Terror é pouco

Em mês de Halloween e festas divertidamente “aterrorizantes”, a obra de Stephen King, que acaba de lançar novo livro, revela porque ele é um “patrimônio” da cultura pop ao projetar longo alcance da ficção e da fantasia

*Matéria publicada na revista Vila Cultural 162 (outubro/2017).

Por Rafael Menezes

Stephen King sempre esteve no trono do terror, mas aparentemente “ressurgiu” para o grande público no mês passado e a conexão de sua obra com o cinema, parte importante do prestígio e fama do autor, o alavancou mais uma vez, agora com resultados bem distintos. O filme A torre negra, dirigido por Nikolaj Arcel, foi uma péssima adaptação de um livro que levou mais de 20 anos para ficar pronto enquanto e It – A coisa, de Andy Muschietti, bateu todos os recordes de bilheteria para uma estreia em setembro.

A relação entre cinema e literatura se dá na obra de King desde que ele estreou em 1974 com Carrie – A estranha. A adaptação do diretor Brian de Palma, de 1976, se tornou instantaneamente um clássico. A partir daí, toda a obra posterior do escritor virou objeto de adaptação, no melhor estilo media crossing.

O horror é um dos gêneros cinematográficos mais impactantes visualmente, que desde os primórdios tem seu lugar na tela. Boa parte do expressionismo alemão (Caligari e Nosferatu), por exemplo, flerta com a estética do horror. Com Boris Karloff, clássicos dos anos 1930 e 1940 transformaram Drácula, Lobisomem, Dr. Jekyll e até mesmo A múmia em ícones pop antes mesmo dessa terminologia existir. Pode-se até mesmo pensar que, dentre as subdivisões da fantasia, o horror era mais refinado no começo do século 20 do que a ficção científica e a fantasia, então engatinhando em suas limitações técnicas.

Hoje, porém, o horror se tornou um subgênero. Basta uma pesquisa rápida para perceber a gigantesca quantidade de produções cinematográficas, ainda que a qualidade seja de média para baixo. Nada parece ser mais fácil que assustar uma plateia com uma música que explode, uma cena chocante ou objetos pulando na cara do espectador. Assim como a comédia, o horror cria uma reação (o susto) de fácil reprodução, mesmo que não haja qualidade no material base.

A literatura de King, apesar de ser extremamente popular, segue na contramão dos sustos fáceis, porque em romances isso é quase impossível. Um bom romance de horror deve criar um mistério e uma ambientação que mexa com os nervos do leitor. A “cartilha” está em Edgar Allan Poe. Por mais que situações bizarras permeiem seus contos, o grande elemento que instiga o leitor ao desconforto é o narrador e suas nuances nas palavras.

O grande truque do gênero é mexer com o lado psicológico do leitor. Nos romances de Stephen King há, além disso, os elementos dramáticos, alegorias sociais e caracterizações complexas, pois não dá para temer pelos personagens se não nos importamos com as questões humanas. A maneira como estes elementos funcionam em harmonia é que lhe valeu a alcunha de “mestre do terror”, criada nos anos 1970 e 1980. Grandes clássicos como Christine, O Iluminado, It, O cemitério, entre outros (veja nas próximas páginas) foram rapidamente adaptados para o cinema.

A partir dos anos 1990 seus livros também passam a oferecer outras experimentações, como drama fantástico (À espera de um milagre), ficção científica (O apanhador de sonhos) ou mesmo romance policial (Rose Madder, e o recente Mr. Mercedes). Algumas são obras relativamente parecidas com livros anteriores. O apanhador de sonhos, por exemplo, mostra um grupo de amigos se reunindo contra um mal ancestral, mas ao invés de o mal ancestral aparecer na forma de um palhaço é… um spoiler, mais muito mais voltado pra FC.

