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Convidada do Navegar é Preciso, a cantora Ceumar comemora duas décadas de música com o álbum Espiral

 

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 190 (Fevereiro/2020)

A cantora Ceumar,que acaba de lançar um novo álbum, participa da edição 2020 do projeto Navegar é preciso em abril./ Foto Júlia Rodrigues/Divulgação

A cantora, compositora e instrumentista Ceumar diz que criar belezas é uma forma de se manter integralmente no presente sem perder de vista a consciência da brevidade da vida e do grande prazer que é ter a música como função e ofício. É uma fala-ideia que revela muito sobre a personalidade e o trabalho de uma artista em plena sintonia com seu tempo, sua obra e sua trajetória na música. Ceumar é uma das convidadas da edição de dez anos do projeto Navegar é Preciso, a viagem à Amazônia realizada pela Livraria da Vila e pela agência Auroraeco que acontece entre os dias 27 de abril e 1º de maio.

Reconhecida pela crítica como “uma cantora de beleza sem excessos de voz”, Ceumar é também uma artista inquieta, sempre interessada em novas experiências. Seu contentamento fica evidente, por exemplo, quando fala da riqueza e da diversidade da música brasileira ou dos projetos que inventa para ela mesma aos 50 anos de idade e 20 de carreira, celebrados em 2019. O “marco inicial” foi o lançamento do disco Dindinha.

Para comemorar essas duas décadas de música, a cantora lançou em outubro o álbum Espiral (Circus), cujo título já propõe movimento. “Evoca o sentido da evolução de uma força, de um estado; simboliza desenvolvimento, continuidade cíclica, mas em progresso, rotação criacional”, diz a definição da palavra espiral no Dicionário dos símbolos, de Jean Chevalier e Alain Geerbrant, citado pela cantora.

O título do disco é uma canção homônima, composta por Ceumar e pelo músico e cantor César Lacerda, 32 anos, que assina a direção artística de Espiral, cuja produção musical é de Fabio Pinczowski. “Quando a música ficou pronta, me veio a ideia da espiral. Mais do que a palavra, o conceito é que estava forte. A questão do movimento contínuo, das vidas passadas e futuras. Tinha muito a ver com o que eu queria dizer com esse trabalho. Logo depois, deparei com um samba do Criolo (Espiral de ilusão), que acabei regravando, com a participação da Josyara tocando violão”, disse Ceumar à Ana Clara Brant para o jornal O Estado de Minas.

Entre outras preciosidades, o novo disco traz referências afetivas e pessoais como a participação de Tiê Coelho Todão, de 22 anos, filho de Ceumar. Na adolescência, ele compôs Looking for a place, que a cantora incluiu no novo disco.

Em outra situação de ambiência “familiar”, Ceumar fez uma participação tocante e inesquecível, mês passado, em duas apresentações com as quais o compositor baiano Roberto Mendes brindou o público de São Paulo para apresentar Na base do cabula, seu 11º álbum. Mendes, que nasceu e vive em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano, é reverenciado como um músico e um estudioso e criador genial, sobretudo pela pesquisa da chula e do samba de roda, essenciais para entender a formação da música brasileira. A cabula, conforme ele explicou, é o ritmo que sustentava o batuque do Recôncavo Baiano dois séculos antes das violas, numa estrutura melódica do século 17. Ceumar se refere a Mendes como “um mestre” e diz ter ficado tocada com o encontro que se deu em duas noites no Sesc 24 de maio.

Com parcerias e participações que revelam a percepção e o interesse pela música mundial, Ceumar viveu um longo período na Holanda, outra de suas “bases” criativas. Mineira da cidade de Itanhandu, ela se mudou para São Paulo em 1995. De lá para cá, sempre conduziu sua carreira de maneira independente, produzindo e distribuindo seus discos, além de participar ativamente de projetos coletivos e variados.

Dindinha, seu primeiro disco, foi produzido por Zeca Baleiro. Em 2003, ela lançou Sempre Viva, do qual assinava a produção musical e os arranjos. Dois anos mais tarde, participou com Dante Ozzetti do Festival de Música da TV Cultura e, a partir daí, criaram juntos o CD Achou!.

A compositora Ceumar veio a público oficialmente em Meu Nome, álbum de 2009 que foi produzido pelo músico e produtor holandês Ben Mendes com um registro ao vivo de shows realizados em São Paulo, em que Ceumar se apresentava só com seus violões.

