Um amor eterno

Convidado do Navegar é Preciso, João Anzanello Carrascoza focaliza o afeto entre irmãos em novo romance

Antes mesmo de o mercado editorial retomar a agenda de novidades, os leitores brasileiros já têm uma excelente notícia para este começo de 2019. Trata-se do lançamento do romance A elegia do irmão (Alfaguara), o novo livro do escritor João Anzanello Carrascoza que deve vir a público no começo de março. Reverenciado como um dos melhores contistas do país, Carrascoza é um escritor cuja obra é muito mais abrangente e ampla do que a fama que veio com a habilidade no gênero de textos e histórias mais curtas, de intensidade incomensurável.
Carrascoza consegue como poucos materializar com delicadeza, rigor e requinte o mundo do “sensível”, assumindo certa incompletude da linguagem verbal para traduzir toda complexidade subjetiva e sensorial da experiência humana. Sem muitos ruídos ou eloquências de época. Tanto que ele teve que começar a prestar atenção quando críticos ou leitores perceberam e se encantaram com o “silêncio” contido em sua obra. Fala-se em uma “prosa silenciosa”, o que faz todo o sentido.
No novo livro, o interesse pelas relações e afetos familiares, outra característica do trabalho do autor, focaliza o vínculo amoroso que junta e/ou separa dois irmãos. Carrascoza fala em evocação, o resgate que vem pela memória, ao comentar uma elegia que já se anuncia previamente poética e comovente. É a primeira vez que ele dedica um romance a essa temática. O escritor diz que os dois contos em que tratou do tema – Espinho, no livro Espinhos e alfinetes (Record), de 2010, e Irmã, do livro Tempo justo (SM Editora), de 2016 – já continham a “potência” e a vocação para o desenvolvimento da história que apresenta agora.
Autor de títulos como Diário das coincidências ou Aos 7 e aos 40, ambos do catálogo da Alfaguara, Carrascoza é professor universitário na Escola de Comunicação e Artes da USP e na Escola Superior de Propaganda e Marketing, a ESPM. Em 2017 publicou Trilogia do adeus, em que trata de relações familiares fragmentadas. O primeiro livro, Caderno de um ausente, ganhou o Jabuti 2015 e foi reeditado para uma caixa que contém os dois outros títulos, Menina escrevendo com pai e A pele da terra. No primeiro livro, um pai de meia-idade escreve uma longa carta para a filha recém-nascida. No segundo volume, é a filha quem responde, narrando a vida e o relacionamento dos dois. No terceiro livro, o filho mais velho e irmão da menina narra sua relação com o próprio filho, criando “um olhar tríplice sobre os vínculos entre pais e filhos, e sobre como pequenas ações do cotidiano nos marcam para sempre.”
De uma família de seis irmãos, Carrascoza é autor de Aquela água toda, título originalmente publicado pela extinta editora Cosac Naif em 2012, quando ganhou diversos prêmios, e cujo relançamento, pela Alfaguara, no ano passado, foi motivo de celebração inclusive na imprensa, que identifica o livro como uma obra magistral. Não faltam motivos para isso, sobretudo pela sensibilidade com que ele registra, conforme diz nessa entrevista à Vila Cultural, experiências de iniciação. Um leitor das palavras e das pessoas muito antes de se tornar escritor, Carrascoza assume e cultiva suas origens interioranas. Viveu com a família em Cravinhos, no interior de São Paulo, até os 17 anos, quando veio para São Paulo estudar comunicação. Foi redator publicitário, sem jamais perder o fascínio pelas narrativas que na infância e na adolescência o encantavam, fosse dos livros, dos relatos de imigrantes, do folclore, das novelas e de todas as vias em que reconhecesse essencialmente as vicissitudes da condição humana. Carrascoza é um dos convidados da edição do Navegar é Preciso em 2019. Leia os principais trechos da entrevista que o escritor concedeu à Vila Cultural.

Vila Cultural. Poderia falar sobre A elegia do irmão, o novo livro?
João Anzanello Carrascoza. Tenho trabalhado com relações afetivas de pessoas em geral muito próximas e ao mesmo tempo tão distantes, já que às vezes parece haver um mar entre elas. E tinha trabalhado apenas duas vezes com um enredo relacionado a irmãos. Uma delas no conto Espinho, que está no livro Espinhos e alfinetes, que conta a história de um menino cujo irmão acaba morrendo, e outra no conto Irmã, que está no livro Tempo Justo, que é sobre um irmão contando a história da irmã de que ele gosta muito por achar que ela é o lado bonito, o lado bom dele, e que se vai antes dele. Ainda que sejam textos pequenos, esses contos têm uma contundência que me desafiaram a escrever o romance.