Com mais de 40 anos de carreira e 54 romances no currículo, Stephen King, é um escritor prolífico. Seu segredo é escrever, no mínimo, 2 mil palavras por dia, ou seja, pelo menos 60 mil palavras ao mês, o que já seria um pequeno romance para qualquer escritor. (Para se ter uma noção, os textos que ocupam essas páginas somam quase 2.000 palavras). Em sua história biográfica mais notória, ao sofrer um acidente de carro em 1999, mesmo entre as três cirurgias que salvaram sua vida, ele fazia a mesma coisa para se “distrair”: escrever. Por isso tantos livros. Essa é sua paixão. “Eu fui feito para contar histórias e amo escrevê-las”, declarou. Só em 2017, já são dois livros lançados: a coletânea de contos
O bazar de sonhos ruins, e acaba de sair em inglês o novíssimo Sleeping beauties, uma FC em um futuro distópico, escrita em parceria com seu filho Owen King, com tradução brasileira programada para sair em novembro.

Ver a chamada de um filme ou série dizendo que a produção é baseada em uma obra de Stephen King parece algo tão usual quanto “best-seller do The New York Times”, quase um “selo de qualidade” do marketing. Entretanto, é preciso entender King como um dos autores mais originais e produtivos de sua geração. Há inclusive quem se surpreenda ao saber que os tocantes filmes Um sonho de liberdade ou À espera de um milagre (péssima tradução para The green mile, aliás) são obras do “mestre do terror”. Sua maior notoriedade pode até ser com essa citação, mas sua produção artística vai muito mais longe e é bem mais eclética. O que conta é a qualidade de suas histórias emblemáticas, em qualquer gênero, que já estão no imaginário popular. King é um patrimônio da cultura pop e esperamos que ele continue por muito tempo alimentando
novas fantasias.

 

Inspiração que não acaba

Algumas obras de Stephen King que pavimentaram a alcunha de mestre do terror

Carrie – A estranha (1974)
O primeiro romance publicado por King quase não existiu. O manuscrito foi jogado no lixo, mas acabou salvo por sua esposa, a também escritora Tabitha Jane King, que conseguiu a publicação. Na época, Stephen só escrevia como hobby e esse já era o seu quinto romance finalizado. A história ainda segue bem atual ao mostrar uma colegial passando pela árdua vida escolar e lidando com uma mãe fanática religiosa até descobrir que tem habilidades telecinéticas. Narrado de maneira epistolar, colecionando documentos sobre os estranhos casos que envolvem a menina Carrie, esse romance fala sobre bullying antes mesmo de o termo ser tão popularizado e (acertadamente) discutido como é hoje. O livro também trata da rebeldia-revolta de adolescentes em meio a uma sociedade que não os aceita e, de quebra, já delineia críticas a uma instituição que volta e meia retorna problematizada nos romances de King: a Igreja.

 

O iluminado (1977)
Esse talvez tenha sido o livro que firmou a carreira de King. Trata-se do terceiro romance do escritor e também o mais conhecido, mérito que deve ser compartilhado com a adaptação que Stanley Kubrick levou aos cinemas em 1980 e que, curiosamente, o escritor não gosta. Talvez por ver diminuída um pouco a importância de Danny, o iluminado do título, em detrimento do personagem do pai interpretado por Jack Nicholson. No livro, Jack Torrance é um escritor fracassado e alcoólatra em reabilitação que se muda com a família e atua no emprego temporário de zelador no Hotel Overlook, querendo se isolar e se inspirar para compor uma nova história. Seu filho Danny descobre no hotel que ele é um iluminado, uma pessoa que consegue ver o passado e o futuro em flashes, e assim acessa uma série de crimes que assombram o lugar. Ao não conseguirem influenciar o menino, esses fantasmas começam a atacar Jack, que vai aos poucos cedendo e obviamente volta ao álcool. O livro foi escrito em uma época que o próprio escritor lutava contra o alcoolismo. Não é de se estranhar, portanto, que a luta do personagem no livro contra o hotel seja uma alegoria da real luta do escritor.