Em 2010, com o trio holandês formado por Mike del Ferro (piano), Olaf Keus (bateria) e Frans van der Hoeven (contrabaixo), Ceumar lançou seu primeiro álbum na Europa, Ceumar & trio – Live in Amsterdam, no qual faz uma releitura jazzística de suas músicas mais conhecidas. Silencia, lançado em 2014, foi produzido pelo arranjador e cellista francês Vincent Ségal com um repertório popular de xotes, marchinhas, samba, côco e baladas ganhando uma sonoridade quase lírica, como ela disse. Em 2018, Ceumar se juntou aos músicos Lui Coimbra e Paulo Freire para gravar o disco Viola perfumosa, lançado pelo selo Circus com patrocínio da Natura Musical. No trabalho, o trio focaliza a importância da presença feminina na música sertaneja de raíz homenageando uma das mais emblemáticas artistas da música popular brasileira, Inezita Barroso. Leia a entrevista com a cantora.

 

Vila Cultural. Você gosta de entrevistas?
Ceumar. Gosto de prosa, gosto de conversar, e acho que consigo manter a espontaneidade em entrevistas.

VC. Qual a sua expectativa com a viagem do Navegar é Preciso?
Ceumar. Primeiro que fiquei felicíssima, muito honrada e agradecida por receber o convite, o que foi motivo da maior a alegria para mim. A ideia de estar na Amazônia já é especial, ainda mais no contexto do que imagino ser uma viagem como essa. Também estou com a sensação de que vamos viajar entre amigos, talvez pela presença de Alice Ruiz, que é uma grande amiga e uma grande parceira que tenho na música e na vida.

VC. Que avaliação faz de Espiral desde o lançamento do álbum?
Ceumar. Estou muito feliz com a receptividade, com o interesse pelo disco, com o espaço que ele tem tido, mas é tudo bem recente ainda. O lançamento aconteceu em outubro, exatamente como tínhamos planejado, com as condições ideais para fazer um show, no Sesc, em São Paulo. Foram shows muito bonitos, com bom público, e participações importantes para mim. Tive o prazer de estar no palco com a camerata da Orquestra Jovem Tom Jobim nas duas apresentações e de ter a presença de Zeca Baleiro em uma das noites. Acredito que as trajetórias do disco e do show estão bem no comecinho ainda.

VC. Como foi o processo criativo de Espiral?
Ceumar. Desde o começo, sabia que queria fazer algo diferente de tudo que já havia feito anteriormente. Um trabalho que fosse influenciado por outros sons, visões, experiências e descobertas que tenho experimentado ao longo do tempo, inclusive no período em que vivi fora do Brasil. Além do contato com a música do mundo inteiro, há um forte interesse pela África, pela cultura e pela música africana na Europa. De alguma forma, Espiral reflete tudo isso: o desejo de experimentar e de agregar outras influências da música que é feita no mundo. Mas a ideia original era fazer um trabalho diferente dos anteriores. O disco tem direção artística de César Lacerda e produção musical de Fabio Pinczowski, que são mais jovens, e com quem escolhi trabalhar justamente pensando nessas novas possibilidades, outros encontros.

VC. Você assina a direção geral do projeto e sempre trabalhou como uma artista independente. Foi uma escolha?
Ceumar. Minha história na música sempre foi assim. É o jeito que aprendi a trabalhar e a maneira como sei fazer. E gosto de trabalhar dessa forma. Tenho prazer nisso. Acho que não conseguiria fazer de outro jeito. Às vezes você junta um dinheirinho, vai lá, reinveste num projeto, realiza o disco. Venho seguindo por este caminho.

VC. Como foi ter o seu filho como parceiro musical no disco?
Ceumar. Aconteceu de um jeito muito natural e afetuoso. Ele tem uma outra profissão, se formou designer gráfico na Holanda, mas a música, o violão, a poesia, sempre estiveram por perto. Ele se surpreendeu um pouco com a ideia, o convite, resistiu um pouquinho, mas também gostou de estarmos juntos numa situação assim, tão especial.

VC. Como tem observado a música no Brasil?
Ceumar. É muito bom ver que há tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo. É de uma riqueza e de uma diversidade que surpreendem, com novos artistas, jovens talentos, movimentos diferentes em várias regiões do país. A música tem esse poder de congregar as pessoas e me encanto quando vejo grupos e movimentos como os que vi recentemente em Pernambuco, com as pessoas ali fazendo o seu som, o seu trabalho, e despertando o interesse. Quanto mais isso acontecer, melhor.

VC. Como acomodou seu gosto pelo português – um idioma e uma linguagem tão peculiar e poética para sua obra – nos shows e apresentações quando vivia na Europa?
Ceumar. Esse talvez seja um dos motivos pelos quais eu tenha tido vontade, uma necessidade de retornar. Passado um tempo que eu já vivia lá, às vezes, quando eu voltava para casa depois de um show, com o público sempre muito interessado, receptivo e acolhedor porque a música também tem esse alcance que não depende só das palavras, me perguntava se por causa dessas diferenças, das barreiras do idioma, eu tinha conseguido ser compreendida integralmente no que eu queria dizer, nas letras. É algo muito importante no meu trabalho.

