*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 188 (Dezembro/2019)
Livro do período do movimento abolicionista traz história de abusos contra mulheres escravizadas
A escritora e antropóloga Lilia Schwarcz e o historiador e escritor Sidney Chalhoub, que assina o posfácio do livro, participam de um bate-papo especial dia 18 de dezembro, na loja da Fradique, para falar sobre o lançamento, pela Chão Editora, do romance Fantina – Cenas de escravidão, de F. C. Duarte Badaró. Publicado pela primeira vez em 1881, o livro preenche uma lacuna importante na literatura brasileira. Além de documentar usos e costumes do período do movimento pela abolição da escravatura, o romance também diz muito sobre o Brasil atual, em que diversas questões civilizatórias colocadas pela luta contra a escravidão estão novamente em pauta, em pleno século 21.
Em Fantina, o personagem Frederico, malandro e sensual, conquista a viúva dona Luzia por puro interesse. Depois do casamento, estabelece-se uma situação típica das fazendas escravistas do século 19: senhor da casa, o aventureiro inescrupuloso quer também exercer seu direito de posse sexual sobre as escravas. A figura desse malandro urbano, tocador de viola, adentra o universo da fazenda e – em meio a vívidas descrições de saraus regados a violão e modinhas na casa-grande, e de batuques de escravos nos terreiros – desencadeia o drama de Fantina, jovem e bela escrava de dona Luzia. Como outras obras literárias sobre a escravidão, Fantina caiu em completo esquecimento.
Mineiro de Piranga, Francisco Coelho Duarte Badaró, que assinava F. C. Duarte Badaró, nasceu em 1860, se formou pela Faculdade de Direito de São Paulo e fez carreira como advogado em Ouro Preto. Foi eleito deputado federal constituinte em 1890 para o primeiro congresso republicano brasileiro. Ele escreveu Fantina quando ainda era estudante de direito.
“O livro de Badaró mantém diálogo intenso com outras obras literárias do período, que também tematizavam a escravidão, e surpreende por seu desfecho contundente, que se recusa a edulcorar a rotina do abuso das mulheres escravizadas. Essa prática, como devia saber o estudante de direito autor do romance, ocorria com a conivência das autoridades judiciárias e sob o manto protetor do ordenamento legal existente”, escreve Sidney Chalhoub na orelha do livro. No posfácio, ele analisa o papel fundamental que a literatura desempenhou no movimento abolicionista brasileiro. “Então e agora, mentes e corpos de mulheres negras movem estruturas e despertam reações contrárias violentas. Ao mesmo tempo, exigem de todos nós a ousadia de imaginar e realizar um outro futuro em liberdade”.
Professor dos Departamentos de História e de Estudos Africanos e Afroamericanos na Harvard University desde 2015, Chalhoub lecionou durante trinta anos na Unicamp, onde é professor titular colaborador. Sobre escravidão e literatura, publicou, pela Companhia das Letras, Visões da liberdade – Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (1990), Machado de Assis – Historiador (2003) e A força da escravidão – Ilegalidade e costume no Brasil oitocentista (2012), entre outros livros. Chalhoub concedeu a seguinte entrevista à Vila Cultural:
Vila Cultural. Qual a importância do lançamento de um livro como Fantina neste momento da história do Brasil?
Sidney Chalhoub. Em primeiro lugar, é sempre importante resgatar um romance que, sem ser uma obra-prima, é bem interessante do ponto de vista da história literária e da história social do país. O texto flui, prende a atenção, desafia a imaginação de leitores e leitoras atuais ao mexer na ferida da escravidão e do racismo. Em segundo lugar, Fantina é um romance surpreendentemente atual. Foi uma coincidência meio estranha, mas na semana em que Fantina foi publicado apareceu na imprensa a notícia de um episódio em que uma mulher negra denunciava um colega de trabalho que havia dito para ela “que queria que a escravidão voltasse”, pois assim ela “teria que fazer sexo com ele” (Folha de S. Paulo, 3 de outubro de 2019). A possibilidade de um episódio desse vir à tona, em 2019, dá o que pensar. Por um lado, é um sintoma de como o passado às vezes não passa. Por outro lado, o fato de o tema ser discutido, merecer notícia em jornal, pode dar esperança de que algo haja mudado, ou esteja
em mudança.
