Ocupar e resistir

Depois do elogiado A resistência, Julián Fuks mantém o narrador que é seu alter ego em A ocupação, seu próximo livro

O escritor Julián Fuks, autor de A resistência (Companhia das Letras), Jabuti de melhor livro de ficção três anos atrás, já trabalha há algum tempo em seu próximo livro, A ocupação, que terá o personagem Sebastián, uma espécie de alter ego do escritor, como narrador. Ainda que o romance não esteja concluído, Fuks não se incomoda de falar publicamente do próximo livro, o que, ele diz, tem enriquecido seu processo criativo.
Autor de Histórias de literatura e cegueira (Record, 2007), Procura do romance (Record, 2012) e Fragmentos de Alberto, Ulisses, Carolina e eu (7Letras, 2004), entre outros livros, Fuks diz que “em certa medida, minha literatura está toda exposta”. “Tudo o que escrevi está aí”, afirma. Filho dos psicanalistas argentinos Lucia e Mario Fuks, que vieram para o Brasil na década de 1970 depois do golpe militar no país vizinho, o escritor tem um irmão mais velho, que foi adotado um ano antes do exílio familiar brasileiro. Na ficção de A resistência, todos os elementos autobiográficos e familiares estão evidentes, assim como as tramas, os dramas, as experiências e o contexto da ditadura.
Mais do que prestígio e reconhecimento de seu trabalho com prêmios, críticas elogiosas e menções reverenciais, Fuks focaliza o fato de o livro reverberar intensamente por causa dos muitos leitores que conquistou. Não se espere, entretanto, que o sucesso do livro mais recente indique caminhos para o próximo trabalho, inclusive porque o ato de escrever, como diz o escritor, se transforma para excluir qualquer possibilidade de se repetir. Não se repetir, aliás, é dos seus princípios básicos no trabalho.
Com formação em jornalismo e mestrado e doutorado em literatura, Fuks muda a perspectiva quando perguntado sobre como observa o Brasil atualmente. “É tão profundo o desalento que fica até difícil dizer sobre a percepção que se tem do presente. É difícil também encontrar palavras que não sejam a repetição de outras porque parece que a tragédia brasileira foi vista e identificada por todos, mas ainda assim não conseguimos evitá-la”, diz o escritor em entrevista exclusiva à Vila Cultural.
“Para mim é muito chocante viver num país em que eu não possa definir, com toda certeza, uma democracia. A noção de que vivíamos numa democracia era um dos corolares da vida pública, social e política. Tendo vivido uma ruptura tão acintosa desse sistema parece difícil voltar a confiar nele, e já dá para perceber uma sequência de fatos e indícios de que as coisas continuarão nessa toada. Mesmo depois das próximas eleições, que vão sofrer a desconfiança de muita gente, ainda não teremos a certeza de viver uma democracia. É um marco difícil de encarar. Escrevi sobre ditaduras e passados anteriores a um suposto equilíbrio democrático, mas talvez não estivesse pronto exatamente para vivenciar essa diferença que, em certos aspectos, na minha vida pessoal, é quase sutil. Não é que eu esteja sofrendo censura, não é que eu esteja sendo perseguido, não é que eu viva nada semelhante ao que aconteceu nas ditaduras, mas a gente percebe que há direitos fundamentais sendo destroçados pela atual política, aos olhos de todos. Você vê um processo quase autofágico do próprio país, de caminhar para um certo abismo. Por que me incomoda e nem me sinto tão à vontade para dizer essas coisas todas? Porque para mim o pessimismo político não leva a lugar nenhum, não tem valor. É preciso um mínimo grau de otimismo, uma mínima crença no futuro para batalhar, lutar. Então é muito difícil me ver nessa posição de fazer uma leitura tão negativa do presente porque parece que isso desbarata qualquer possibilidade de futuro. Apesar dessa leitura, eu defendo que o país ainda tem a possibilidade de transformação, da retomada de um processo emancipatório e de promoção de igualdade que talvez a gente ainda possa encaminhar. Mesmo que seja difícil vislumbrar isso nesse momento”, declara Fuks. Leia a entrevista do escritor.

Vila Cultural. Gosta de entrevistas?
Julián Fuks. No geral, tenho me acostumado. Parece que, de uma hora para outra, falar publicamente virou uma das funções do escritor, que não é mais o ser recluso que escreve e se apresenta só pelas páginas. Tem que estar constantemente em diálogo e em debate por causa de toda a indústria que se criou em torno da figura do escritor. Aos poucos, vou me sentindo mais à vontade nessa posição.

