*Editorial publicado na revista Vila Cultural 179 (Março/2019)
Ao prestar o vestibular, a nota mais alta que teve foi em redação. Não por acaso, a médica Silvana Chedid, especialista em reprodução assistida, sempre manteve o gosto e o hábito de escrever, assim como o fascínio por livros. Autora de Infertilidade (Contexto) e A mágica dos gêmeos e trigêmeos (Europa Press), Silvana lançou recentemente, pela Casa do Novo Autor, outros dois títulos que, segundo diz, estão em plena sintonia com as demandas e expectativas mais atuais de seus/suas pacientes.
Em Gravidez depois dos 40, aborda a experiência contida no título do livro com informações, análise e dicas para uma vivência que tem se dado mais frequentemente na faixa etária a que ela se refere. Novas famílias, o outro título, aborda a reprodução humana nos novos núcleos e modelos familiares como os das mulheres solteiras, dos casais homoafetivos e sorodiscordantes, em que um dos cônjuges é soropositivo, ou seja, portador do vírus da aids.
“As mudanças profundas no padrão familiar que estamos assistindo têm raízes nas transformações comportamentais que ganharam velocidade na segunda metade do século 20. A partir da década de 1970, gays e lésbicas saem da invisibilidade, organizam-se para combater a discriminação social à qual se veem submetidos e começam a conquistar importantes direitos civis. Em muitos países, passam a ter suas uniões aceitas legalmente; em outros, adquirem o direito de adotar filhos. Depois de consolidar seu novo papel social – na linha de frente do mercado de trabalho –, as mulheres, sobretudo a partir dos anos de 1990, invertem suas prioridades, postergando o casamento e a maternidade para depois das conquistas profissionais”, escreve Silvana. Mãe de Enzo, 16, e Nina, 13, a médica concedeu a seguinte entrevista à Vila Cultural:
Vila Cultural. De onde vem o seu interesse por reprodução humana e como decidiu se especializar nessa área?
Silvana Chedid. Durante a faculdade de Medicina, optei por fazer residência médica em Ginecologia e Obstetrícia por ser uma especialidade com possibilidade de atuação nas áreas clínicas e cirúrgicas, e por me permitir tratar de mulheres de todas as idades, e com as mais diversas patologias. Tratar da mulher, em todas as fases da sua vida, é extremamente gratificante, e o ginecologista acaba se tornando o clínico geral e médico de família da mulher. Optei por me especializar em medicina reprodutiva na década de 1990, quando fui fazer pós-graduação no Centro de Medicina Reprodutiva da Universidade Livre de Bruxelas, na Bélgica. Me encantei com a possibilidade de ajudar casais inférteis a constituírem suas famílias e com a fascinante experiência de estudar gametas (óvulos e espermatozoides) e embriões no laboratório.
VC. Por que, na sua opinião, muitos casais e muitas mulheres têm optado por engravidar cada vez mais tarde – depois dos 40, por exemplo –, como no título do livro?
SC. Os casais de um modo geral têm se casado mais tardiamente. As mulheres desejam se firmar profissionalmente e construir suas carreiras antes de ter filhos. Isso acaba fazendo com que a maternidade seja postergada e frequentemente adiada para depois dos 40 anos.
VC. Qual é, em 2019, o significado de ser mãe e por que a senhora diz só ter entendido isso plenamente ao engravidar?
SC. A experiência da maternidade é extremamente gratificante e, por mais que eu tenha tratado de pacientes grávidas a minha vida inteira, só entendi o amor incondicional que uma mãe tem por um filho quando eu tive os meus. É um amor maior do que qualquer outro, em que você abre mão de tudo em prol da felicidade e do bem-estar do seu filho. É uma experiência maravilhosa e que me faz muito feliz poder proporcionar aos casais de quem eu trato.
VC. A senhora consegue definir o que é “instinto materno”?
SC. O instinto materno é o resultado da ligação extremamente forte entre a mãe e o filho, resultado desse amor incondicional de que falamos. Esse instinto faz com que a mãe, imbuída de amor e ligada intimamente ao filho, permita conhecê-lo profundamente e perceber particularidades, nuances e detalhes que ninguém mais consegue perceber. O instinto materno é aquela força que luta para o bem-estar da sua “cria” e que percebe, de longe, o que lhe faz bem e o que pode lhe fazer mal.
VC. O que diria para uma mulher, uma paciente que, apesar de desejar muito, ainda tem muitas dúvidas sobre ser mãe?
SC. Hoje temos a possibilidade de fazer congelamento dos óvulos, e essa técnica permite que a mulher seja mãe no momento que for mais adequado. Caso ela acabe optando por não ser mãe, ela pode simplesmente descartar ou doar os óvulos que foram congelados, e não é obrigada a usá-los com o intuito de obtenção de gravidez. Funciona como uma poupança que só vai ser usada se a mulher assim o desejar, e no momento que ela julgar mais adequado.
VC. Numa época de tantas conquistas femininas e tantas discussões sobre empoderamento e feminismo, qual é o lugar da maternidade na vida de uma mulher?
SC. A maternidade não exclui as demais conquistas femininas e vice-versa. Hoje, entendemos que as conquistas profissionais e pessoais da mulher podem e devem caminhar paralelamente com a maternidade, seja ela dentro do núcleo convencional da família heterossexual, no âmbito das uniões homoafetivas ou mesmo a maternidade escolhida pela mulher solteira, que cria seus filhos sem a presença de um(a) parceiro(a).
VC. Qual é, na sua opinião, o maior desafio dos novos núcleos familiares na sociedade brasileira?
SC. No livro Novas famílias, discuto justamente essas novas configurações familiares. Além das conquistas na área médica e científica que propiciam a concretização desses sonhos, são necessárias também conquistas do ponto de vista legislativo e social. A legalização da união homoafetiva, por exemplo, foi um grande passo para facilitar a vida desses casais, mas ainda há muito que deve ser feito do ponto de vista social para diminuir o preconceito contra essas famílias. O objetivo do meu livro é justamente ajudar a diminuir esse preconceito, fornecendo informação médica confiável e numa linguagem fácil e acessível, além de estimular a discussão do tema, tão atual.
VC. O que é diferente e o que pode ser exatamente igual na experiência de ter filhos se falamos de casais “heteroafetivos” e “homoafetivos”?
SC. A experiência do amor incondicional e da realização pessoal e familiar é exatamente a mesma, independentemente da orientação sexual dos casais. O que é diferente é a forma como esses casais vão concretizar essa experiência do ponto de vista médico. Casais heterossexuais, a menos que tenham um problema de infertilidade, podem engravidar naturalmente, sem ajuda médica. Casais homossexuais, por outro lado, têm que recorrer às técnicas de reprodução assistida para realizarem seu sonho.
VC. Como faz para conciliar, na prática, os papéis de cientista-médica-mãe-etc?
SC. Não é fácil. A jornada diária não é dupla. É tripla ou quádrupla, mas quando você ama o que faz tudo fica possível. O segredo é amar o que você faz. Aí tudo
é possível.