VC. Por quê?
JAC. Os meus livros têm sempre o pai, a mãe, o filho, a avó, o amor entre o homem e a mulher, e percebi que eu nunca tinha tematizado com tanta profundidade as relações de irmãos. Sou de uma família em que nós somos seis irmãos, juntos desde os anos de 1960, e estamos todos vivos e todos envelhecendo. Mas quando nos olhamos, nos vemos como criança ainda. E eu sempre, ao ver meus irmãos, imagino que um dia, uma hora, alguém pode não estar mais lá. A partir do conto Irmã me veio a ideia do que seria um irmão falando de uma irmã. É uma evocação, um canto triste, é uma elegia sobre ela. Quando ela ainda estava aqui e quando já não está mais. O livro tem um formato que pra mim foi provocador porque estou correndo muitos riscos e eu acho que riscos têm que ser corridos quando você é um romancista, um contista, quando você quer contar uma história de muita potência, de grande amor e de grande sofrimento.

VC. O que significa exatamente correr riscos neste caso?
JAC. É sempre arriscado manter o leitor vivo sabendo que a morte se dará. Eu posicionei a história me lembrando de dois livros importantes, A morte de Ivan Ilitch, de Tostói, cujo título já diz que o personagem vai morrer, mas você lê o tempo todo querendo saber o que vai acontecer, e Crônica de uma morte anunciada, do Gabriel García Márquez, em que você começa o livro já sabendo o que vai acontecer. Em A elegia do irmão, você não vai saber pelo título, mas já pela primeira página, quando a irmã antecipa que a vida para ela vai terminar logo e depois, quando ela parte. Durante o tempo todo há a evocação do que já aconteceu e este irmão vai narrar um pouco sobre antes de ter acontecido e sobre depois. Por isso, o livro não é sobre a morte. É sobre a vida. E sobre a convivência de dois irmãos jovens, de 30 e poucos anos e muito ligados como família, o pai e a mãe, ele e a irmã. Tanto que, apesar de terem vidas independentes, viviam todos na mesma casa e os irmãos ainda não tinha se dissociado da casa dos pais. Fui ler textos mais na esfera do poético. Eu queria um grau de sentimento intenso, sempre pensando nesse amor que há entre os irmãos, inclusive porque também há grandes livros sobre o desamor entre irmãos, histórias de divergências.

VC. Também é uma história sobre a finitude.
JAC. É um livro sobre a vivência humana e uma relação que se desatou por causa da morte, mas que vai continuar. Como você se lembra de um irmão que acaba de perder? Mesmo que eles sejam muito jovens, os irmãos muitas vezes criam um mundo que é quase como um mundo particular porque cria uma convergência, uma intersecção que só os dois têm. Se um sai, só existe o outro. E parte desse mundo desaba. Porque não haverá mais ninguém que poderá lembrar aquele episódio infantil junto com você. Mesmo que haja a visão, a lembrança do pai e da mãe. O irmão é guardião da memória, a dele e a do que se foi. Por isso, a elegia, a evocação, um canto triste daquilo que já não é mais. Ao mesmo tempo, é uma história de amor. Então, para mim, foi uma narrativa muito poderosa. Foi desafiante fazer um romance partindo da experiência humana a partir do seu fim e não do seu começo. Cada dia ausente é um começo.

VC. Como definir o irmão-narrador?
JAC. É um narrador jovem muito entregue ao sentimento, mas também com seu senso de razão. Que enxerga os defeitos do outro. Não significa só louvar porque morreu. É como se ele dissesse: “Eu vou te evocar”. Ele narra o último dia. O primeiro dia que ela não está mais presente. Uma série de coisas que os pais também vão sentir. A irmã tem uma doença que em pouco tempo pode consumir qualquer pessoa. Num café da manhã, ao dar uma noticia dessas, dizendo que foi ao médico e fez tal exame e o resultado foi aquele, ela muda o destino de todas as pessoas, de toda a família. Essa mudança é abrupta, repentina, brutal, inevitável. E você terá que ir até o final. Toda perda é dura, mas uma coisa é quando acontece com alguém de mais idade, quando você vai metabolizando o luto ainda em vida, outra é você ver o sujeito que está na sua frente anunciar o fim. Para mim foi muito forte escrever.

