Depois de tratar de fé e religiosidade com todo o fascínio e o respeito de um ateu confesso, o escritor e historiador Leandro Karnal, convidado do Navegar é Preciso, prepara um livro sobre Shakespeare e outro sobre o preconceito
*Entrevista publicada na revista Vila Cultural 163 (novembro/2017).
Fotos R. Trumpauskas/Divulgação
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e professor na Unicamp, o escritor e historiador Leandro Karnal se transformou em autor best-seller – com livros como Todos contra todos – O ódio nosso de cada dia (Leya), Diálogo de culturas (Contexto), Pecar e perdoar – Deus e o homem na história (HarperCollins), A detração – Breve ensaio sobre o maldizer (Unisinos), entre outros – e tem atuado como um dos intelectuais e pensadores mais solicitados do país para palestras, aulas e participações especiais que o transformaram em autêntico formador de opinião do Brasil contemporâneo. Ele acumula mais de 1 milhão de seguidores em redes sociais e seus vídeos e frases circulam com enorme popularidade na internet.
Superarticulado e com um repertório de temas, argumentos e interesses que o aproximam de audiências das mais heterogêneas, Karnal, um ateu confesso, lançou recentemente dois novos livros, ambos realizados a quatro mãos e que têm a fé e a religiosidade como objeto de discussão. Em parceria com o Padre Fábio de Melo, fez Crer ou não crer (Planeta), que documenta várias conversas dos dois interlocutores. Com o professor Luiz Estevam de O. Fernandes é o coautor de Santos fortes – Raízes do sagrado no Brasil (Anfiteatro), em que reconstroem, com bom humor e simplicidade, biografias e hábitos religiosos do cotidiano de fé do Brasil a partir da trajetória de santos populares como São Jorge, São João e Santo Antônio, além de dedicarem um capítulo às múltiplas faces e títulos de Nossa Senhora e outro aos “santos fora do altar”, como Padre Cícero, escrava Anastácia e outros casos curiosos de devoção popular.
Colunista do jornal O Estado de S. Paulo e com participações diárias nas rádios e canais de TV do Grupo Bandeirantes, Karnal não para. Em janeiro de 2018 vai “refugiar-se” em um mês de estudo e pesquisa na Inglaterra, a terra do dramaturgo, para concluir um livro sobre Shakespeare. Também está trabalhando em um livro sobre preconceito e não perde de vista o desejo de melhorar seu texto, cuja fluência já é admirável, e seguir perseguindo a sabedoria como propósito de vida. Convidado da próxima edição do projeto Navegar é Preciso, que acontece em abril do ano que vem, ele nos concedeu a entrevista a seguir.
Vila Cultural. O senhor gosta de entrevistas? Por quê?
Leandro Karnal. A resposta deveria ser ambígua: sim porque é uma maneira de divulgar meu trabalho; sim porque por vezes existe empatia entre repórter/perguntas/entrevistado; sim porque as entrevistas mostram como alguém está me vendo e analisando; sim porque contemplam meu narciso; sim porque aprendo ao responder. Da mesma forma, não porque são muitas e perdem um pouco do viço da novidade; não porque repetem questões sobre as quais já falei inúmeras vezes; não porque algumas perguntas demandariam uma intimidade e uma sinceridade que ultrapassariam as fronteiras do permitido no momento e, por fim, não porque aparentemente o que eu queria dizer sobre um tema está em livros e palestras já minuciosamente explicitado.
VC. Como surgiu a possibilidade de fazer Crer ou não crer?
LK. Li, há anos, Em que creem os que não creem (de Carlo Maria Martini e Umberto Eco), que era um debate epistolar entre um cardeal católico e um intelectual ateu. A ideia surgiu ali. Depois, mais recentemente, comprei A monstruosidade de Cristo (Slavoj Zizek e Jonh Milban) com propósito parecido mas maior pretensão e peso dos autores. A partir destas obras, pensei: o público brasileiro poderia ler algo entre pessoas que são conhecidas pela fé e pelo ateísmo. Acima de tudo, imaginei que o livro seria um bom debate pelo conteúdo, mas também pela atitude: nem eu e nem o Padre Fábio desejávamos “lacrar”, neologismo para calar o adversário com argumentos imbatíveis. Queríamos conversar sobre dois projetos distintos, com metas diversas, porém, mediadas pela humanidade de ambos e pela amizade.
VC. Qual é o maior desafio para estabelecer o diálogo?
LK. Nenhum de nós é dogmático e ninguém precisava “vencer” o debate. Assim, quem procura sangue e apologética, vai se decepcionar com o texto. O Padre Fábio vive um cristianismo encarnado na existência, uma fé que busca o outro na sua fronteira e na sua especificidade. Ouso aproximar esta postura da de Jesus: janta com publicanos, festeja com Zaqueu, perdoa a adúltera e não faz da crença um aríete de humilhação do outro. Meu ateísmo nunca foi catequético e não quer ninguém abandonando sua crença por minha causa. A Cristologia encarnada do Padre Fábio e meu horror à catequese apologética aproximaram a conversa. Assim, embalados na serenidade do afeto, falamos das nossas posturas, convicções, alegrias e medos. Foi muito bom.