VC. Qual é o lugar da literatura ao documentar experiências tão desumanas como a da escravidão?
SC. A literatura (assim como a história e as artes em geral) nos coloca diante do mistério do presente e da incerteza do futuro. Faz com que passemos a estranhar o que é tão familiar, tão rotineiro que ficamos anestesiados, incapazes de sentir. A literatura sobre a escravidão, no Brasil e em tantos outros países, foi crucial para despertar um sentimento abolicionista, para produzir a indignação necessária ao processo que levou à abolição dessa instituição infame. Numa época em que o cosmopolitismo burguês e a tacanhice escravocrata concordavam ambos em celebrar a família, na qual a figura materna, submetida ao casamento e suas regras, adquiria função central, a literatura contribuiu para demolir a hipocrisia e expor o horror da escravidão. No Brasil e alhures, o conceito de propriedade escrava incluía o direito sobre o corpo da mulher escrava, tanto no que dizia respeito ao abuso sexual dele quanto ao direito de expropriar as mães de seus frutos – quer dizer, de seus filhos e filhas. As mulheres escravizadas estavam submetidas à violência sexual dos senhores e à separação rotineira de suas crianças. Uma barbárie inominável, à qual a literatura ajudou a conceber, descrever, desnaturalizar.
VC. É possível relacionar a força das mulheres escravizadas ao feminismo e às discussões sobre gênero no Brasil atualmente?
SC. Com certeza. As mulheres escravizadas que lutavam pela liberdade própria e de seus filhos são as precursoras do atual feminismo negro. O processo histórico de crise e abolição da escravidão foi muito centrado em questões de gênero. Abolido o tráfico africano, a escravidão só se reproduzia graças ao trabalho reprodutivo das mulheres escravizadas. Eram suas filhas e filhos que faziam com que a instituição continuasse na geração seguinte. Os arquivos da escravidão brasileira estão até hoje repletos de histórias das lutas dessas mulheres pela liberdade. Até nisso a memória é sexista e excludente. Fala-se muito em assassinatos, revoltas, quilombos, nessas formas de luta em que homens aparecem à frente com mais frequência. Mas ao escarafunchar arquivos, encontramos, por exemplo, uma quantidade enorme de mulheres escravizadas lutando na justiça pela liberdade própria e de suas crianças. Alegavam que cartas de liberdade haviam sido destruídas, que herdeiros não queriam respeitar a vontade do finado, que haviam sido escravizadas ilegalmente, ou que seus filhos haviam sido escravizados ilegalmente etc. Elas teciam alianças diversas, atuavam politicamente em seu cotidiano, lutavam para mudar o seu destino. No posfácio à Fantina, eu conto uma dessas histórias, de uma negra chamada Matilde, para ajudar a entender o tipo de experiência cotidiana que pode ter ajudado Duarte Badaró a imaginar a estória que contou em seu romance.
VC. Como observa o lançamento e o interesse atual, no Brasil, por títulos relacionados à escravidão e o que isso significa do ponto de vista histórico?
SC. O fenômeno talvez não seja tão recente, mas sem dúvida se acentuou nas últimas duas décadas. Desde a década de 1980 houve o crescimento gradual e contínuo da produção de conhecimento histórico sobre a escravidão brasileira. Hoje o conhecimento acadêmico sobre a escravidão no Brasil – o país do mundo que mais recebeu africanos escravizados – é reconhecido internacionalmente, respeitado em qualquer meio acadêmico no mundo no qual haja produção a respeito do assunto. Eu cheguei a Harvard nos ombros dos meus colegas e estudantes que pesquisam o assunto. É um reconhecimento da qualidade extraordinária dessa produção historiográfica coletiva. O que aconteceu na última década foi uma explosão do interesse sobre escravidão e racismo devido ao processo de democratização do acesso às universidades públicas como resultado das ações afirmativas. É uma transformação profunda, que não pode ser contida por nenhum processo político obscurantista. Veio para ficar e vai ajudar a transformar o país como um todo nas próximas décadas.