 

Dança macabra (1981)
Um livro de não ficção que traça a história do horror no entretenimento entre os anos 1960 e 1980. Aqui, King cria uma distinção entre formas de horror: o terror, que é todo o suspense e a atmosfera criada dentro de uma história para prender o leitor/espectador, exatamente como ele tenta trabalhar em seus livros; o horror, em que esse sentimento está associado ao “monstro”; e a repulsa (do original revulse), em que o sentimento de terror está direcionado ao grotesco e ao choque, no caso, como resultado das ações do “monstro”.

 

It – A Coisa (1986)
O livro tem 1.104 páginas e é o fechamento de um ciclo na literatura do escritor, que passou os anos 1970 e 1980 criando novos símbolos, escapando do lugar-comum voltado para vampiros, lobisomens e outros seres (mas não se engane, eles existem na obra), culminando na criação do palhaço Pennywise, A Coisa do título. O palhaço é a encarnação mais corrente de um monstro que tem forma inanimada, se alimenta do medo e pode se tornar literalmente qualquer coisa. Ao assombrar um bando de adolescentes nos anos 1950, ele assume a forma dos monstros clássicos de filmes de terror da época, sendo claramente uma homenagem aos mesmos e a toda cultura que o escritor ajudou a formatar. A Coisa surge novamente 27 anos depois e as sete crianças, agora adultas, voltam à cidade natal para destruí-la de uma vez por todas. O livro intercala passado e presente.

 

Quatro estações (1982)
Esse é livro de contos mais conhecido e talvez uma porta de entrada para quem quer se aventurar no mundo de King, especialmente porque as quatro novelas não são o horror convencional e sim quatro peças puramente dramáticas. Rita Hayworth e a redenção de Shawshank é um conto que narra o encarceramento de um banqueiro falsamente acusado de homicídio. O aluno Inteligente traz um jovem que descobre que um de seus vizinhos é um criminoso nazista escondido há décadas na vizinhança. O corpo narra a descoberta de um corpo por um bando de crianças, o que as faz questionar a vida e começar a transição para a vida adulta. É a novela mais tocante do volume. O método respiratório mostra uma mulher julgada pela sociedade por ser mãe solteira, sendo a única história que não foi adaptada para o cinema. As três primeiras deram origem respectivamente a Um sonho de liberdade (1994), O aprendiz (1998) e Conta comigo (1986).

 

Torre Negra (1982-2004)
Apesar de ser conhecido como escritor de horror, King consegue oscilar entre gêneros mantendo uma marca de escrita e imaginação. Aqui faz uma fantasia mais escancarada. A série começou em 1982 com o volume O Pistoleiro. Nos 22 anos seguintes, criou um universo rico que mistura dimensões e tempos, na perseguição do Pistoleiro ao Homem de Preto, ambos tentando atingir a lendária Torre Negra, uma hipotética torre em que todas as dimensões convergem. Ela existe no plano real e no plano metafísico. A série só começou a ser publicada em livro 1982, mas o escritor trabalha nela desde 1970 e em 2012 ganhou mais um exemplar além dos sete originais, O vento pela fechadura. Há também um livro infantil (?!) com o trem de As terras devastadas, intitulado Charlie, the Choo-Choo.

 

 

Novembro de 63 (2013)
Este outro volume mostra uma viajante do tempo tentando reescrever a história e impedir que John F. Kennedy seja assassinado na data que nomeia o livro. Também virou recentemente uma minissérie, com James Franco no papel principal. Oscilando entre thriller e ficção científica, foi um dos romances mais premiados do autor e indicativo de que sua criatividade está mais afiada do que nunca.

 

Sob a redoma (2009)
O que acontece com as pessoas quando isoladas da sociedade? Como num laboratório, o autor coloca uma cúpula da qual ninguém escapa em uma cidadezinha do Maine e vê o que acontece. O drama aqui é bem social, mostra a manutenção de poder e alguns poucos que tentam se manter íntegros. Nem sempre reinventar uma história é algo ruim, já que Sob a redoma parece uma versão maior e melhor do conto O nevoeiro, publicado no volume Tripulação de esqueletos (1985). O livro mostra um grupo de pessoas presas em um supermercado quando uma estranha névoa os impede de sair. É o microcosmo de uma sociedade.