Antologia do humor russo reúne 57 textos de 37 autores, alguns traduzidos pela primeira vez para língua portuguesa
Se a arte e a literatura são “refúgios” dos mais vitais em contextos econômicos e políticos muito intensos – ou tensos, dependendo do ponto de vista –, o lançamento este mês de Antologia do humor russo (1823-2014), título da Editora 34 exclusivo para a Livraria da Vila, é uma excelente notícia para quem busca um porto seguro na leitura.
Organizado pela professora Arlete Cavaliere, especialista no tema, trata-se de um trabalho de fôlego (o livro tem mais de 570 páginas) que mobilizou dezenas de tradutores e confirma a atuação admirável da editora ao disponibilizar, no Brasil, textos e autores originários de um país que está entre os mais relevantes na produção literária mundial.
O livro é, como diz Cavaliere, um convite ao riso. “Um riso irreverente e crítico, cuja natureza popular, insubmissa e contestadora – não raro expressão satírica da realidade russa –, pode abolir as hierarquias éticas e sociais, e revelar, afinal, a vibração interior de um universo cultural e ideológico”, escreve a professora no texto de apresentação da antologia.
Além de visitar, sob a perspectiva do humor, uma sequência cronológica da literatura produzida ao longo de quase 200 anos, a antologia tem outros méritos. Entre os quais, o de juntar autores muito conhecidos, no Brasil e no mundo, e outros que aparecem como gratas surpresas. No total, são 37 autores. Há pelo menos 47 textos inéditos em livros e 11 autores nunca antes publicados no Brasil.
“Esta amostragem literária de base cômica apresenta tal variedade de formas e estilos do narrar que seria impossível, e mesmo imprudente, filiar alguns destes textos a um gênero literário específico: conto, novela, monólogo, escrita autobiográfica, epistolografia, depoimento, impressões, escritas de si, prosa poética… Como classificar os Trechos de Paris (Notas do Homem-Ganso) de Maiakóvski? Ou então, o Manual para senhores recém-chegados a Moscou de Sacha Tchiórni? E as estranhíssimas ponderações ‘históricas’ de Nadiéjda Téffi no texto A Grécia? Ou ainda, o paródico diário de Lev Lunts, Ordem de despacho nº37 (Diário de um chefe de chancelaria)? Textos, aliás, publicados pela primeira vez em língua portuguesa”, escreve Arlete.
Para leitores já familiarizados com nomes que, pela prosa ou ficção, ganharam o mundo a partir do século 19, vale lembrar que eles estão todos com espaço garantido quando a criatividade tem a ver com humor. Gógol,
Dostoiévski, Tchekhov, Tolstói e Saltikóv-Schedrin, por exemplo, aparecem ao lado de “satiristas vigorosos” como Aviértchenko, Zamiátin, Mikhail Zóschenko, Sacha Tchiórni, Ilf e Petrov e Nadiéjda Téffi, além de, como explica Arlete, representantes das vanguardas russas da década de 1920, como Maiakóvski e Kharms.
A professora destaca ainda a importância da tradução para viabilizar editorialmente um projeto dessa dimensão. Ela escreve: “Transpor a gênese essencial de um texto cômico russo para a nossa língua não é, pois, uma operação isenta de dificuldades, dúvidas e hesitações. Os tradutores que participaram desta antologia não temeram enfrentar tais desafios. Com audácia, competência e maestria se lançaram às estratégias tradutórias com um único e meritório fim: compartilhar com o leitor brasileiro a aventura do riso russo. A todos esses artistas da palavra, o meu agradecimento. Desse trabalho coletivo, que contou com a valiosa contribuição dos editores deste volume, resta ainda a clara demonstração de que, se a tradução é, afinal, uma vivência interior do mundo e da técnica do traduzido, uma desmontagem e uma remontagem da máquina da criação, ‘aquela fragílima beleza aparentemente intangível que nos oferece o produto acabado numa língua estranha’, como bem expressou Haroldo de Campos, então a tradução também é uma operação da crítica literária.”
Leia aqui uma cronologia sobre a Rússia e sua literatura, com a assinatura do editor Danilo Hora, e abaixo um conto (divertidíssimo, claro) de Mikhail Zóschenko, de 1953, traduzido por Denise Sales e que integra os textos selecionados
para a Antologia.