VC. Como não cair na tentação do “ataque” ou da competição?
LK. A tentação do ataque revela insegurança do interlocutor e narciso fraturado. Ataco porque me incomoda e tento destruir minha dúvida atacando. Para alguns religiosos, a tentação tem origem no demônio. Para mim, tem origem na vaidade. Como a vaidade é o primeiro pecado de Lúcifer, podemos conversar tranquilamente sobre o lado obscuro da psique humana (ou da alma) que sente prazer provocando a dor no outro. A verdade está excluída deste tipo de debate. O debate vaidoso domina a internet. Como diria Paul Valéry, quem julga não vai ao fundo de uma questão.
VC. De onde vem o seu interesse pelos santos populares do Brasil e como se deu o trabalho com o professor Luiz Estevam Fernandes para Santos fortes?
LK. Sou um estudioso de hagiografia há décadas. Meu doutorado tratou também disto. Dou cursos de pós-graduação sobre textos e fontes de sagrado, como a Bíblia ou a Legenda Áurea. Tenho um profundo interesse em tudo que expressa o humano. Luiz Estevam trabalha com América Colonial também e, como todo pesquisador de colônia, está imerso em fontes religiosas. O resultado foi um livro que nos deu muito prazer e muita vontade de debater e aprender.
VC. O que é incontornável quando temas como fé e espiritualidade passam a ser objetos de interesse e pesquisa de um autor assumidamente ateu?
LK. Como pesquisa nada é incontornável. Uma vez eu disse a um entrevistador que eu era um ginecologista homem, pesquisava o que não tinha. A ideia é divertida, mas é parcial: o ginecologista não tem mas observa diariamente a existência real do que não possui no consultório. Poderia dizer: sou um psiquiatra, trabalho com esquizofrenia e tento entender os mecanismos do paciente que vê coisas que eu sei que não existem. Continuamos em um campo problemático, pois eu acabo de aproximar a fé de uma experiência de doença, algo que Freud imaginou, porém eu nunca compartilhei da convicção psicanalítica clássica sobre o tema. Eu prefiro dizer que o pesquisador, tendo fé ou não, tem a sedução do saber, a vontade de aprender, o desafio do seu objeto. O historiador Quentin Skinner diz que o bom pesquisador deve eleger temas fora da sua área de afeto, pois, caso contrário, acaba confundindo paixões com metodologia. Não segui o conselho do grande autor inglês: sou absolutamente seduzido por santos, relíquias, textos sacros, narrativas de milagres, peregrinações etc. Entro feliz em igrejas, observo imagens, participo de cerimônias, analiso liturgias e práticas. Estou finalizando um curso na pós da Unicamp sobre o teórico Michel de Certeau e a possessão [das freiras] de Loudun na França do século 17. Se fosse possível, passaria o resto da vida lendo e aprendendo sobre estes fatos, pois poucas coisas revelam tanto o humano como a religião e a religiosidade.
VC. Que espaços podem ser preenchidos na história da cidadania no Brasil?
LK. Desde a origem, a cidadania no Brasil (ou nos EUA) foi concebida como um modelo ideal não acessível a todos. Na colônia, havia os “homens bons”, ou seja, brancos livres e ricos. Exerciam participação nas câmaras municipais. Nos EUA, o conceito era “nós, o povo” em 1776. Tanto lá como aqui o conceito ideal foi sendo ampliado para brancos pobres, negros, mulheres etc. Passados alguns séculos, nosso conceito de cidadania ainda é excludente. Pergunta técnica para cada um responder silenciosamente no seu quarto: o exército entrou na comunidade da Rocinha há pouco no Rio. Seria concebível a mesma operação em um condomínio de luxo da Barra da Tijuca ou em um prédio da Vila Nova Conceição, em São Paulo? Dependendo como você responder a esta pergunta de foro íntimo e de argumentação livre você estará demarcando um terreno sobre cidadania. Essa resposta é a sua fronteira sobre cidadania.
VC. O que o senhor mais tem aprendido com seus alunos ou nas palestras que faz Brasil afora?
LK. Que o Brasil não é o governo do Brasil. Que o Brasil lota auditórios em uma sexta à noite para pensar sobre ética. Que o Brasil está muito irritado com os canalhas que nos governam, pelo menos com o grande número de canalhas, com honrosas e notáveis exceções de bons políticos. E, por incrível que pareça, a conclusão mais extraordinária é a mais banal: o Brasil não se resume a Rio e São Paulo.
