Mundo em crise

*Matéria publicado na revista Vila Cultural 179 (Março/2019)

Inscrições esgotadas para o certificado de participação!

*A inscrição previamente feita para o evento garante o certificado aos participantes desde que o inscrito avise na bilheteria que fez a inscrição e que seu nome conste na lista ou seja acrescentado à lista, mas não garante o ingresso para o Encontro sobre o mal-estar na civilização.
Para que o participante garanta a presença, reforçamos que é recomendável chegar UMA HORA ANTES do Encontro para a retirada dos ingressos, pois a distribuição está SUJEITA À LOTAÇÃO DA SALA*
A psicanalista Luciana Saddi

Para um diálogo sobre religião, a Monja Coen é a convidada especial da série de Encontros Mal-estar na civilização, que marca a estreia do projeto da Sociedade Brasileira de Psicanálise (SBP-SP) na Livraria da Vila da Fradique, no dia 21 de março, entre 19h30 e 21h30. O evento tem apoio da Folha de S. Paulo.

Debater os sofrimentos psíquicos e as questões sociais ou políticas relativas à subjetividade contemporânea está entre os propósitos dos encontros. Amor, sexualidade, violência, poder e felicidade são alguns dos temas que serão abordados nos próximos meses.

“Os temas são percebidos por nós como áreas de tensão, de crise e de transformação. Atravessam a nossa experiência com o mundo, fazem parte da subjetividade contemporânea; esta emerge no interior da cultura que a conforma, e, por vezes, também, se revolta contra a própria cultura”, diz a psicanalista Luciana Saddi, diretora de Cultura e Comunidade da SBP-SP e idealizadora dos encontros.
Autora de livros como O amor leva a um liquidificador (Editora Casa do Psicólogo), Perpétuo-Socorro (Jaboticaba) e Alcoolismo, da série O que fazer? (Blucher), em coautoria com Maria de Lurdes Souza Zemel, Luciana concedeu um depoimento exclusivo à Vila Cultural em que fala não só do projeto mais de assuntos tão atuais quanto incontornáveis na construção de diálogos dos mais importantes e urgentes. Leia a seguir.

SOBRE OS ENCONTROS
“Pode-se encarar os Encontros como contribuição da psicanálise ao momento atual, um momento de muitos questionamentos. O saber da psicanálise não pode ficar excluído do debate nacional. A psicanálise tem mais de cem anos de história, nossos achados são importantes nas áreas da saúde, educação, família, ciências, infância, literatura, história e filosofia, só para citar algumas áreas. Também no campo das artes há influência mutua. Queremos levar aos espaços democráticos e participativos reflexões sobre a atualidade. Promover o diálogo entre diversos aspectos do saber e psicanálise.”

O ESPAÇO DO DIÁLOGO
“Estamos num momento político e social muito polarizado, é tudo tenso, estridente, exagerado. Há pouco espaço para a conversa, para decantar ideias e para trocas. Somos encharcados de informações diárias; fica difícil discernir procedência ou verdade, assim, nos sentimos perdidos e impotentes. Os Encontros procuram amenizar tais sentimentos. ‘Opiniões são formadas no processo de discussão aberta e debate público’, cito uma frase de Hannah Arendt.”

MAL-ESTAR NO SÉCULO 20
“Num panorama amplo e abrangente, a revolução industrial e o surgimento das metrópoles romperam a relação do homem com a natureza. O mundo passou a ser cada vez mais construído pelo homem e, aparentemente, se tornou mais desorganizado e caótico. A modernidade é decorrente desse movimento que acabou por colocar a realidade em crise. Não é à toa que o primeiro romance moderno seja Dom Quixote, de Cervantes. Trata-se de uma personagem que não sabe quem é, qual seu lugar na ordem do mundo, num mundo em constante transformação. Modernidade é conflito, contradição, incerteza – é crise permanente. As ciências, a democracia – no sentido dos ideais republicanos e iluministas –, têm menos solidez e oferecem menos garantia que as religiões, as teocracias, a tradição ou até mesmo a magia. Viver num mundo em crise, sem saber o que é verdadeiro ou falso, suspeitando da realidade, exige muito de nós.”

