Conhecedor da alma humana e pioneiro dos recursos lúdicos com fins didáticos, o inglês Lewis Carroll,
morto há 120 anos, deixou na estória fascinante de Alice no País das Maravilhas o seu melhor legado
*Matéria publicada na revista Vila Cultural 165 (janeiro/2018).
Ilustração Jonas Ribeiro
Desde que foi escrita na Inglaterra do século 19, a estória de Alice no País das Maravilhas encanta leitores no mundo inteiro e se impõe como a obra mais importante e a consagração definitiva do escritor e matemático Lewis Carroll na literatura mundial.
Com a possibilidade de ser lido em várias camadas ou em diferentes momentos da vida, o livro fascina crianças e adultos e ainda hoje influencia o imaginário criativo de muitos artistas.
Autores brasileiros como Ziraldo, por exemplo, que tem uma neta chamada Alice, não cansam de celebrar a genialidade de Carroll. “Sempre a presenteei com edições do livro de Carroll. Ela deve ter mais de cem edições de Alice, vindas de todos países em que já estive. Tem livros a té em japonês e em chinês, em vários idiomas. Nessa brincadeira, também comecei a me interessar pela obra de Carroll. Fui penetrando muito no universo dele também para entender o sucesso de Alice, que é um dos livros mais vendidos e traduzidos no mundo, depois da Bíblia. Então, pensei: ‘esse cara conhece muito da alma humana’. Para revelar a alma humana num livro infantil, pensei, tem algum um mistério aí?
Aí, eu descobri que a Alice talvez seja literariamente o famoso ‘eterno feminino’, ainda que isso já não se deva dizer porque é uma expressão meio velha. Mas ela descreve o que é ser feminino na natureza humana. É o símbolo que sintetiza todas as questões. Ela tem todas as características do mistério feminino, naquilo que você quer conhecer”, disse Ziraldo numa entrevista à Vila Cultural.
Faz todo o sentido. Com um estilo nonsense que o tornou único, o livro conta as aventuras da menina Alice quando ela cai na toca de um coelho que a leva até um lugar povoado por criaturas fantásticas e muitos enigmas. Publicada originalmente em 1865, a estória teria sido inspirada nos momentos de lazer que Carroll costumava desfrutar com amigos que tinham filhos. Em 1862, num passeio de barco com as garotas Alice, Edite e Lorina, começou a imaginar a aventura. Foi sucesso imediato para a época e a protagonista rendeu, anos depois, em 1872, outro livro, Alice através do espelho, em que o “cenário” é uma partida de xadrez e os personagens aparecem como peças do jogo. O encantamento com crianças e a habilidade para se comunicar com elas foram só duas das virtudes de Carroll, nascido em janeiro de 1832, há 186 anos, e morto aos 66, em janeiro de 1898, 120 anos atrás.
Charles Lutwidge Dodgson era o nome verdadeiro de Lewis Carroll. Ele nasceu em Daresbury e estudou matemática na Universidade de Oxford, onde passou a atuar como professor ensinando geometria, álgebra e lógica por mais de três décadas. Carroll também escreveu livros sobre esses assuntos – com títulos como Um programa para um plano de geometria aplicada ou Matemática curiosa –, que assina com seu nome de nascimento. Ele também se distinguia de seus pares por causa de um gosto pioneiro: para ensinar de um jeito mais simples e agradável, somava ingredientes lúdicos ao seu repertório didático. Entre atividades divertidas, criou jogos e passatempos para ensinar matemática, por exemplo.
Junto com o gosto pelos números e pelo ensino, Carroll atuou também como poeta de vanguarda e publicou os livros de poesia O caçador de serpentes e Fantasmagoria, em que usa, de maneira original e improvável para sociedade e a aristocracia inglesa daquele período, elementos absurdos e sobrenaturais, a exemplo da famosa Canção do jardineiro maluco.
E por falar em canção e versos, impossível não citar a reinvenção mais contemporânea da obra de Carroll com o filme que Tim Burton fez em 2010, usando e abusando de seus vocabulários tão característicos e ainda assim tão em sintonia com as criações originais. Vivida pela atriz Mia Wasikowska, Alice surge como uma adolescente de 17 anos, segue o mesmo coelho branco apressado e entra em um buraco que a leva ao País das Maravilhas, um local onde esteve há dez anos, apesar de não se lembrar disso, e é recepcionada pelo Chapeleiro Maluco, pretexto para outra grande performance do ator Johnny Depp.