VC. Você imaginava que pudesse, com sua música, chegar a lugares tão distantes?
Ceumar. Acho que não. Mas eu tendo sempre a pensar mais nos lugares que ainda quero chegar. E ainda faltam tantos. Sou uma pessoa que gosta de estar em movimento, me locomovendo pelo mundo, cada hora em um lugar diferente.

VC. Como é viver um momento tão sublime como a sua participação no show que o compositor baiano Roberto Mendes fez em janeiro em São Paulo?
Ceumar. Roberto Mendes é uma luz. Ele conta as histórias do lugar dele, a partir de Santo Amaro, da visão da Bahia, de onde ele mora, mas vai para o mundo, vai para a África. Estar com ele é uma aula sobre a nossa ancestralidade ao mesmo tempo em que ele reverencia tudo que o que somos. E isso é muito lindo.

VC. Você se reconhece nessa trajetória?
Ceumar. Eu acabei falando isso para ele também. Da Bahia a Minas é uma estrada natural, eu brinquei. Porque também sinto isso. De onde eu venho, os caminhos que tenho percorrido. Mas no caso do Roberto, ele já é um mestre. Então, estar com ele, com os filhos dele, que tocam com ele, é tudo muito afetuoso e carinhoso. É um presente para nós.

VC. Sempre gosta de compartilhar o palco?
Ceumar. Adoro quando posso participar, conhecer, trocar com outros artistas. Tenho essa alegria que me alimenta demais. No caso do Roberto, sou e sempre fui fã e acho que ele já sabia disso, por isso me convidou. Ou pelo menos o Leo, filho dele, já sabia que eu os acompanho permanentemente. Meu sonho era ir para Santo Amaro, na terra dele, ouvir as chulas, os sambas, mas é sempre um presente poder colaborar um pouquinho.

VC. Quem decidiu pelas canções que fizeram no show?
Ceumar. Encanto de sereia, do Oswaldo Borges, foi o Roberto quem escolheu para cantarmos juntos. Também tinha a ver com o repertório do show. A música fala exatamente disso, do meu lugar. Achei demais poder cantar. E também fizemos Massemba, uma canção dele que é pronfudíssima. Por isso foi tão emocionante.

VC. É essa a sensibilidade que interessa na sua música?
Ceumar. A música tem um poder que também é muito sutil. E eu acredito sinceramente nessa sutileza ao nos lembrar o que estamos fazendo aqui. Na verdade, acho que faço música para isso: para me lembrar do que é que eu estou fazendo aqui, para me lembrar da minha própria caminhada. E acho que as pessoas que ouvem também têm essa sensação quando tocamos nesses assuntos. Então é uma lembrança e uma memória ao mesmo tempo. A lembrança e a memória que precisamos cultivar continuamente. Para saber onde estamos agora.

VC. E é um antídoto contra a brutalidade da realidade do mundo?
Ceumar. É difícil dizer isso porque esse momento que estamos vivendo representa coisas diferentes para cada um de nós. Uns estão sofrendo mais, outros estão mais no combate. Eu superentendo e superrespeito todos esses sentimentos, mas no meu caso – e aí cito de novo o Roberto Mendes e o Guinga, que também estava nesse show de que falamos e é outro mestre admirável – eu penso que a música é a nossa própria arma. Quando estamos todos ali, naquele instante, juntos, conversando, contando essas histórias de tudo que conhecemos, ou mesmo do que não conhecemos e queremos compartilhar, acredito que isso tem um sentido salvador. Que nos salva do desespero, de viver momentos mais difíceis.

VC. E nos lembra que estamos vivos…
Ceumar. Eu sempre penso isso: que a vida é muito breve. Passamos aqui uns 50, 60, 70, 80 anos, mas é rápido demais. O tempo é muito, muito veloz. Então se eu não puder fazer o melhor e estar presente criando belezas, eu não sei muito qual seria o outro sentido, sabe? A grande base, para mim, é a beleza, é a alegria. Se não for assim, não faz mais muito sentido. Não vejo muito o sentido de sofrer, de reclamar, de lamentar que está tudo um caos. Acho que sempre haverá isso: as diferenças, as dificuldades. O mundo nunca vai ser perfeito ou nos brindar com a concretização da perfeição da harmonia. Essa idealização que fazemos de um paraíso, ou pelo menos de um mundo mais equilibrado, sinceramente não acredito que encontraremos durante essa passagem. Mas enquanto a gente que faz arte, música, poesia, que escreve, que pensa, estiver por aqui, tem que viver e assumir essa função. Por isso, vejo mais como uma função do que uma missão: a função de segurar inclusive energeticamente a ideia de que nossa experiência de vida pode ser bem sucedida.