Eternizada por Pablo Neruda, a ideia do poema como uma
trégua no cotidiano já vale a celebração do Dia Mundial da Poesia
Ilustrações de Rupi Kaur para o livro O que o sol faz com as flores (Editora Planeta)/Divulgação
*Matéria publicada na revista Vila Cultural 167 (março/2018).
Se a poesia está para a prosa assim como o amor está para a amizade, tal qual proclama o cantor e compositor Caetano Veloso nos versos da música Língua, do disco Velô, lançado no longínquo ano de 1984, há que se registrar que o mesmo mês que comemora o Dia Internacional da Mulher, 8 de março, tem outra data simbólica e igualmente relevante para o atual momento da humanidade, que carece de amores poéticos ou prosas mais amigáveis. Trata-se do Dia Mundial da Poesia, celebrado em 21 de março. A data foi determinada na 30ª Conferência Geral da Unesco, em novembro de 1999, com a intenção de promover a leitura, a escrita, a publicação e o ensino da poesia mundo afora.
“Tão antiga quanto a própria linguagem, a poesia segue mais vital do que nunca, em um tempo de turbulência, como fonte de esperança e um modo de compartilhar o que significa viver neste mundo”, declarou, no ano passado, a então diretora-geral da Unesco, a búlgara Irina Bokova. No cargo desde 2009, ela foi sucedida recentemente pela francesa Audrey Azoulay. Bokova citou versos do poeta e educador americano
Henry Wadsworth Longfellow (1807-1882) para atualizar o sentido e a importância da poesia neste século 21: “Nós não temos asas, não podemos voar;/Mas nós temos pés para escalar e subir/Por lentos graus, mais e mais,/Os cumes nebulosos de nosso tempo.”
“Em um momento em que os desafios que enfrentamos – desde a mudança climática, desigualdade e pobreza, até o extremismo violento – parecem tão árduos, as palavras do poeta Henry Wadsworth Longfellow nos dão esperança. Organizada em palavras, colorida com imagens, batida com a métrica certa, a poesia tem um poder incomparável. É o poder de nos sacudir da vida cotidiana e nos lembrar da beleza que nos cerca e a resiliência do espírito humano compartilhado. A poesia é uma janela para a diversidade humana de tirar o fôlego”, escreveu a ex-diretora da Unesco, indicando uma constatação de caráter atemporal e universal, independentemente das tradições orais ou grafadas.
Nesse sentido, em bom português, a oralidade da fala a partir da tradição secular do cordel, por exemplo, ganha novas versões com livros como Poesia com rapadura, de Bráulio Bessa, cuja maior inspiração é o trabalho de seu conterrâneo, o cearense Patativa do Assaré (1909-2002). Em 2012, via internet, Bessa começou a publicar poemas lidos em vídeos que ultrapassaram a marca de 100 milhões de visualizações. O sucesso foi tanto que hoje ele é presença certa e assídua em um programa da TV aberta, o Encontro, de Fátima Bernardes, na Globo. Semanalmente, com criações exclusivas, frequenta lares de todo o país confirmando a “profecia” do chileno Pablo Neruda, que escreveu que a poesia é, afinal, “um ato de paz”. Que cabe, diga-se, em diferentes situações.
Pensando no mercado editorial global, há fenômenos de incontestável intenção poética como no caso da artista e escritora indiana (radicada no Canadá) Rupi Kaur, autora do best-seller Outros jeitos de usar a boca. No embalo do sucesso global da escritora, sai este mês no Brasil, pela editora Planeta, O que o sol faz com as flores (leia sobre aqui). Com o alcance e a sensibilidade de autoras atentas para questões muito atuais das mulheres, a poesia também marca o melhor território por uma sociedade mais justa e igualitária quando o tema é gênero. Nomes como o de Ryane Leão, poeta, professora e ativista, vêm a público em trabalhos como Tudo nela brilha e queima (Planeta). Com foco assumidamente feminista, é uma escrita que quer, pelos versos, fortalecer a literatura e a educação.
“O Guimarães Rosa, imortal e maravilhoso, falando sobre a criação literária, dizia mais ou menos isso: que a escrita tem que ser visceral. Ela não é aqui e ali. Se você senta e pensa um pouquinho pode, sim, fazer um poema sobre ecologia. Eu até faço, qualquer poeta faz, mas vai sair uma porcaria porque não está movido por um tônus especial. Se o poeta não está movido por algo que não é ele ou maior que ele, faz coisas que depois ficam datadas e vão direto para o caixote de lixo. Essa é a verdade de cada pessoa, de cada um. A verdade própria é que faz a literatura. Por isso que a gente diz que a obra é maior que o autor. Tem de ser. Se ela se parecer comigo apenas, não vale nada porque não precisaria escrever um livro. O livro é canal para que seja expresso aquilo que é comum a mim e a você. Para que você se reconheça, apesar de você ser um homem, apesar de você não ser uma dona de casa, apesar de não sei o quê. O detalhe da batata, do tomate, do cotidiano, que todo mundo insiste demais, é porque é da vida comum, e se aquilo não vira poesia continua assim. Olho batata e vejo batata mesmo”, disse à Vila Cultural a poetisa Adélia Prado, cuja obra invariavelmente deve ser reverenciada pelos versos ou pela própria existência, na poesia ou na prosa, para nos lembrar da importância de assumirmos nossos próprios respiros poéticos.