Quatro vidas

Eva Furnari, Pedro Bandeira, Ruth Rocha e Walcyr Carrasco falam do livro que reúne suas histórias pessoais

Idealizado para marcar e comemorar os 50 anos da Editora Moderna, 4 vidas entre linhas e traços é daquelas leituras que já nascem com um apelo afetivo irresistível ao reunir, num único volume, um quarteto de autores de talento, criatividade e produção insuspeitos. Eva Furnari, Pedro Bandeira, Ruth Rocha e Walcyr Carrasco aceitaram o convite da editora para compartilhar com leitores suas histórias pessoais, tramas de suas próprias vidas que, não raro, têm sempre uma pergunta recorrente: de onde, afinal, eles tiram tantas, tantas ideias? Ainda que não exista uma resposta mais plausível, a questão é inspiradora para a curiosidade que muitos leitores têm no esforço de conhecer, entender mais sobre autores que têm influenciado e encantado gerações.
“Na verdade, contei alguns trechos da minha vida apenas com o propósito de dizer alguma coisa sobre porque a gente escreve”, diz a escritora Ruth Rocha, autora de alguns clássicos da literatura infantojuvenil. “Quando escrevo ficção fico à vontade, invento, ponho e tiro personagens, altero o tempo, modifico os fatos conforme me convém. Quando escrevo sobre mim mesma, porém, a coisa é diferente, tenho o compromisso de dizer a verdade e escrever sobre fatos reais, algo que me deixa séria e, séria, sou quase outra pessoa. Esse é o grande desafio. No livro 4 vidas entre linhas e traços falei de sutilezas, dos meandros da confecção de desenhos e escrita, de dificuldades e conquistas no trabalho. Acredito que assim eu tenha revelado ainda mais intimidades sobre mim do que se tivesse relatado apenas fatos passados”, diz a escritora e ilustradora Eva Furnari.
Para Pedro Bandeira, o maior desafio foi justamente a dificuldade de falar dele mesmo. “Adoro inventar personagens que podem ser malucos ou falar maluquices, mas tenho vergonha de me pôr na primeira pessoa. A grande maioria de meus livros foi escrita usando o narrador indireto. Só uso o narrador direto quando ele pode provocar o humor, como em O poeta e o cavaleiro, quando o narrador conta uma história que nem ele mesmo está entendendo, ou como em Melodia mortal, em que ressuscitei o Dr. Watson narrando aventuras de Sherlock Holmes e derretendo-se ao exagerar o talento do amigo detetive”, diz o escritor. “Tenho apenas um livro de crônicas, O beijo negado, em que narro eventos de minha infância. Como não é possível fazer crônica com narrador indireto, fiz com que a personagem ‘eu’ aparecesse mais como testemunha de eventos do que como protagonista deles. São mais crônicas de memórias do que de protagonismo. São momentos mais de aprendizagem do que de atuação. E meu maior prazer artístico foi encontrar um modo de driblar essa dificuldade psicológica ao criar uma personagem que me narra, de modo indireto. Assim, creio ter criado literatura e não autobiografia”, afirma Bandeira.
“Foi uma oportunidade de me aprofundar em minhas próprias questões, raízes, minha formação como leitor e autor. Pude olhar para minha infância, adolescência e juventude com os olhos de hoje, meditar sobre minha trajetória. Foi emocionante”, diz Walcyr Carrasco. Para o escritor, que hoje é dos teledramaturgos mais prestigiados da TV Globo, autor de várias novelas de sucesso, a questão central para as novas gerações desfrutarem integralmente da literatura brasileira é que o acesso ao livro seja facilitado. “Temos excelentes autores no passado, no presente e certamente teremos no futuro também. Mas é preciso que os leitores, como eu, um dia recebam um livro de que gostem, se apaixonem por ele. Enfim, que o acesso seja possível e fácil”, afirma Carrasco.
“Educação, educação, muita educação”, afirma Ruth Rocha diante da mesma pergunta. Eva Furnari lembra que se trata de uma discussão complexa. “E a minha reflexão aqui se refere apenas a um ou outro aspecto que considero relevante”, ela adianta. E prossegue. “Crianças e jovens precisam de mediadores de leitura, sejam eles pais, professores etc. Eu acredito que para que as novas gerações desfrutem mais da nossa literatura é importante que se tenha consciência das dificuldades da leitura nos tempos atuais, e saber das dificuldades é o primeiro passo para encontrar soluções”, diz Eva.
“Estamos num mundo barulhento, disperso, cheio de atrações interessantes e isso não favorece nem um pouco o recolhimento e o foco que a leitura pede. Eu me pergunto: como conseguir fazer frente a esse excesso de seduções do mundo de hoje? O que dizer então das seduções constantes dos games, dos filmes, da internet? Todos nós estamos seduzidos e viciados nesse universo virtual tão recente e palatável que rouba boa parte do nosso tempo. Às vezes, me sinto numa maratona (atrás do quê mesmo?). Eu e as pessoas ao meu lado correndo num ritmo desumano com excesso de estímulos e pouco tempo para digerir. Acho que a leitura nos devolve um pouco de um caminhar mais humanizado. Talvez, para fazer as crianças e jovens desfrutarem disso precisamos proporcionar ambientes tranquilos e favoráveis à leitura. Talvez cada um de nós possa se dedicar na busca de bons livros e oferecer às crianças e jovens aqueles de qualidade, aqueles com histórias envolventes e encantadoras capazes de competir com as interessantes ofertas das outras mídias. Também acredito que, atualmente, a maioria das escolas e certos pais já realizam esse trabalho, já fazem uma boa mediação de leitura. Muitos pais leem afetuosamente para seus filhos na hora de dormir. Muitos professores e bibliotecários, às vezes até sem condições, fazem um trabalho pra lá de interessante e criativo que vai muito além da simples leitura. O fato é que isso não é notícia e fica desconhecido do grande público. E mesmo assim, anônimos, eles seguem estimulando a leitura neste nosso alucinante e admirável mundo desenvolvido”, afirma Furnari.
Para Pedro Bandeira, “a literatura brasileira já é mais forte do que muita coisa deste país” e a questão principal é o acesso ao livro. “O problema é que livro não tem pernas. Para que ele alcance o jovem leitor, é preciso que este seja levado, seja apresentado ao livro, ao fantástico mundo da imaginação que a literatura oferece. É preciso que, desde bebê, nosso brasileirinho ouça histórias no colinho da mamãe, que sinta o roçar da barba do papai ao ouvir aventurinhas abraçado a ele, que se deleite com os folclores da vovó. Que ganhe livrinhos coloridos mesmo antes de aprender a ler, que receba textos gostosos oferecidos e discutidos pelo carinho de uma professora. Com isso, a literatura brasileira morará para sempre dentro desses brasileiros e o Brasil do futuro será melhor, muito melhor”, declara o escritor.
“Quem sabe, sem querer, eu ofereça (ao lado de milhares de influências visuais) uma influência estética genuína, não estereotipada com as ilustrações. Quem sabe, talvez, através de algumas histórias, eu lembre ao leitor de que somos seres imperfeitos e que é necessário ter compaixão. Quem sabe, em um livro ou outro, um personagem inspire alguém a encarar as mazelas da vida com senso humor”, diz Eva Furnari ao ser perguntada sobre que legado gostaria de deixar com a sua obra. “Na verdade, não tenho a pretensão objetiva e consciente de deixar algo específico. Eu gosto de criar e contar histórias e acho que, de alguma forma, minhas crenças e minha própria ética acabe chegando
nos leitores.”
“O meu trabalho, que pretendo que permaneça, tem sido há quase 40 anos procurar penetrar as emoções dos meus leitores, compreendê-las, acalentá-las, fazer parte delas. Isso com muita responsabilidade, pois meus leitores são de tenra idade, estão formando sua personalidade, sua ética, e é para ajudá-los nessa formação que existe a minha Arte. E, pra falar a verdade, já tenho idade para saber que minha arte tem permanência, sim senhor. Minha felicidade é encontrar adultos, já professores, publicitários, jornalistas, advogados, médicos, atores, juízes, que, emocionados, me confessam terem se tornado leitores a partir do prazer que encontraram ao ler algum livro que eu escrevi. Nessa hora, o emocionado sou eu”, diz Pedro Bandeira. “Meu grande sentimento é que sou um elo em uma corrente formada por autores que vieram antes de mim e outros que virão depois. Todos nós em constante diálogo com os leitores, com o mundo, com a realidade e o sonho. Meu legado é simplesmente receber e transmitir”, declara Walcyr Carrasco.

