, procuro em algum modo da escrita – e acho que isso também é capricho – fazer uma tradução que não seja ofensiva ao leitor na sequência, dizendo “biocídio é o assassinato da vida em qualquer condição”, mas dando uma eventualidade que permita a compreensão do conceito. No texto, sempre há uma atenção especial para a exatidão em relação a informações e datas, por exemplo, e expressões, e ao mesmo tempo a sensação de algo escorrendo, que permita um mergulho na compreensão do leitor. E eu sempre fui iluminado, no sentido mais amplo da palavra, por Mario Quintana, que dizia que quando o leitor tem que perguntar ao autor o que ele quis dizer com isso, um dos dois é burro. Sempre acho que o burro sou eu. Afinal, a minha intenção é comunicar. Se o leitor não compreendeu, a responsabilidade é minha. Sou o didata e eu preciso sê-lo. Por isso me coloquei também essa tarefa de tratar da filosofia do cotidiano, mais compreensível e mais prazerosa, sem a banalização daquilo que é a produção do conhecimento filosófico.

VC. Oralidade e escrita se confundem na sua obra.
MSC. Sim, em grande medida. O que digo sobre o propósito didático é exatamente isso. Na época em que foi lançado, o livro Descartes tinha a intenção de emocionar o aluno do segundo grau, o atual ensino médio, para a filosofia. Embora não fosse um livro didático stricto sensu, ele tinha exatamente essa intenção de emocionalidade. Foi um ponto de partida que acabou capturando parte do meu estilo como escritor. Os leitores identificam isso até mais do que eu mesmo. “Quando eu te leio”, me dizem, “é como se eu estivesse te ouvindo, parece que você está falando”. E aí eu preciso revelar que o primeiro livro foi falado antes de ser escrito. Falado por mim mesmo. Tão logo recebi a encomenda, em 1988, quando o publiquei, eu peguei um gravador Aiwa às 20h de um sábado, pus pilhas novas, e falei o livro inteiro até às 4h da manhã de domingo. Porque a minha espontaneidade para a fala é muito mais conectada. E esse modo de fazer, de alguma forma, eu mantenho até hoje.

VC. Ainda tem esse hábito então?
MSC. Livros como Por que fazemos o que fazemos? e A sorte segue a coragem, por exemplo, foram falados antes de serem transformados em texto. A minha produção mais recente se mantém assim: primeiro começa com a fala. O Paulo Jebaili, meu editor, vai me questionando com os temas para termos mais compreensão, e isso se transforma num bloco temático, que depois será organizado, estruturado. A fala sempre antecede o texto e eu gosto de ouvir quando dizem que a leitura dos meus livros é como se eu estivesse ao lado do
leitor, falando.

VC. Podemos falar sobre o novo livro?
MSC. Sim, é um livro com uma textualidade inédita, que sai pela Editora Planeta. É o primeiro em coautoria com o Jebaili. Ainda dá!, o título, é a própria lógica do livro. E não tem nada a ver com o dadaísmo. Tem a ver com oportunidades.

VC. E o senhor acredita mesmo que ainda dá?
MSC. Sempre. Uma das coisas mais belas da nossa trajetória é a possibilidade de fazer o que fez Steven Spielberg no filme E.T. Há duas coisas no filme que são marcantes para esse Ainda dá!. Primeiro, retomar a clássica cena de Michelangelo na Capela Sistina, quando o menino e o extraterrestre encostam os dedos e não se sentem num grande sertão. Aquele dedo encostado é a vereda. E a segunda é a cena mais marcante para mim em termos de expressividade do Ainda dá!, que é o voo das bicicletas. Ser humano é acreditar que a bicicleta voa. Afinal de contas, a primeira palavra que o ser humano aprende a falar não é “mamãe”. É “não”. E só quem pode dizer não pode dizer sim. E, como eu digo, ser humano é sempre ser capaz de achar que ainda dá.

VC. Na prática, significa o quê?
MSC. Não deixar apodrecer a esperança, não esterilizar o futuro, não perder de maneira alguma a possibilidade de recusa. Em grande medida, inspirado naquilo que os compositores Maurício Tapajós e Paulo César Pinheiro registraram na música Pesadelo. “Você corta um verso e eu escrevo outro”, diz um dos trechos da canção. “Quando um muro separa uma ponte une”, ouve-se em outro momento. E aí vem um refrão magnífico: “De repente olha eu de novo”. E eu quero lembrar esse trecho da música inclusive porque foi a primeira poesia musicada que eu citei em um livro. “Você me prende vivo, eu escapo morto”. De repente, olha eu aí de novo.

VC. Parece sob medida para o cidadão brasileiro em 2019?
MSC. É por isso mesmo que ainda dá. Alguns anos atrás eu estava com um grupo de colegas da área da educação e com o ex-reitor da Universidade de Cambridge, que tem mais de 800 anos, e em algum momento ele disse algo que só um britânico entenderia: “Vocês são muitos ansiosos”. O mais difícil é justamente nos primeiros 400 anos. Isso marca nossa condição. Por isso o Ainda dá!. Porque nós somos muito jovens. Os britânicos demoram 500 anos para fazer um jardim. Talvez a gente tenha que se preparar um pouco mais para fazer uma nação.

VC. Como mantém o encantamento pela vida?
MSC. A manutenção desse encantamento vem em grande medida porque sou leitor. Eu leio desde os seis anos de idade. Gosto imensamente de navegar nessa direção. E gosto, além de tudo, de fazer com que as pessoas se emocionem com as obras que outros autores escreveram. Não por pudor, mas por ser leitor, também sou muito mais um indicador de livros alheios do que dos meus próprios livros. E isso não é uma modéstia simulada. Há coisas em que eu naveguei na vida, dentro da literatura – científica, romanceada ou de ficção –, que tenho um gosto imenso de partilhar.

VC. É a partilha que nos encanta?
MSC. É impossível ver uma belíssima lua cheia sozinho. Pode dar tristeza ao invés de encantamento. Não dá para ver um pôr do sol ou uma flor bonita ou um prato exuberante que você aprecia sem querer partilhar. Por isso o encantamento vem dessa partilha. E não acho possível que alguém possa seguir adiante sem encontrar alguns dos motes que a literatura colocou. E daí vem o encantamento de continuar lendo, com uma vantagem adicional para mim hoje: por conta da tecnologia, eu posso até me dar ao gosto de ler livros que em público teria alguma restrição de fazê-lo, seja pela exibição da capa, do exemplar. Não por conta da censura externa, mas por conta de que hoje o número de pessoas que são capazes de se dedicar ao julgamento é muito grande. O e-book, por exemplo, permite que eu tenha maior privacidade na leitura, e leia inclusive os meus adversários sem que ninguém detecte. Mas como disse alguém cujo nome eu não me lembro agora, um escritor não lê o outro – e sim o vigia.