Um novo olhar

Livro propõe reflexão sobre as transformações e o papel da arquitetura na era digital

*Matéria publicada na revista Vila Cultural edição 186 (Outubro/2019)

O arquiteto Guto Requena. Foto Divulgação

Em Habitar híbrido: subjetividades e arquitetura do lar na era digital (Editora Senac São Paulo), que acaba de lançar, o arquiteto Guto Requena propõe reflexões sobre questões fundamentais dos novos modos de viver que, como ele argumenta, vem desmaterializando a casa e expandindo o lar para territórios muito mais simbólicos. “O estudo das transformações que ocorrem nas famílias e a influência das novas tecnologias numéricas nos ambientes é imprescindível à disciplina do arquiteto e do designer que acredita em um necessário redesenho do habitar”, escreve Requena, que prepara para março de 2020 a instalação Estímulos Emocionais. Requena falou sobre seu livro à Vila Cultural.

Vila Cultural. Qual a sua expectativa com o livro?
Guto Requena. Espero que ele contribua para uma bibliografia em português que amplie a discussão sobre os impactos das novas tecnologias digitais e interativas nos nossos modos de morar, convidando arquitetos, designers e curiosos a pensar nos rumos da habitação e da cidade frente aos inúmeros desafios que devemos enfrentar daqui pra frente.

VC. Como define a ideia, o conceito de “habitar híbrido”?
GR. Habitar híbrido é a nossa casa hoje. Ela é resultado da mistura entre uma espacialidade concreta (analógica, como concreto, vidro, tijolos) e uma espacialidade virtual (digital, como uso de sensores, computadores e tecnologias numéricas). Nessa nova espacialidade híbrida temos novas maneiras de nos comunicarmos e nos relacionarmos. Essa casa híbrida nos permite outros modos de viver, de trabalhar, de se divertir, e abre uma questão pertinente: o que torna esse espaço um lar?

VC. Poderia exemplificar, aliás, os territórios simbólicos para os quais a ideia do lar, do morar, tem se expandido, como diz
no livro?
GR. O conceito de lar parece estar cada vez mais ligado às nossas memórias afetivas e não tanto ligado ao espaço físico de uma casa apenas. As pessoas que eu amo, minhas músicas, filmes e livros favoritos ou fotos de momentos especiais, por exemplo. Se hoje eu posso carregar partes dessas memórias afetivas comigo no meu celular, é como se eu pudesse carregar o sentimento-lar por onde for. Assim, me parece que estamos construindo um lar expandido para territórios que são muito mais simbólicos. Meu lar está dentro de mim, amparado pelas novas interfaces que me conectam com as pessoas e lugares que eu amo.

VC. O que mudou na sua visão de arquitetura nesta última década?
GR. Entre 2007 e 2018 eu pude praticar, em projetos construídos, teorias que eu investiguei durante a pesquisa. Foi uma década de projetos executados em diferentes escalas, desde objetos, vestíveis, interiores, arquitetura e cidades. Pude colocar a mão na massa e experimentar diferentes conceitos e tecnologias. O que mais me fascina hoje é pensar desde o início do projeto em como criar experiências e oportunidades que estimulem a empatia e o coletivo. Como esse novo design híbrido (analógico + digital) pode nos ajudar a desenhar um futuro mais fraterno, usando as novas tecnologias numéricas para aquecer nossas relações, para nos humanizar.

VC. E como, na sua opinião, a tecnologia pode promover maiores conexões e interações entre as pessoas?
GR. Eu acredito no potencial humanizador das tecnologias digitais. Uso novas interfaces e sensores que detectam batimento cardíaco, emoção na voz, atividade cerebral etc. Eu acredito que a função fundamental da arquitetura seja integrar e conectar as pessoas. Os espaços podem nos convidar a olhar para o outro, a perceber o próximo. Existe um imenso potencial em explorar isso. Imagine se arquitetos e designers, ao iniciar um projeto, criassem, para além da função e da beleza, oportunidades conscientes para estimular o convívio e a empatia? Imagine espaços interativos que reagem às emoções das pessoas? Imagine um ponto de ônibus que convida ao sorriso? Ou um edifício cuja fachada expressa sentimentos de uma cidade em tempo real? Ou um sofá que estimula a conversa?

VC. Qual sua ideia de moradia do futuro?
GR. Se houver alguma chance de sobrevivermos frente à iminente extinção da espécie humana com o avanço do aquecimento global, nossa única chance será através da união entre amor e tecnologia. Nesse contexto, o habitar será definido através do desmonte de muros e da construção de pontes afetivas. É como se deixássemos de nos entender como brasileiros, americanos, europeus, asiáticos, por exemplo, e finalmente pudéssemos nos enxergar como terráqueos. Todos moradores do mesmo e único planeta possível. A casa pode ser algo imaterial, que carrego comigo por onde eu for.