VC. Como se vê nesse contexto?
JF. Não tenho essa visão do escritor como alguém que tenha que estar em solidão e em condições de maior isolamento para produzir. Pelo contrário. Ultimamente tenho sentido muito mais, na própria construção do pensamento, que ganho com o diálogo, estando em contato com as pessoas, com os jornalistas, com os críticos, com outros escritores. A literatura se constrói muito mais coletivamente.

VC. Quando reconheceu sua vocação?
JF. Há sempre uma ficção que se cria sobre o próprio passado. Mas sinto que em algum momento bastante indeterminado, muito antes de escrever passei a valorizar a ideia de ser escritor. Antes de começar efetivamente a arriscar alguns versinhos na adolescência, já tinha um apego maior pelo ato da escrita, um contentamento maior quando me saía bem melhor numa prova de redação do que em outra, de matemática, por exemplo. Aos poucos fui batalhando para fazer jus a essa noção que eu tinha de mim mesmo, de que eu queria ser escritor, algo que se tornou uma espécie de imperativo na minha vida. Eu devia ser um escritor intransitivamente. Escrever sobre o que era algo a ser decidido mais tarde. E a batalha sempre foi essa.

VC. Escrever é um processo autoanalítico?
JF. De partida, comecei com textos que falavam bastante sobre mim. Depois houve momentos em que a disposição era para falar sobre os outros, uma vontade de deixar de lado esse personagem forte que cada um tem pra si. Mas ao mesmo tempo esse personagem me habita constantemente e tenho escrito muito sobre mim mesmo e a partir de mim, ainda que com uma voz muito própria, ligada a vivências particulares, a relações familiares, a experiências ordinárias ou extraordinárias. São coisas que ganham certa elaboração no ato da escrita. O fato de escrever tem sido para mim um processo autoanalítico, em diversas circunstâncias. Fiz também análise, já que como filho de psicanalistas não poderia ter deixado de fazer. Mas é um processo distinto. Não constituem a mesma coisa. O ato da escrita não deixa de ser uma forma de elaboração do passado e do presente.

VC. O texto tem mais a ver com sofrimento ou prazer?
JF. No início mais ingênuo, mais livre do ato da escrita, escrever era prazeroso. Isso já se perdeu há bastante tempo. Como ofício, está muito mais carregado de sofrimento, de responsabilidade, de uma autoexigência, de uma dificuldade que fui internalizando nas próprias obras. Percebi que precisava falar sobre isso como uma forma de lidar com o problema e a questão da escrita. Por isso, todos os meus livros acabam sempre falando um pouco do processo da feitura do livro. Várias vezes descrevo o ato da escrita como algo penoso, como algo que não me dá um prazer imediato, mas dá um prazer posterior, o prazer de ter escrito, que é bem diferente. Ao mesmo tempo, em nenhuma circunstância isso me faz pensar em parar de escrever e escapar desse peso, em deixar pra lá e buscar alguma coisa, em ter inveja de quem trabalha em coisas que dão prazer. Mas pra mim esse prazer se perdeu e ficou algo mais, que é o sentido da importância que aquilo tem. Acho que é uma preocupação constante para mim buscar uma escrita que tenha pertinência, que tenha relevância, que não se perca em banalidades, em trivialidades.

VC. O que muda quando você tem um livro muito premiado?
JF. O que altera a relação com a própria literatura é ter tido um livro que fundamentalmente foi bastante lido. Nos livros anteriores eu já tinha uma preocupação quase obsessiva com a precisão, com a qualidade da escrita. Como se esse fosse o cerne da minha escrita. Acredito que algo que fez diferença na repercussão de A resistência foi a escrita como um ato de sinceridade. Nos outros dois, a ficcionalidade dos livros era mais patente. Evocava histórias ficcionais de outros. Em Procura do romance, a própria construção do livro evidencia a sua ficcionalidade. É para que dê na vista que aquilo se trata de uma construção, embora muito baseada em vivências próprias, em matizes biográficos que o drama tem. Em A resistência foi diferente desde o princípio. Assumi um compromisso comigo mesmo e um compromisso com a minha família de ser o mais fiel possível aos acontecimentos. O que às vezes, em muitos casos, significava desconfiar daquilo que eu vinha narrando, desconfiar dos próprios acontecimentos. Fazer um livro muito mais de indagações, de interrogações, do que de afirmações. Sinto que isso foi uma das coisas mais definitivas para que o livro fosse bem recebido pelos leitores especificamente. Pela crítica é mais difícil
de determinar.