VC. A que atribui a sua habilidade com as palavras?
LK. Estudar literatura retórica ajuda muito: Cícero, Quintiliano, Bossuet, Vieira etc. Tenho um amor pelas palavras que foi reforçado na escola e encontrou apoio caseiro. Porém, existe uma prática também. Hoje eu falo um pouco melhor do que falava há 30 anos. Prática ajuda e, por fim, existe uma relação de desejo entre o orador e seu público e ela deve ser recíproca. Sou um professor: sempre quero que os alunos entendam. Para isto, humor, sínteses, imagens, gestos e gradação de voz ajudam. Meu objetivo maior é a compreensão. Conheço colegas brilhantes, geniais no conhecimento, densos no saber e que preferem nunca conspurcar a pureza do saber com sua sistematização para grandes públicos. Nunca achei que eles estivessem errados, mas meu objeto é o público e o que eu falo e escrevo é um signo aberto, mas acessível ao maior número possível.
VC. Como lida com a notoriedade da pessoa pública em que se transformou?
LK. Nem sempre é fácil. A experiência do fã que me encontra é única e especial, mas para mim é a centésima do dia. Tenho me policiado sobre isto. Porém, nem sempre é fácil. Há aquele que gosta do que falo ou escrevo e sorri para mim, feliz e discreto. Há o que quer a foto apenas. Há o que imagina que sou seu amigo há tempos, porque a pessoa, como ouço, “vai para a cama comigo com frequência” (ou seja, ela me escuta quando vai dormir), todavia há o esquecimento que a intimidade, neste caso, é só dela. Há corporalidades variadas: algumas pessoas agarram muito, interagem não de forma calvinista, porém kamasútrica. E há os muito invasivos de jantares familiares ou até do momento no banheiro.
VC. Que percepção tem da educação no Brasil em 2017?
LK. A escola é parte da minha vida. Acho que nós, educadores, estamos perdendo o bonde do mundo que rompeu com a memória como fonte e elegeu a criatividade como guia. Quando eu digo que perdemos o bonde já sinto que estou defasado até na metáfora. A escola, em geral, não percebeu que o celular é a memória das pessoas (como um HD externo) e que não há mais sentido na busca da memória como objetivo. Seria como insistir em usar nanquim na era do tablet ou reforçar números romanos como essenciais para a compreensão do mundo. O que é essencial é o aluno perceber o que é um sistema numérico simbólico ou posicional e isto ele pode saber estudando números maias.
VC. Como lida com a responsabilidade de ser um formador de opinião?
LK. Este é um papel de grande responsabilidade e nem sempre tenho a extensão clara do que ocorre. Queria sempre lembrar que minha subjetividade permanece, que nunca é uma opinião isenta ou acima da história. Sempre insisto: não busque gurus, busque boas perguntas que uma pessoa pública pode estimular ou não. Nunca seja um minion.
VC. O senhor diz que pessoas medíocres não conseguem perdoar o sucesso alheio. Isso acontece com o senhor?
LK. Acontece com todo mundo, inclusive comigo. Tenho a experiência que pessoas felizes com o que fazem (que pode ser algo muito simples) não se incomodam com o sucesso alheio. O ressentimento é uma erva daninha que nasce do solo da tristeza e da frustração. Todos invejamos e temos cobiça. Isso é parte da nossa natureza, minha inclusive. Porém, o que me incomoda é como algumas pessoas insistem em fazer o papel da mariposa e continuam se queimando ao tocar em uma luz que não é a sua. Pior, a luz da pessoa poderia ser intensa, bastaria deixar de se sentir atraído pela gravidade do astro ao lado. Queria dizer a todos, a todas e a mim mesmo sempre: busque sua luz, seu caminho, sua senda e sejam mais felizes. Há muita dor no voo vicário.
VC. A que atribui o seu sucesso?
LK. Não sei. Realmente não sei. Talvez não exista uma explicação razoável e racional. Existem fatores: momento, preparo, inclinações e novos meios de difusão. Ao responder isto, já incorro na soberba de concordar que sou uma pessoa de sucesso. Seria também possível dizer que fama ou venda de livros ou demanda de palestras é sim um indicador de um tipo de sucesso. Em outros campos este brilho pode não ser tão intenso ou marcante. Ou seja: ninguém é um sucesso total.
VC. Quais são os projetos que o mobilizam atualmente?
LK. Estou escrevendo sobre Shakespeare e vou passar o mês de janeiro estudando na Inglaterra para isto. Tenho um livro sobre preconceito sendo elaborado, quero melhorar minha escrita e mudar a maneira de fazer palestra de forma muito radical. Tenho tentado me reinventar e continuar pensando. Amo o que faço, adoro ser professor, adoro a Unicamp e meus alunos, sou feliz com as férias que faço com a família e gostaria de melhorar muito como pessoa. Está difícil, mas tenho grande mobilização interna para tentar ser sábio um dia.
Mesmo!