VC. O que pensa sobre polêmicas como a que se dá em torno da obra de um autor como Monteiro Lobato e qual seria a leitura mais “adequada-lúcida” nessas controvérsias que envolvem períodos históricos tão específicos?
SC. Sou historiador. E do Brasil. Quer dizer, não me surpreendo com uma barbaridade qualquer. Digo sempre que, no Brasil, a verdade é subversiva. Então a melhor maneira de lidar com o racismo é falar dele, expor, colocá-lo no seu contexto, em diálogo com outras vozes do período. Evitar o assunto é a única opção que não serve. É claro que os profissionais da educação de crianças e adolescentes (não é a minha área) devem debater a melhor forma de abordar o assunto segundo a faixa etária e a maturidade de crianças e jovens. Mas a discussão do racismo, o conhecimento sobre o nosso passado escravista, tem de crescer junto com as nossas crianças, desde sempre.
VC. O “distanciamento” físico possibilitado pela experiência acadêmica internacional muda sua percepção da realidade brasileira e da atual “crise civilizatória” do país?
SC. É difícil dizer. Visto de longe, o Brasil atual é constrangedor. Mas dizem que visto de perto é ainda pior. Na minha experiência profissional, a degringolada democrática fez com que eu dividisse os meus interesses de pesquisa e ensino. Agora dou várias palestras e aulas sobre a história contemporânea do Brasil, além de continuar com meus interesses de pesquisa sobre o século 19. Visto no longo prazo, não há novidade alguma no que ocorre no país hoje em dia. Historiadores sabem que a história não se repete, mas também sabem que ela pode rimar de um jeito profundo. Na história do nosso país, é comum que períodos de reconhecimento de direitos sejam seguidos de reações conservadoras violentas. Foi assim com a Abolição. O simples reconhecimento da liberdade dos negros derrubou a monarquia e nos deu a primeira ditadura militar. Em 1964, o golpe e a ditadura que se seguiu foram uma reação à expansão dos direitos dos trabalhadores, da classe operária clássica, por assim dizer. Até hoje continua relevante lutar por direitos básicos que estão na CLT, documento da década de 1940! Em 2016-9, do golpe do impeachment ao governo Bolsonaro, a reação conservadora é contra um leque mais variado de direitos, que resultaram da Constituição de 1988. É a rima da história do país: reconhecimento de direitos rima com golpe e reação conservadora. As palavras não rimam, mas a história por trás delas nos aprisiona.
VC. Em que projetos trabalha atualmente?
SC. Estou escrevendo um livro sobre escravidão e gênero na literatura oitocentista. Parto de um romance de Machado de Assis, Quincas Borba, para discutir um assunto que está em Fantina, como já mencionei, e desenvolvi em detalhe no posfácio ao romance do Badaró. Tem sido um desafio interessante escrever o texto em inglês, pensando num público leitor que merece conhecer e ler mais Machado. É a minha missão, por assim dizer, nos anos vindouros, até que a velhice me impeça de continuar em Harvard. Planejo ter uma primeira versão completa do livro em meados de 2022, e depois outros projetos virão, mas centrados na literatura brasileira e em Machado de Assis. Tenho dado vários cursos sobre Machado de Assis aqui e os alunos adoram. Há um leitorado potencial enorme, mas é um desafio grande se fazer ouvir. Falta palanque, que só o dinheiro possibilita, mesmo em Harvard (ou talvez principalmente em Harvard…). O dinheiro que flui para assuntos brasileiros aqui tem outras agendas, algumas vezes constrangedoras. Melhor parar por aqui.
LANÇAMENTO
Livro: Fantina – Cenas de escravidão (Chão Editora), de F. C. Duarte Badaró. Os historiadores Sidney Chalhoub e Lilia Schwarcz participam de um bate-papo sobre o livro.
Loja: Fradique
Quando: dia 18 de dezembro, às 19h