MAL-ESTAR NO SÉCULO 21
“A pós-modernidade agravou ainda mais essa sensação de crise. A virtualidade e a tecnologia fizeram o mundo e o homem perder substância, tudo é mais líquido ainda. Desconfiamos, constantemente, a respeito do que é real ou não. Daí a violência, o excesso, o exagero terem se tornado um tipo de prova de realidade. É real aquilo que ‘gritar’ mais alto, o que ‘causa’, como diria o jovem; as ações bombásticas, os atentados são reais. As opiniões tipo xingamento das redes sociais são mais reais que os estudos científicos. Pensamento e ação trocaram de lugar. A ação, o fazer, tomou o lugar do pensamento, decorre, então, uma nova maneira de ser do homem e do mundo. Estamos tentando entender que maneira é essa. Paralelamente, vivemos com muita liberdade, com possibilidade de experimentar, de ser e de fazer, muito distante da tradição. Isso é bastante incômodo.”

DA SOCIEDADE DIGITAL
“A tecnologia vem mudando o homem. Lembro-me de estar num debate com Otavio Frias, editor da Folha de S.Paulo, falecido no ano passado, e ele dizer que nas redes procuramos informações e notícias que confirmem nossas posições. Ele denunciava um fechamento paradoxal. Como nunca houve, há informação disponível e de fácil acesso a todos e, ao mesmo tempo, pouca disposição para romper com ideias pré-estabelecidas, para construir um repertório de conhecimento que ultrapasse o conhecido, enfim, para sair da zona de conforto.”

A PSICANÁLISE AGORA
“A psicanálise apresenta o homem ao homem. Escuta, conversa, procura brechas que possibilitem representação e pensamento ao que é obscuro, sombrio e sintomático. Permite que o absurdo se revele, que camadas de sentimento e pensamento soterradas venham à tona. Cria espaço para o impensável se apresentar. Sem saber as respostas, isso é importante reafirmar, promove o diálogo e legitima sofrimentos. Não é uma ideologia. Acumulou ao longo de um século alguns conhecimentos sólidos a respeito do inconsciente e suas relações com a consciência, também investigou a cultura, a vida em sociedade, o comportamento das massas, a infância, as primeiras relações familiares. A disposição ao diálogo, a abertura ao outro e ao desconhecido é nossa maior contribuição no momento.”

SEXUALIDADE E GÊNERO 1
“Freud foi um grande pensador da sexualidade humana – a clínica de sua época expressava em parte o esforço vitoriano em reprimir a sexualidade. O estudo dos diversos elementos componentes da sexualidade o levou a escrever o famoso Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, publicado em 1905. Lá ele já questionava o que era propriamente feminino ou masculino. Não é uma questão fácil se pensarmos além do senso comum. Parece mais fácil perceber os movimentos ativo e passivo da sexualidade. Temos ambos movimentos. Na intimidade de cada um de nós a sexualidade é bastante complexa, não é estática, é formada por inúmeros componentes, por identificações e pelas pulsões. Cada um de nós é uma categoria, e podemos considerar que somos categoria em movimento, categoria que depende de interações.”

SEXUALIDADE E GÊNERO 2
“Se a sexualidade é construída ao longo da vida, desde a infância, por inúmeros acontecimentos internos e externos, se esse é um movimento contínuo e aberto, o gênero também pode ser visto como algo mais complexo. Não basta nascer com pênis para ser menino ou nascer com vagina para ser menina. Como cada um se torna menino ou menina – estamos num constante movimento de vir a ser/sendo – e como cada um apreende a potência simbólica do feminino e masculino é o que nos interessa. Como somos animais sociais haverá conformação da subjetividade à cultura e também contraposição, conflito e tensão.”