 

Eles por eles

O que os quatro autores dizem uns sobre os outros

“Em primeiro lugar são grandes artistas. Mas para mim são grandes amigos.”
Ruth Rocha

 

“Estar junto a Eva Furnari, a Ruth Rocha, o Walcyr Carrasco é como ter a honra de sentar-me no Olimpo junto a Minerva, junto a Vênus, junto a Apolo, junto a Marte. Chega um pouco pra lá, seu Zeus, pra minha bunda caber.”
Pedro Bandeira

 

“Além da competência e profissionalismo, todos eles têm claramente uma grande paixão pelo que fazem e isso, por si só, já é motivo do meu mais profundo respeito. Me identifico totalmente com todos os três que são muito mais do que colegas de profissão, são amigos queridos com os quais venho caminhando junto há décadas e por quem tenho grande carinho e admiração.”
Eva Furnari

 

“Admiro demais os três. A Eva com sua linguagem única, em que o traço conta uma história. O Pedro, um velho amigo, cujo sucesso sempre admirei. Mas a Ruth é especial para mim porque foi graças a ela que comecei a escrever. Eu estava iniciando minha carreira, ela dirigia a revista Recreio, que era um sucesso de vendas, e começou a elogiar meus contos, me incentivando a escrever meu primeiro livro (Quando meu irmãozinho nasceu) e ainda a buscar uma editora. É uma grande autora e sem ela talvez eu nem fosse escritor.”
Walcyr Carrasco