VC. Foi uma experiência devastadora?
JF. Teve um efeito distinto, de elaboração de algo que tinha sido vivido com muita intensidade no passado. Muito mais devastador foi ter vivido aquele processo, o que levou à terapia familiar e ao reconhecimento do meu irmão da própria questão da adoção. Tudo isso foi muito mais forte do que o ato da escrita do livro, que era uma forma até amena e tranquila de rememorar aquilo, de elaborar. Houve alguns elementos de tensão porque é um livro criado pelo diálogo, por um pedido longínquo do meu irmão e depois por um diálogo constante com os meus pais e com outros personagens da trama. E esse diálogo que a princípio eu pensei que seria um processo agradável na minha família esteve muito mais carregado de conflitos do que eu imaginaria.

VC. Como lidar com o ego diante de elogios tão superlativos para A resistência?
JF. Por sorte, tenho uma história pessoal que me aproxima dessas coisas. Já escrevi muitas resenhas, muitas críticas, sou jornalista de formação, trabalhei no jornalismo literário. Ou seja, tenho um certo conhecimento de como essas coisas funcionam e sei que essas declarações são todas questionáveis e efêmeras. Procuro não me deixar transformar nem por uma crítica muito positiva nem por uma crítica muito negativa. Perceber que o exagero pode se dar em ambas as instâncias e que não pode se deixar inflamar por nenhum dos casos. A pertinência do fazer literário tem muito mais a ver com vivência pessoal do que com aquilo que os outros estão avaliando como bom ou necessário, obviamente a partir dessa dimensão de diálogo. Mas eu consigo não levar muito a sério essas declarações superlativas. Consigo relativizar para mim mesmo. Obviamente, viver as alegrias que isso traz sem esquecer a dimensão do trabalho, a dimensão da responsabilidade da escrita, que vai estar presente o tempo todo e é muito mais fundamental do que uma repercussão positiva.

VC. Tudo a seu tempo, afinal.
JF. Observando um pouco da história da literatura, você percebe como são instáveis essas circunstâncias de reconhecimento ou de desprezo da crítica em relação à obra de um autor. Como grandes autores foram desprezados e depois vieram a ganhar destaque, ou, ao contrário, como a crítica incensou autores que depois se perderam e que não tinham tanto valor quanto a crítica quis reconhecer num primeiro momento. A graça talvez esteja justamente aí, em toda essa complexidade. Não há nenhum determinismo possível. O que é um bom livro? O que se avalia como um bom romance se transforma completamente. A graça é justamente não conseguir adivinhar qual é o próximo romance que se espera. Que características ele vai ter? Vai se parecer com os romances tradicionais do século 19? Ou vai ter uma cara muito mais nova, mais vanguardista? Ele vai abdicar da ficção e se tornar cada vez mais um híbrido, se aproximando de outras linguagens? Ou ele vai ser, ao contrário, uma afirmação maior da ficcionalidade? Estes aspectos não estão predeterminados previamente e são construídos coletivamente, em movimentos bastante complexos.

VC. Como encara seus desafios criativos?
JF. Na busca de algo que tenha valor autêntico, que tenha importância e sentido para mim mesmo e que não seja a tentativa de resposta ao anseio do público ou da crítica. Então, há a percepção de que eu quero participar desses diálogos, da construção dessa complexidade que é a valorização de uma obra, mas ao mesmo tempo eu não posso querer responder concretamente a esses anseios. Eu só posso escrever algo que tenha valor pra mim.

VC. E como fica na tarefa de crítico?
JF. Tenho me dedicado cada vez menos a resenhar, por exemplo. Mas me coloco ainda como crítico literário porque me interesso por esses movimentos, pensar historicamente a literatura. E acho que uma das questões fundamentais numa crítica literária é essa compreensão histórica do contexto das obras. Essa obra se alinha a que outras obras do passado? Ela se aproxima, com seus recursos, de que outros autores, de que outros recursos utilizados ao longo da história? Porque às vezes a gente vê críticas literárias como se não houvesse passado, feitas como se cada novo livro fosse uma grande invenção inédita. Para mim, a compreensão da literatura se dá sempre dentro de uma história literária e dentro de uma história do presente. As duas facetas que a gente não pode esquecer. Cada obra responde a um passado literário e também responde a uma circunstância presente. Por isso, a boa crítica literária talvez seja aquela que consiga enxergar esses dois elementos.