SEXUALIDADE E GÊNERO 3
“Podemos dizer: mulher ou homem, gênero feminino ou masculino, mas isso é só uma pontinha do que somos, da forma como a psicanálise encara essa questão. E há os transgêneros que problematizam a divisão em duas categorias e problematizam a diferenciação da biologia. A liberdade hoje é muito maior, há possibilidade de experimentar, de jogar, de brincar com essas categorias e de contrariar a tradição. E há os sofrimentos sociais, a condição da mulher nas sociedades machistas, o feminicídio, o preconceito, não vamos negar o social, há uma ponte entre o individual e o social. Por isso, a questão é complexa.”

O PROBLEMA DA FELICIDADE
O mal-estar na civilização, ensaio de Freud que dá título aos Encontros na Livraria da Vila, pode ser visto como um tratado sobre o problema da felicidade. O homem paga elevado preço pela civilização. Abre mão da satisfação dos impulsos sexuais e dos impulsos agressivos para viver em sociedade. Para preservar a vida, renuncia a muitos prazeres. Nada disso garante a felicidade. Pode-se garantir algum sossego em troca de felicidade, por exemplo.”

O “CERTO”, O “ERRADO”
“Reprimir os impulsos agressivos levou a maior ataque interno. Se não posso agredir livremente o outro, agrido a mim mesmo e exijo de mim cada vez mais. Segundo Freud, esse movimento é inconsciente, ele o denominou de autopunição por sentimento inconsciente de culpa. Quanto mais corretamente, do ponto de vista moral, nos comportamos com os outros, mais nos voltamos contra nós mesmos, nos agredimos e menos usufruímos da felicidade. Somos corretos com os outros e intransigentes, cobradores, intolerantes conosco. Não é à toa que grande parte da humanidade tem o diagnóstico de depressão. Além de favorecer a indústria dos medicamentos, isso indica que estamos cada vez mais nos atacando sem perceber e nos fazendo infelizes.”

HISTÓRIA DA REALIDADE
“O historiador evolucionista Harari também defende ideia semelhante sobre o mal negócio da civilização. Ele fala do alto custo que foi para o homem deixar de ser caçador coletor e se fixar na terra, plantar e colher. Segundo Harari, foi um péssimo negócio. O que parecia promissor se tornou um problema, pois aumentou a população, que exigiu mais alimento; tendo mais alimento a população aumentou mais ainda… As soluções nunca são simples e acarretam em problemas maiores e, muitas vezes, problemas inimagináveis. Veja a questão ambiental que enfrentamos hoje.”

VIVER A INFELICIDADE
“É preciso considerar que o homem não se torna mais feliz por causa de suas enormes conquistas no campo da tecnologia ou ciências. Ninguém está mais feliz porque a paralisia infantil foi erradicada. Somos vorazes, sempre queremos mais. Por outro lado, a tecnologia que deveria nos proteger dos acidentes naturais causa acidentes. Além do mais, é mais fácil experimentar a infelicidade. A infelicidade vem do nosso próprio corpo condenado a decadência e à dissolução – viver, adoecer e envelhecer significa experimentar angústia, medo e sofrimento. Vem do mundo externo que pode se voltar contra nós. Quem garante a nossa segurança? E vem dos relacionamentos com outros homens, que podem trazer muita dor. Isso posto, cada um de nós deve investigar os impedimentos próprios à felicidade. É aconselhável ter a morte como horizonte sempre. A vida pode se tornar mais agradável e mais verdadeira
nessa perspectiva.”

 

MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO
O que é: série de encontros promovidos pela SBP-SP, com Monja Coen e as psicanalistas Luciana Saddi e Marina Kon Bilenky dialogando sobre religião.
Loja: Fradique
Quando: dia 21 de março, a partir das 19h30