VC. É possível fazer alguma relação entre o seu trabalho como professor de comunicação e a sua obra literária?
JAC. Ao longo do tempo, eu fui percebendo que quanto mais eu estudava a comunicação, mais os meus textos literários eram sobre a incomunicabilidade humana. E curiosamente, nos últimos anos, cada vez eu foco em situações em que as pessoas estão sempre enfatizando a relação entre o “um” e o “outro”, ou seja, o eu e a alteridade, por meio de situações ou interações afetivas, muitas vezes relacionadas ao núcleo familiar. Um ser humano muito próximo, num embate ou, ao mesmo tempo, numa comunhão, às vezes tentando dizer coisas que não são possíveis porque a forma que a linguagem nos dá acaba sendo limitante ou insuficiente para você dizer o que você pode dizer. Você pode dizer que ama uma pessoa sem dizer o “eu te amo”, que ficou esvaziado, com um gesto, um olhar, uma situação, um abraço. Com algumas outras formas linguageiras elas podem te fazer dizer isso de uma maneira mais convincente do que com as próprias palavras.

VC. O que é essencial na sua literatura?
JAC. O que me interessa bastante na minha obra – e que foi dito pelos outros e eu comecei a reparar – é a questão do silêncio. As personagens não estão correndo, querendo fazer alguma coisa. Estão mais num processo de descompressão, tentando ler o outro, que é uma história que está na sua frente, se fazendo e se refazendo, ganhando um capítulo a cada dia. Um querendo entrar na história do outro. Se você está com uma pessoa, por exemplo, é porque você quer fazer parte daquela história, que está sendo construída junto com você, ou na sua frente, ainda que você seja um coadjuvante porque aquela história é a do outro.

VC. E qual é, afinal, o lugar do silêncio?
JAC. Como acadêmico, eu acabei estudando muito isso na comunicação também, do não dito, do que está à margem dos seus dizeres, mas que foi dito de alguma maneira pelo pressuposto ou pelo subentendido. Necessariamente você não disse, mas está circulando. É como se a palavra fosse uma queda e o silêncio fosse a linguagem perfeita, mas você não tivesse condições de chegar nela. Diante dessa força absoluta, a gente desce o degrau e usa a palavra.

VC. E os tantos ruídos da comunicação contemporânea?
JAC. O que me interessa é a condição humana. Os aparatos podem mexer com os nossos sensórios, mas eles não são nossos. A condição humana é a condição humana. Os mecanismos de sentir, os mecanismos de pensar, o mistério que é o sujeito que está diante de você, como Drummond dizia naquele poema, “cada homem é um estranho ímpar”, singular. Aí você percebe que o que interessa, seja para estudar na comunicação ou para a minha obra literária, é o humano. O que somos no meio disso? Não importa se você está no computador, no celular, ou observando alguma forma de comunicação. O que você sente em relação a essas coisas é o que me interessa.

VC. Poderia falar sobre o relançamento de Aquela água toda, um livro tão querido e premiado?
JAC. Aquela água toda é um livro que, quando eu o construí, pensei numa certa organicidade, que os contos tivessem uma ligação dentro da matemática da iniciação, de alguém que está tendo um momento inicial de alguma coisa. Um cara que está indo para o mar para ter uma relação com água, o menino que está tendo o primeiro amor da infância, se apaixonando pela menina. Tudo em uma instância inicial. E como tem personagens crianças, personagens adultos, personagens velhos, há também uma paleta grande de público, um espectro de leitores muito amplo. Ao mesmo tempo que o livro ganha um prêmio da Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil, ele é o Prêmio APCA ou Prêmio Jabuti de contos. Ele perfaz todo um conjunto de leitores que têm diferentes interesses. São histórias de iniciações – e todo mundo tem sua iniciação –, uma particularidade que gera uma procura. À parte que as histórias são de uma grande ternura, desse adensamento do mundo do sensível. A questão dos afetos talvez apareça com mais ênfase. Os afetos que estão no extremo da carícia e não no extremo do brutalismo, em que eles também podem estar. A ambiência da violência não está presente. As costuras dos laços têm uma rede de sensibilidade que eu acho que deu o tom do livro.

VC. Como lida com o interesse em torno do que o autor tem a dizer?
JAC. Vivemos num contexto cultural em que há o espaço para o escritor falar de sua obra. Se ele quer falar ou não, é uma decisão pessoal. Há autores que preferem ficar à margem de dizer sobre a sua obra. No Brasil, para nós, falar sobre a obra e correr o espaço do universo literário e do circuito escolar eu acho que é importante, para a formação do leitor, para o diálogo com as gerações que vêm vindo, para a difusão da literatura em si, não só da nossa própria obra, da maneira de estar no mundo, porque a literatura também é uma rede de afetos. Eu acho importante cumprir isso, inclusive porque escrevi muito para jovens, crianças e adolescentes. Eu abro esse espaço para o diálogo com o leitor, com a crítica e para contribuir para a difusão da literatura, não só da minha obra. Evidentemente que se você ficar muito exposto há risco de que o interesse seja maior pelo que você está falando do que pela sua obra. Isso não é legal. Eu acho que é importante um escritor do seu tempo correr o mundo também.