A voz do Brasil

*Matéria publicado na revista Vila Cultural 179 (Março/2019)

Ilustração Jonas Ribeiro Alves

A exibição da minissérie Elis – Viver é melhor que sonhar, na Globo, no começo deste ano, ainda ecoa como iniciativa louvável para celebrar uma vez mais a memória, o talento e as saudades de Elis Regina, uma das grandes artistas brasileiras do século 20 – e de todos os tempos. De personalidade intensa, a cantora sempre pensou e se comportou como se estivesse à frente de sua época. Jovem ainda, Elis já sonhava, por exemplo, com uma sociedade matriarcal só pela hipótese de uma experiência que, na visão dela, seria mais justa, agradável e afetuosa para homens e mulheres, como citou, às vezes em tom de brincadeira, em mais de uma entrevista.

Comprometida prioritariamente com a liberdade para viver e realizar, e empreender artisticamente, Elis foi, do jeito dela, feminista nas ações e na demonstração de que ética, respeito e conduta pessoal e profissional, independentemente dos conflitos que cada um precisa viver, tem menos a ver com gênero e mais com o livre arbítrio das escolhas que fazemos na vida. Se não tivesse morrido precocemente, aos 36 anos, em janeiro de 1982, quando o Brasil ficou chocado com a sua partida, Elis completaria 74 anos no dia 17 de março. Provavelmente, porque sonhar ainda é preciso, manteria a voz afinadíssima e o potente lugar de fala que sempre fez reverberar ideias brilhantes.

No livro com as entrevistas feitas por Clarice Lispector que a Rocco publicou em 2007 há uma conversa memorável da escritora com a cantora, ainda na primeira fase de sua carreira gloriosa. Clarice dirige-se a Elis com o seguinte comentário-pergunta: “Você tem um tipo extrovertido. É o natural em você ou você se faz assim a si mesma para não se deprimir, ou seja, fala tudo para não ficar muda?” A resposta de Elis: “Sou um ser do tipo sanguíneo que oscila muito. Tenho momentos de extrema alegria e momentos de profunda depressão. Não obedeço a uma agenda: hoje vou sentir isso, amanhã vou sentir aquilo. Reajo aos acontecimentos à medida que o ambiente reage sobre mim. Mas como sou hipersensível, as coisas têm às vezes um valor que a maioria das pessoas acha ridículo. Mas eu sou assim mesmo. Por exemplo, às vezes fico furiosa com uma pessoa cujo problema talvez você contornasse com um simples puxão de orelha. Ao mesmo tempo, tomei agora consciência de que essa não é uma atitude lógica e estou procurando me reestruturar.”

Quando Lispector pergunta o que ela faria da vida se não fosse cantora, Elis diz sinceramente não saber. E mostra a que veio depois da insistência de Clarice para que ela pense um pouco. “É que o palco está tão ligado à minha maneira de ser, à minha evolução, aos meus traumas, que eu acho que me separar de um palco é a mesma coisa que castrar um garanhão: ele deixa de ter razão de existir.”

Faz todo o sentido. Em duas décadas de carreira, foram mais de 30 discos, nos quais ela somou incontáveis momentos no palco e sucessos que permanecem atuais e intemporais, cantados por muitas gerações. De Arrastão (Edu Lobo e Vinicius de Moraes) a Canção da América (Milton Nascimento e Fernando Brant), ou Como nossos pais (Belchior) e Atrás da porta (Francis Hime e Chico Buarque), ou ainda Romaria (Renato Teixeira), O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco e Aldir Blanc), que se transformou em hino da abertura política, e Águas de março (Tom Jobim), só para citar os que todo mundo sabe cantar, Elis deixou diversas versões musicais definitivas.

Da ascensão fabulosa ao sucesso até chegar ao amadurecimento musical, Elis viveu os horrores políticos de seu tempo, com o terror imposto pelos militares, sem deixar de experimentar a felicidade na vida pessoal, sobretudo na parceria amorosa e artística com o pianista César Camargo Mariano, com quem fez o show histórico Falso brilhante, que rendeu um disco homônimo lançado em 1976. O disco, que é maravilhoso, tem o repertório baseado no espetáculo que ficou em cartaz no Teatro Bandeirantes, em São Paulo, de dezembro de 1975 a fevereiro de 1977, somando 257 apresentações e público de 280 mil pessoas. Porque Elis nasceu para permanecer sempre no palco dos grandes artistas.