História de um escritor iniciante
Mikhail Zóschenko
Neste outono, escrevi uma pequena novela e levei-a a uma editora. Um mês depois, fui saber a resposta e, para minha surpresa, a secretária disse:
— Sua novela foi aceita e será publicada. Se quiser, espere o editor-chefe. Ele voltará daqui a uma hora.
Enquanto esperava, fiquei andando pelo corredor, numa ansiedade enorme. De repente, numa das portas, meus olhos viram uma placa branca com a inscrição: “Contabilidade”.
Deu vontade de saber quanto me pagariam pelo trabalhinho.
Não, não é isso, eu amo a literatura com todo meu coração, desinteressadamente e, para mim, nesse caso, o dinheiro não desempenha papel decisivo. Mas não quero ser hipócrita, reconheço que a questão do dinheiro põe uma pitada de animação no negócio.
Em resumo, entrei na contabilidade para esclarecer a situação material.
O contador, depois de folhear o meu manuscrito, disse que por esse trabalhinho pagariam uns sete mil.
A soma significativa deixou-me aturdido e despertou em mim uma onda de energia criadora. Queria escrever mais e mais. E ali mesmo, no corredor, depois de afundar-me no sofá, comecei a esboçar o plano de outra novela.
Entretanto, o editor-chefe voltou logo. Disse-me brevemente:
— Sim, publicaremos o seu trabalhinho, embora perceba-se nele certa imaturidade. Mas isso é próprio de escritores iniciantes, dos quais não temos o direito de exigir resultados imediatos.
Agitado pelos acontecimentos, exclamei:
— Oh, permita-me trabalhar um pouco mais em minha novela. Quero deixá-la num brilho só.
O editor-chefe elogiou a boa intenção e me deu um mês de prazo para fazer as correções.
A partir daquele dia, passei um mês inteiro debruçado sobre minha novela. Além disso, sem confiar nas próprias forças, envolvi no negócio um literato idoso, que morava em nosso prédio. Esse velho escritor, não sei bem por que, até chorou ao saber do meu desejo de levar minha novela à extrema perfeição técnica. Em meio a lágrimas, proferiu solenemente:
— Ah, meu jovem, em todos esses sessenta anos de atividade literária, não mais de duas vezes encontrei-me em condições de lapidar meus manuscritos! Esse trabalho, acredite, não conforta o coração e costuma arrancar lágrimas, mas, como a novela não é minha, de bom grado mergulharei uma vez mais, junto com o senhor, nas águas sagradas da arte.
E então, depois de agarrar um lápis, o velhinho começou a riscar de minha novela, sem piedade, uma série de cenas, muitos diálogos e repetições que, como ele afirmou, obscureciam o negócio.
Em seguida levei o manuscrito corrigido novamente à editora. E o editor-chefe, depois de ler o texto, exclamou:
— Agora sim sua novela está em perfeito estado!
Uma semana depois, passei pela contabilidade para receber os honorários. E então, para minha surpresa, soube que receberia pela novela toda cerca de três mil, em lugar dos sete.
O contador, defendendo-se dos meus ataques, disse com uma risadinha:
— Que tenho eu com isso? Provavelmente o senhor se deu o luxo de encurtar a novela. Pois a culpa é toda sua.
Corri então para o editor-chefe, mas ele disse:
— Sim, é claro, não posso contestar, sua novela melhorou imensamente depois do acabamento. Mas isso se refletiu nos seus honorários.
À noite, já em casa, por muito tempo não consegui pregar os olhos. Andava de um lado para o outro do quarto, tentando resolver a dolorosa questão: como me comportar no futuro, com meus próximos manuscritos — deixá-los naquele estado inchado, assim como saem de sob a pena, ou encurtá-los de algum modo?
Minha mulher, caindo de sono, me disse:
— Ah, faça como quiser! Mas, na minha opinião, é estupidez jogar fora um dinheiro que já está no bolso.
Ao raiar do dia, apesar de tudo, resolvi abreviar minhas obras, mas abreviar com moderação. Além disso, fiquei pensando: se antigamente pagassem poemas por linha, então, provavelmente, o hexâmetro não teria surgido.
Lembrei-me da Odisseia, de Homero:
Tua narrativa, ancião, é irretocável. Não
Há um só termo vão que margeasse a moira.
Não há de te faltar casaco ou algo mais
Que é justo receber o pobre suplicante.
Não, não teriam surgido aquelas linhas exuberantes se o contador da antiguidade tivesse se metido no negócio.
(1953) Tradução de Denise Sales