VC. Qual é o lugar da crítica literária hoje?
JF. Eu vejo que a crítica está passando por um processo intenso de transformação. A crítica, que era feita de uma forma mais técnica, mais carregada de conhecimento, mais carregada dessa cultura histórica, de uma tradição da própria literatura ou da própria crítica, tem se voltado muito mais para a experiência pessoal, para um olhar particular, individual. Cada vez mais proliferam críticas que comentam livros a partir da experiência da leitura. O crítico que se aproxima, portanto, do leitor, e comenta os livros a partir desse novo olhar. Me parece um sinal dos tempos. Assim como o escritor que tem falado mais de si e criado muito menos essa outra instância, a do narrador distinto, do personagem distante do próprio autor. Tudo isso tem se tornado um pouco mais raro. O crítico literário que se quer mais acadêmico, mais objetivo, também tem se tornado uma figura rara. Talvez porque essa figura tenha envelhecido, seja uma figura mais caduca. Me parece que é natural compreender esse movimento, que há um olhar mais individual, mais subjetivo para as próprias obras, só que é importante também fazer isso com rigor, com um olhar amplo, de associar a movimentos históricos e enxergar as obras além do que ela mesma oferece.

VC. É um desafio complexo.
JF. É paradoxal porque parece que supostamente a população está lendo cada vez menos, mas socialmente a figura escritor mantém a importância e ganha mais projeção em tempos recentes. Sempre se quer ouvir o que o escritor tem a dizer, algo que talvez tempos atrás não fosse tão desejado. Ao mesmo tempo, o ato de escrever livros continua sendo muito valorizado. As pessoas nem sempre estão dispostas a ler os livros, mas elas dão um valor grande ao fato de você ter escrito e ter publicado. Isso continua fazendo muito diferença na vida de alguém, publicar um livro. Parece que, na nossa sociedade, publicar um livro o transforma imediatamente num especialista em algo, especialista naquele assunto sobre o qual você escreveu. O valor que se dá ao livro é muito grande mesmo que a leitura não seja tão frequente assim. É um dos paradoxos do nosso momento. Pessoalmente, eu gosto de vivenciar as coisas de perto, prefiro não me isolar desses movimentos, prefiro não optar pela reclusão, não fazer uma opção pelo descompasso com o mundo. Prefiro me entregar mais ao mundo, estar presente e pensar junto com os outros aquilo que eu estou vivendo. Então, para mim, em algum momento eu percebi que me sentia muito mais à vontade se fizesse isso, se eu estivesse em diálogo com essas pessoas ao meu redor e se me dispusesse a falar e a me posicionar da maneira que querem que eu me posicione como escritor. Sinto que isso ganhou importância para mim sem que perdesse importância o ato solitário da escrita. O desafio grande nesse momento é você de fato construir uma rotina de escrita.

VC. Isso influencia na realização do próximo livro?
JF. O processo de escrita do próximo livro tem sido completamente diferente porque eu venho falando publicamente sobre ele há algum tempo. Mesmo que o livro concretamente ainda não exista, não tenha sido publicado. Estou escrevendo nesse momento A ocupação. Tem alguma relação com A resistência. Ocupar e resistir, digamos. E que tem esse mesmo narrador, o Sebastián, espécie de alter ego que vem me acompanhando há mais de um livro mas que tem outras preocupações, outro olhar. A vivência familiar se dissipa um pouco, apesar de continuar existindo, e o presente ganha mais importância. O presente político das circunstâncias que a gente tem vivido agora, a necessidade de lutar diante do que estamos vendo. Isso tudo vai sendo tematizado dentro da própria obra. Mas isso é o que eu estou dizendo. De repente me pego falando sobre um livro que eu ainda estou escrevendo. Poderia optar por não falar. Mas me parece que o livro cresce, dessa maneira. Cresce em diálogo, cresce quando me vejo obrigado a explicar, a elaborar algumas noções sobre o próprio livro e ouço o que as pessoas têm a dizer, percebo as reações e os olhares que os ouvintes me dedicam. Como reagem a certas ideias e noções. Isso me norteia muito mais. Me parece, neste momento, muito mais valioso escrever dessa maneira do que no isolamento, tentando ouvir essas vozes exteriores do que apenas as vozes interiores. Elas me parecem muito mais ricas, mais múltiplas.

VC. O que fazer para não se repetir depois de um sucesso?
JF. Eu batalho comigo mesmo contra a ideia da repetição. Eu nunca quis escrever o mesmo livro. Não vejo sentido nisso. Ou a repetição de uma fórmula que funcionou. Esses são mecanismos do mercado, que eu sempre critiquei, inclusive dentro das próprias obras literárias. E os mecanismos do mercado literário se repetem continuamente. Para a mim, a busca de algo que tenha qualquer valor autêntico na escrita é exatamente prescindir dessas repetições e dessas fórmulas. Ao mesmo tempo, há uma certa inevitabilidade nesse processo. Porque quando você está buscando escrever algo que tenha valor íntimo, valor para si mesmo, você percebe que no ato da escrita já está escrevendo outra coisa. Mesmo que eu quisesse a mesma proposta de A resistência, como talvez alguns leitores ou algum editor desejariam, o ato da escrita já transformaria isso em outra coisa.